Na Congregação das Irmãzinhas dos Pobres, no Porto, a crença em Deus e a preocupação pelo próximo unem uma comunidade que conta com mais de 100 anos de história. Entre religiosas, voluntários e residentes, constrói-se todos os dias um lar, onde a fé se traduz em cuidado. Esta é a primeira de uma nova série de reportagens que o JPN dedica ao tema comunidades.
Seguir a vida religiosa é um caminho cada vez menos comum, mas para algumas pessoas revela-se a resposta mais clara a uma inquietação interior: o desejo de servir, de cuidar e de viver uma fé ativa.
No Lar das Irmãzinhas dos Pobres, no Porto, cruzam-se histórias de entrega e dedicação que transcendem o quotidiano. Irmãs, voluntários e residentes partilham um espaço onde a espiritualidade, o acolhimento e a solidariedade se entrelaçam num ritmo sereno.
As Irmãzinhas dos Pobres vivem unidas por uma missão comum – o cuidado dos mais pobres e idosos – e por laços de fé, serviço e fraternidade. Partilham a vida diariamente, desde os momentos de oração até às tarefas mais simples.
“Não escolhi a congregação. Deus pôs-me aqui, no caminho das Irmãzinhas”
Dedicar a vida à religião não é para todos. São, aliás, cada vez menos as pessoas que a escolhem. Mas, para as irmãs Sílvia e Peter, a vida só começou a fazer sentido quando responderam àquilo que descrevem como “o chamamento de Deus”. Embora sejam de sítios e tempos diferentes, há algo que as une: a fé e a preocupação pelo próximo.
Sílvia tem 38 anos e faz parte da Congregação das Irmãzinhas dos Pobres há 16. Foi ainda na sua terra natal, Espanha, que descobriu uma “inclinação para tudo o que é religioso”, como “ir à catequese e ajudar o padre da paróquia”. Ainda assim, a irmã confessou que, nessa altura, ainda “não tinha, absolutamente, qualquer intenção de ser religiosa”.
Essa vontade surgiria mais tarde, quando começou a fazer voluntariado na Congregação, até onde acredita ter sido guiada por Deus: “Eu não escolhi a congregação. Acho que Deus me pôs aqui no caminho das Irmãzinhas”. A irmã Sílvia contou que rapidamente percebeu que as horas de voluntariado não eram suficientes e que queria dedicar “as 24 horas do dia e os 365 dias do ano” à oração e ao serviço pelos outros. A sua vida só ganhou sentido quando a sua vontade e a vontade de Deus “se uniram verdadeiramente”, conta ao JPN.
“Lembro-me que, a primeira vez em que cheguei às Irmãzinhas e pus um pé naquela casa, senti no meu coração que tinha que ser o meu sítio para sempre, mas sem compreender porquê”, partilhou a irmã.
Quanto à reação da família à sua decisão de se dedicar por completo à Congregação, Sílvia recordou que no início foi complicado. Nem sempre é fácil “compreender a parte espiritual” e aceitar o facto de que essa opção a faria renunciar a “uma carreira, um marido e uma vida normal no mundo”, recorda. Ainda assim, a irmã não se arrepende da decisão e está confiante de que este é o caminho certo: “A verdade é que eu estou muito feliz e, mesmo 16 anos depois, voltaria a começar outra vez, sem nenhum problema”.
Sobre o que significa fazer parte da Congregação das Irmãzinhas dos Pobres, Sílvia falou de uma junção de alguns desafios com vários momentos gratificantes.
A irmã descreveu a frustração que sente quando vê uma pessoa idosa em fim de vida e não consegue fazer nada para amenizar o seu sofrimento como o mais desafiante. “Muitas vezes, temos que ser os seus olhos, as suas mãos, os seus pés, porque eles não [se] conseguem mexer, não conseguem falar, não conseguem ouvir”, afirma Sílvia. A irmã reforçou que a principal missão da Congregação é dar conforto e segurança, quer física, quer espiritual àqueles que estão ao seu cuidado, para que possam ter um final digno, no qual “estão tranquilos, aliviados, sem sofrimento e em paz”.
