Encerrou, este sábado, uma livraria que estava aberta na Avenida da Boavista há quase 40 anos. Proprietário culpa obras do Metrobus pela quebra nas vendas. O JPN assistiu ao fechar de portas e conversou com o proprietário e com clientes que quiseram marcar presença no dia da despedida de mais uma livraria histórica do Porto.

Apesar do tempo incerto, Manuel Nunes acordou este sábado (19) com a certeza de que a livraria à qual deu nome há quase 26 anos na Avenida da Boavista abriria portas pela última vez. Muitos dos livros que enchiam as prateleiras da Livraria Nunes – antes chamada de Livraria Estudo, aberta em 1987 – já foram vendidos e outros tantos disseram adeus ao espaço nos últimos dias de vida.

Alguns clientes que já “eram da família” quiseram visitar o espaço e o proprietário, o sr. Nunes, como é carinhosamente apelidado, uma derradeira vez. Houve também quem por ali aparecesse para presenciar um momento histórico e comprar um último livro, caderno ou até um jogo.

O Sr. Nunes fez este sábado as últimas vendas em loja. Foto: Beatriz Tavares/JPN

A construção do corredor do Metrobus da Boavista decorreu entre fevereiro de 2023 e agosto de 2024. O troço da Avenida da Boavista onde se situa a Livraria Nunes começou a ser intervencionado em fevereiro do ano passado. Com as obras, acabou o estacionamento e a circulação pedonal ficou condicionada junto à livraria: “Notou-se logo a quebra [das vendas], mal começaram a mexer no passeio”, relata ao JPN o proprietário, que aponta este como o principal fator na origem do encerramento.

Manuel Nunes aguentou fevereiro e março, mas, em abril de 2024, concluiu que já “não aguentava mais”, não tinha como pagar as despesas do espaço arrendado. O livreiro começou rapidamente a ter prejuízo e fechar o negócio tornou-se inevitável: “Ao fim do mês tinha de pôr dinheiro meu e cada vez mais. Aguentei este ano, fui tentando vender o que tinha com descontos, para ver se consigo dinheiro, para, pelo menos, não ficar a dever nada a ninguém”.

“Agoniado” e “a viver uma angústia”, o proprietário vai atendendo os últimos clientes. Manuel Nunes descreveu que a dor sentida este sábado “é como [a de] perder um familiar”.

Sobre as respostas ao prejuízo provocado pelas obras do Metrobus que o livreiro procurou, lamenta: “A Metro do Porto disse-me que o trabalho tinha de ser feito, o dinheiro tinha de ser gasto e não ia haver indemnizações”.

Histórias de uma livraria histórica

Recoando no tempo, o proprietário conta que a abertura da Livraria Nunes foi ocasional. Antes, tinha uma tabacaria em Costa Cabral, que passou “a um casal muito interessado”. “Aguentei-me 15 dias. Já não aguentei mais sem fazer nada”, confessa.

A 13 de agosto de 1999, o “segundo filho” de Manuel Nunes nasceu das circunstâncias e do gosto pelos livros, que o mantêm “atualizado culturalmente”. “Cheguei aqui, olhei para a porta e disse ‘é isto que eu quero, vamos falar com os donos’. E vim para aqui, estou aqui e ainda estava mais uma boa meia dúzia de anos“, sublinha.

Quase 26 anos depois, o livreiro conta que por ali passaram “muitas figuras ilustres” e que “havia de tudo – clientes que compravam tudo do Porto[,por exemplo,] cada um no seu género”. Sobre os clientes que eram como família reitera: “Para mim, um cliente que vem primeira, segunda, terceira vez, já é da casa”.

Manuel Nunes a despedir-se do último cliente, que frequentava a livraria desde há dois meses. Foto: Beatriz Tavares/JPN

Sobre as melhores memórias, Manuel Nunes partilha: “Momentos marcantes tive muitos. Ainda há 15 dias, [esteve aqui] o Pedro Abrunhosa sem óculos, porque já nos conhecemos desde quando ele lecionava no Pires de Lima”. Ainda assim, “a visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, no ano passado ou há dois anos”, é a que destaca ao JPN.

“Veio comprar livrinhos para os netos e levou um livro de ‘motos da minha vida’, que tinha a primeira mota que o pai lhe tinha dado. Estivemos a conversar um bocadinho e já veio cá posteriormente. Foi um momento marcante, quando ele atravessou a avenida em direção aqui”, lembra.

Participar de um momento de perda

Questionados pelo JPN, dois clientes que visitaram a Livraria Nunes pela primeira (e última) vez na manhã deste sábado justificaram a sua presença afirmando que é “uma forma de participar da perda e do sentimento de perda”, provocada pelo encerramento de “mais um sítio dedicado a um segmento que, infelizmente, parece que está a morrer em toda a cidade do Porto”.

De saída, com um livro de Cesário Verde, outro de Alexandre Dumas e cadernos no saco, António Santos lembra o recente encerramento da Livraria Latina, logo a seguir à Fnac, ambas na Baixa do Porto. “Agora, só estamos entregues às grandes cadeias de distribuição, que nos impingem sempre aqueles autores desinteressantes”, critica.

Alguns clientes fizeram questão de passar pelo espaço no último dia de portas abertas. Foto: Beatriz Tavares/JPN

Entre críticas dos dois clientes ao desaparecimento do comércio local e da falta de apoios à cultura, António Santos reflete que “parece que [esta] é uma civilização cada vez mais material e cada vez menos espiritual. Só nos reunimos para comprar roupa e para comer brunch e o resto, a discussão de ideias, o estímulo cultural, isso, infelizmente, parece que está a desaparecer um bocado”.

O cliente falou ainda sobre uma notícia divulgada recentemente que dá nota de que há 200 concelhos em Portugal onde não existem livrarias: “Uma coisa aterradora. Como é que é possível? Com as bibliotecas públicas com os acervos e os horários já bastante limitados, empurram toda a gente para as compras pela internet, mas ainda não consigo prescindir do ‘fetichismo’ de pegar num livro e cheirá-lo”.

A concluir, António Santos deixou um pensamento: “A leitura tem essa coisa excelente: nenhum de nós é apátrida ou refugiado ao partilhar uma ideia”.

Terceira livraria a encerrar no Porto em sete meses

A diminuição do volume de vendas de livros físicos, que resulta dos novos hábitos de consumo literário, confrontada pelo valor elevado e crescente das rendas e do custo de vida, para além das obras que têm sido um cenário habitual no Porto, ditaram um fim à Livraria Leya na Latina, na Rua de Santa Catarina, que encerrou no início deste ano.

De recordar ainda que a Fnac das antigas Galerias Palladium, situada na mesma rua, encerrou no final de setembro do ano passado.

Detalhe da montra da livraria onde está escrito “Ler dá-nos asas”. Foto: Beatriz Tavares/JPN

O futuro do negócio é incerto para Manuel Nunes, mas, por enquanto, adianta: “Terça-feira, vou voltar aqui à livraria já encerrada e levar para casa o que sobrou. Ainda não tenho planos para o futuro. Em princípio, vou guardá-los. A partir daí, vamos ver, que também já não vou para novo”.

Emocionado e entre suspiros, ao início da tarde de sábado, Manuel Nunes fechou as portas da Livraria Nunes ao público pela última vez. Agora, quem passa pelo número 887 da Avenida da Boavista já não vê um espaço repleto de livros e material de papelaria. No dia da despedida, ainda se encontrava um papel na porta que tinha escrito Ler dá-nos asas” – a mensagem que fica.

Editado por Filipa Silva