Presidente dos EUA abalou os mercados de valores e as relações internacionais com o anúncio da aplicação de tarifas sobre as importações nos EUA, que variam entre os 10 e os 50%. Ana Paula Africano da FEP considera que esta estratégia é um retrocesso de, pelo menos, 80 anos, que ameaça o consenso do pós-Segunda Guerra Mundial ao nível do comércio internacional.
Donald Trump fez-se acompanhar de um grande quadro para mostrar o valor das tarifas que decidiu aplicar sobre 57 países com os quais os EUA têm défices comerciais. Foto: The White House/Flickr
Trump chamou-lhe uma “ordem executiva histórica” e não há dúvidas de que poderá haver um antes e um depois do dia 2 de abril de 2025, no que ao comércio global diz respeito. A partir da Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos da América anunciou a aplicação de uma “tarifa-base” de 10% sobre todas as importações norte-americanas (com pequenas exceções), a par de tarifas ainda mais altas para um conjunto de 57 países ou entidades, que Trump acusou de “saquearem, violarem e roubarem os EUA”. As taxas variam entre os 11% e os 50%, consoante o país. A “tarifa-base” entrou em vigor a 5 de abril, as mais altas devem começar a ser aplicadas a partir desta quarta-feira (9). As bolsas já acusaram o toque e têm estado no vermelho.
Grandes parceiros económicos dos Estados Unidos, como a China, o Japão ou a União Europeia, ficarão sujeitos a tarifas de 34%, 24% e 20%, respetivamente. No caso da China, o total ascende aos 54%, se se considerarem os 20% aplicados desde fevereiro. O facto já levou o governo Chinês a retaliar com o anúncio de tarifas de igual dimensão sobre produtos americanos, com o ministro do Comércio a garantir que o país vai “decididamente adotar contramedidas para salvaguardar os direitos e interesses” da China, face a uma postura “bully” dos EUA. Trump já prometeu retaliar contra a retaliação.
Foi a reação mais enérgica das grandes economias. Pela parte da Comissão Europeia, Úrsula Von der Leyen discursou na quarta feira (3), diretamente do Uzbequistão, à margem de uma cimeira com a região da Ásia Central, e apelou a um caminho alternativo de negociação com os Estados Unidos, assegurando que a Europa pretende “remover barreiras, não erguê-las”, mas garantiu também que a UE já está a preparar “mais contramedidas para proteger os seus interesses e negócios para o caso de as negociações falharem”.
Cálculos “absurdos”, considera docente da FEP
Com o “Dia da Libertação”, Donald Trump prometeu a “independência económica” dos EUA e conseguir “biliões de dólares de lucros” para o estado norte-americano. Ana Paula Africano, docente da Faculdade de Economia do Porto (FEP), comenta ao JPN que as tarifas terão consequências muito distantes dos benefícios que Donald Trump promete.
A especialista em comércio internacional entende que os cálculos apresentados por Donald Trump para definir as tarifas são “completamente absurdos” e que “não têm fundamento técnico naquilo que está instituído e que seriam os procedimentos normais”.
“O foco que as autoridades americanas estão a seguir, neste momento, é olhar para o valor total do comércio existente entre os Estados Unidos e cada parceiro económico”, explica. “Estão a tentar calcular quanto é o saldo do comércio, ou seja, a diferença entre aquilo que eles exportam e importam” de um determinado país. Segundo Ana Paulo Africano, é o défice deste saldo que leva os Estados Unidos a apresentar, por exemplo, para a União Europeia, uma tarifa de 20%: “Os EUA dizem: ‘o nosso défice [comercial] em relação à União Europeia é de 39% e nós vamos fazer-lhes um favor, e vamos aplicar uma taxa de 20%’ e é nessa base que fizeram para uma série de países”.
Protecionismo contra multilateralismo
Ana Paula Africano está segura de que, pelo menos nos últimos 80 anos, este modelo tarifário nunca foi posto em cima da mesa por um país da Organização Mundial do Comércio. Ainda que inédito neste século, este modelo recorda, segundo a professora, o sistema de comércio mundial desenvolvido no final do século XIX e na aproximação ao século XX que colapsou “exatamente porque era feito por países, individualmente”.
“O que os Estados Unidos estão a tentar fazer é criar relações de comércio em que é o país que dita as regras”, explica Ana Paula Africano, “no âmbito daquilo que são as regras atuais do comércio, ele nunca poderia fazer isto”.
Segundo a docente, não pode ser dado um tratamento discriminatório, a não ser no sentido de privilegiar os países com menor capacidade para competir no mercado. “Fazer isto unilateralmente é algo que é do século XIX e, precisamente por esse modelo, o sistema colapsou completamente entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda”, afirma Ana Paulo Africano.
A especialista em comércio internacional explica ainda que, no pós-Segunda Guerra Mundial, os aliados juntaram-se em torno de um consenso: “era extremamente importante desenvolver um sistema de comércio livre multilateral, em que todos os países estão coordenados entre si”.
O anúncio de 2 de abril vem abalar a segurança e a previsibilidade que este consenso tratou de instituir, pelo que tem tudo para causar danos económicos sobre as relações no comércio internacional. A professora da FEP salienta que, se a previsibilidade e a segurança são essenciais no âmbito de uma economia nacional, nas relações económicas internacionais ainda são mais importantes, uma vez que os negócios internacionais têm tempos de execução mais longos.
“A economia sai a perder”
Quanto aos “biliões” que Trump projeta vir a encaixar nos cofres do estado norte-americano à custa da cobrança destas tarifas, Ana Paula Africano concede que “as tarifas beneficiam genericamente o Estado, porque recebe, de facto, receitas fiscais”, contudo são os consumidores americanos que vão pagar essas tarifas, sejam eles importadores, consumidores finais ou empresas. Para os produtores, a professora esclareceu que será mais percetível, no entanto, as pessoas também pagarão mais, “talvez sem perceber” que é por causa das tarifas.
“Globalmente, a economia sai a perder, com este nível de tarifas, claramente”, argumenta Ana Paula Africano, “porque os custos acrescidos que os consumidores americanos vão pagar por aqueles produtos são maiores do que os benefícios que o Estado retira pela cobrança da tarifa e o que os produtores nacionais americanos podem retirar por estarem, no fundo, protegidos da concorrência internacional”, resume.
As consequências da política protecionista chegarão a Portugal, segundo a economista, nomeadamente afetando áreas como a farmacêutica, a indústria das bebidas, a área têxtil e a metalurgia, mas todos os mercados financeiros.
Editado por Filipa Silva