Ainda como um desafio, a irmã apontou a tentativa de passar a mensagem da Congregação aos seus funcionários e voluntários. Sílvia acredita que é extremamente importante que eles compreendam que, embora estejam a trabalhar, estão também a “fazer verdadeiramente uma obra de caridade” e que cuidar dos outros implica perceber que “cada pessoa é única” e que tem de ser respeitada “até ao fim”.
Apesar das dificuldades diárias, Sílvia não hesita em afirmar: “Eu sou muito feliz com o que faço”. A irmã resume a vida daquelas que fazem parte da Congregação em três partes: “a vida de oração, a vida fraterna e a vida apostólica”.
Dentro daquilo que é a missão da congregação, Sílvia vê a formação de uma “corrente de solidariedade” como o mais gratificante e recorda que era esse o objetivo da “Mãe Fundadora” das Irmãzinhas: Santa Joana. Tendo como exemplo os ensinamentos da sua fundadora, a irmã Sílvia afirma que todos os dias “tenta fazer tudo por amor, como se o fizesse o Senhor”.
Nesse sentido, os momentos dedicados aos idosos que a Congregação acolhe são também muito gratificantes para Sílvia, que reforça o quão importante é que “eles se sintam em casa”. Para isso, as irmãs incentivam-nos a decorar os quartos à sua maneira e a ajudar naquilo que podem e melhor sabem fazer, como “descascar batatas, costurar, dobrar roupa, pôr a mesa”.
Até aos dias de hoje, a congregação acolhe idosos e dá-lhes a melhor vida possível, através, por exemplo, do “contributo de benfeitores” e de “peditórios junto às igrejas e em supermercados.”
Desde a fundação da congregação, em 1839, que as Irmãzinhas têm como princípio “viver inteiramente de donativos”, tendo plena confiança na “providência de Deus”, que “nunca deixaria os pobres”.
“Vivemos como uma família”
Tal como Sílvia, também a irmã Peter encontrou um lar na Congregação das Irmãzinhas dos Pobres. Contudo, os percursos que as levaram a seguir a vida religiosa foram distintos.
Peter tem 60 anos e é natural de Nova Jérsia, nos Estados Unidos. A irmã conta que sentiu o “chamamento”, quando “estava a fazer um retiro com umas amigas e, de repente, o resto não tinha tanta importância”. A congregação, da qual faz parte há cerca de quatro anos, cruzou o seu caminho quando era estudante de enfermagem numa universidade norte-americana que ficava junto de uma das casas das Irmãzinhas.
Sobre a sua relação com as irmãs, com quem convive diariamente, Peter não tem dúvidas: “Vivemos como uma família. Temos os nossos momentos com os idosos e em comunidade. Rezamos juntos, passamos o tempo juntos e compartilhamos o trabalho juntos”.
No que diz respeito ao papel do silêncio e da espiritualidade no quotidiano das Irmãzinhas, Peter vê o “corte do barulho do dia a dia” como uma oportunidade para poder “estar presente perante Deus e escutar a presença” dele em si.
Quanto às interações e atividades com os idosos, Peter reforça que o objetivo é “dar-lhes alegria e distraí-los um pouquinho”.
Entre as melhores recordações, Peter faz referência às oportunidades que tiveram de sair da Congregação e levar os idosos a visitar diversos espaços. “Uma vez, no Natal, fomos ao NorteShopping. Não fizeram nada, deram uma volta, mas estavam felizes, falaram disso durante semanas. Uma senhora, que agora está no hospital, pensava que estávamos em Paris”, contou a irmã Peter.
Relativamente à diminuição do número de pessoas que segue a vida religiosa, Peter vê a “falta de fé no mundo em geral” como principal causa. Ainda assim, a irmã afirma ter “uma vida muito feliz”, desde que sentiu a “chamada do Senhor”. Ainda assim, não é imune a adversidades. Tal como Sílvia, também Peter teve de superar a incompreensão da família, que só mais tarde veio a aceitar a sua decisão.
O voluntariado movido pelo Evangelho
No lar das Irmãzinhas dos Pobres, no Porto, o voluntariado, mais do que um serviço, é um compromisso com a vida, com o outro e com a fé. Sem esperar nada em troca, os voluntários doam o seu tempo, escutam o outro e preenchem o espaço com a sua presença.
Nuno Figueiredo começou como voluntário há mais de 15 anos e acredita que nada foi por acaso. Contou ao JPN que foi numa reunião da Comunidade Vida Cristã que tudo começou. Uma amiga, professora de inglês num colégio próximo, perguntou-lhe se gostaria de visitar um lar onde ela costumava ir com os seus alunos. “Sabe, são um tipo de convites que, aparentemente, não têm a ver com nada, mas a gente percebe que é o Espírito Santo que anda aí a fazer das dele”, afirmou Nuno, com um sorriso.
O voluntário recordou que se sentiu à vontade na casa das Irmãzinhas, desde o primeiro dia. Começou por se apresentar e disse que queria ajudar. Depois, fez uma espécie de formação, que consistiu na leitura das biografias de Santa Joana, fundadora das Irmãzinhas dos Pobres.
Nuno confessou que ficou impressionado com a história da congregação, que cresceu muito, mesmo em tempos de guerra, alargando-se a vários países da Europa e a outros continentes: “Vá lá Deus saber porquê, isto espalhou-se como os cogumelos, de maneira que as Irmãzinhas neste momento têm casas em trinta e tantos países”.
Hoje, Nuno dedica as terças-feiras, exclusivamente, ao lar. Entra de manhã e ajuda no que for preciso: “é o que se faz nas famílias, estamos atentos às necessidades uns dos outros”. Da parte da tarde, partilha o Evangelho com os residentes, num momento de reflexão criado em conjunto com a madre.
O que mais impressiona Nuno é o ambiente da casa: “a tranquilidade com que tudo é feito, com que tudo acontece. Não há ninguém que esteja desamparado, que se sinta sozinho. Não há um metro quadrado desta casa que não esteja arrumado”.
Maria Isabel Magalhães é a mais antiga voluntária das Irmãzinhas dos Pobres. Reformou-se em 2010 e, pouco tempo depois, iniciou o seu percurso no voluntariado. Maria confessou ao JPN que sempre teve o desejo de dedicar parte da sua reforma ao serviço voluntário: “não queria ficar todo o tempo metida em casa”. Mas foi mais do que isso que a trouxe até este espaço.A voluntária contou que conhece o lar há muitos anos e que sempre se sentiu profundamente tocada pelo modo de vida da comunidade: “aqui vive-se o Evangelho. O Evangelho é posto em prática, como as irmãs vivem aqui e tratam das pessoas que aqui estão, realmente é o Evangelho vivo”.
Assim que Maria decidiu começar a fazer voluntariado, falou com uma irmã, que lhe perguntou se gostaria de ajudar na receção, onde está desde que iniciou este caminho.
Maria vai duas manhãs por semana ao lar e faz questão de dizer que, mais do que abrir o portão ou encaminhar visitantes, o que mais valoriza é conversar com os residentes. A voluntária falou da importância dos momentos de escuta e partilha: “para mim, é muito importante. Tão mais importante, às vezes, do que estar a abrir só o portão”.
Maria descreve as manhãs no lar como um serviço que faz com alegria. Para a colaboradora, o voluntariado na congregação é uma fonte de “riqueza interior”, que contribui para o seu desenvolvimento espiritual. “É uma casa onde se sente paz e uma caridade imensa”. A voluntária destacou ainda a solidariedade das irmãs que a acompanharam em tempos difíceis: “As irmãs deram-me muita força quando precisei e isso marcou-me muito”.
A mais jovem dos três voluntários, Rita Figueiredo, tem 28 anos e começou a colaborar com a casa em julho de 2024. Licenciada em Gerontologia e Cuidados de Longa Duração, contou ao JPN que a proximidade geográfica da sua casa a levou a bater à porta das Irmãzinhas e a perguntar se havia lugar para ela. A resposta foi positiva e, desde então, faz parte da equipa.
Sobre a jornada como voluntária revelou: “a simpatia das pessoas idosas surpreendeu-me muito. Em todos os contextos em que me deparei com eles, tanto em momentos mais divertidos, como em momentos mais de rotina, achei que eram muito simpáticos, muito afáveis”.
Os dias de Rita no lar começam cedo com uma aula de ginástica. A seguir, ajuda no primeiro piso com as rotinas dos idosos, depois, nas refeições. Às quartas, a rotina muda: só vai à tarde, para dinamizar atividades mais livres, como jogos e trabalhos manuais.
Sobre o que esta experiência lhe tem ensinado, a voluntária destacou a paciência. Admitiu que há dias mais difíceis, mas que aprendeu a manter a calma e atuar com serenidade. Rita acrescentou que leva desta experiência “muita alegria no coração”.
A vida de quem chama casa às Irmãzinhas dos Pobres
No Lar das Irmãzinhas dos Pobres, o tempo é passado com rotinas simples e gestos de fé. Maria Sousa e Fernanda Mónica, duas residentes do lar, partilharam com o JPN as suas vivências no local marcadas pela espiritualidade.
Maria Sousa tem 80 anos, é residente há quase quatro e a sua rotina diária começa cedo e é profundamente marcada pela fé, com orações. As manhãs seguem com atividades físicas e espirituais: “quando chegam as 9h30, venho para a ginástica. Depois, vou para a fisioterapia e, depois, para a capela, para o terço e para a missa”. Quando acaba o almoço, o ritmo abranda, mas as atividades continuam: “temos trabalhos manuais ou jogos e depois vamos para a capela rezar o terço outra vez”.
Sobre o que mais gosta de fazer, a residente não hesitou em dizer que são os trabalhos manuais, mas que também gosta de “jogar o jogo do bingo”.
Maria Sousa confessou ter uma boa relação e admiração pelas irmãs da congregação: “São boas, gosto delas. São muito queridas, muito amigas, sempre presentes. No que precisamos, estão sempre presentes”.
A utente recordou as origens da ligação ao lar: “trabalhei numa livraria franciscana, na Rua de Cedofeita, uma livraria católica. Um dia, umas irmãzinhas daqui foram lá fazer umas compras e depois perguntaram se eu queria ser sócia do lar”. Anos depois, quando precisou de apoio, procurou o lar e é onde reside atualmente.
Fernanda Mónica, de 86 anos, também residente, carrega uma história de vida entrelaçada com a congregação. Natural de Ferreira do Zêzere, mudou-se jovem para Lisboa, onde teve os primeiros contactos com as Irmãzinhas. “Comecei a sentir uma coisa que me puxava para lá”, confessou Fernanda ao JPN.
O sonho inicial era tornar-se numa irmã, contudo, acabou por perceber que não tinha essa vocação. Continuou, no entanto, a apoiar as Irmãzinhas dos Pobres como funcionária. Quando Fernanda tinha 22 anos, foi enviada para o estrangeiro para ajudar: “estive em França três anos e meio, em várias casas. Estive em Poitiers, Laval, na Bretanha e em Saint-Joseph”.
Fernanda Mónica fez a formação de auxiliar em Paris, onde também realizou as suas primeiras promessas e, ao fim de um ano, voltou a ser enviada para o Porto, onde está há 50 anos como funcionária e, agora, como residente.
No dia a dia, procura manter-se ativa com os trabalhos manuais, “coisinhas assim de crochê ou de tricô, desenhos e jogos também, para puxar a memória”. Além das atividades do quotidiano, a idosa residente ainda canta na missa.
Nas rotinas silenciosas, nas orações partilhadas e nos pequenos gestos de cuidado, revela-se a essência do que é viver com e para os outros.
No lar das Irmãzinhas dos Pobres, que têm duas casas em Portugal e várias outras por todo o mundo, a fé ganha uma forma concreta, não apenas como crença, mas como uma ação diária, uma presença atenta e um compromisso com a dignidade de cada pessoa. Mais do que um espaço religioso, é um lugar onde o Evangelho se traduz, todos os dias, em humanidade.
Editado por Filipa Silva