JornalismoPortoNetA Europa está a atravessar um período de relações difíceis com as minorias muçulmanas. Foi a lei do véu em França, o assassinato do realizador holandês Theo van Gogh, o 11 de Março… Abrir as portas de repente a 70 milhões de muçulmanos não pode acender um rastilho explosivo em termos culturais e religiosos dentro da própria Europa?

Milan Rados – Bem, é preciso ver que estes muçulmanos não entraram por diversão, mas sim por necessidade. A Europa está a envelhecer, e a população europeia que anda a estudar está apenas preparada para trabalhos de alta tecnologia ou de serviços. Então, tem de haver alguém para limpar as ruas, cozinhar, servir e todos esses trabalhos que os europeus já não querem fazer. E essa é a principal razão para a entrada desta mão-de-obra barata, explorada por empresas europeias que procuram habitualmente trabalhadores ilegais. Como estão ilegais, a autoridade dentro do Estado não tem forma de os controlar e eles são explorados de uma maneira vergonhosa. É natural que os jovens de Marrocos, do Afeganistão olhem para a Europa e procurem viver da mesma forma, procurem uma vida de sonho, emigrando em massa. Mas depois a forma como são tratados vai moldar a sua posição dentro da sociedade. Torna-se, portanto, quase inevitável que se comecem a organizar na marginalidade, e que comecem a adoptar posturas violentas para que o estado comece a entender a sua situação real. Por isso, a culpa da situação dos imigrantes, incluindo os muçulmanos, não é só deles. E também é por isso que uma das respostas que eles encontram é a crença no fundamentalismo islâmico. Mas repito, a culpa não é deles. É dos estados europeus que não sabem receber e tratar humanamente esta gente.

“Não é lógico um partido fundamentalista querer entrar na União Europeia”

O partido no governo da Turquia tentou há alguns meses fazer aprovar no parlamento uma lei que considerava o adultério como crime. Há a hipótese de, se a Turquia entrar na União Europeia, poder vir a aprovar leis deste tipo ou há algum mecanismo dentro da UE que possa prever essas situações?

A Constituição Europeia inclui um documento relativo aos Direitos Humanos dos cidadãos europeus. Se for aprovada, o Direito Comunitário receberá primazia em relação aos direitos dos estados-membros. Por isso, se não existe qualquer legislação europeia que diga que o adultério pode ser considerado crime, se vê nisso uma violação dos direitos humanos, então nenhum estado membro pode ter um pacto de leis que diga o contrário. Se acontecer o contrário, a Comissão Europeia simplesmente aplicará sanções ao estado-membro que violar o direito comunitário.

O AKP, o partido que está agora no poder na Turquia, é de raiz islamita. Não parece quase contraditório que sejam os islamitas, que sempre tentaram evitar uma aproximação da Turquia à Europa, aqueles que agora estão a fazer força para que o processo de adesão entre na recta final?

Provavelmente, é uma jogada política. Não é lógico que um partido fundamentalista queira entrar na União Europeia. A UE é um conjunto de povos cristãos e a filosofia muçulmana não pode aceitar que os cristãos sejam a maioria. Segundo o Corão, a filosofia que este partido segue, os cristãos devem ser dominados pelos muçulmanos. Por isso, teoricamente, não haveria lógica para esta posição do AKP. É provavelmente uma jogada de política interna, qualquer equilíbrio entre os diferentes movimentos dentro da própria Turquia, especialmente a posição do exército, que desde os dias de Kemal Ataturk tem um papel importantíssimo na sociedade turca.

“A Europa tem de se definir.”

Estrategicamente, a Turquia pode permitir uma tripla abordagem geopolítica por parte da União Europeia nos próximos anos. A Europa pode voltar a olhar para o Mediterrâneo, pode começar a tornar-se num agente activo na questão do Médio Oriente e pode também permitir o aproveitamento dos recursos energéticos da zona do Cáucaso. A localização geoestratégica da Turquia pode ser de facto importante para o futuro da União?

A Turquia era e é importante, porque permite o acesso a países como o Iraque, Irão, Síria, países importantes no Médio Oriente. Durante a Guerra Fria, a Turquia era um dos pontos cruciais na defesa do ocidente e daí a sua presença em organizações como a NATO. Hoje em dia, a geopolítica já não é tão importante. O cenário alterou-se. Quem domina o mundo é quem tem mísseis inteligentes e armas nucleares. Mas a verdade é que isso depende do carácter das próprias relações internacionais. Para invadir o Iraque, os Estados Unidos não precisaram do apoio da Turquia, por exemplo. Isso indica que a importância geoestratégica turca não é tão importante como muitos presumiam.

Daniel Hamilton, da Universidade de Hopkins, disse recentemente num colóquio na Fundação Gulbenkian que a Europa devia abrir as portas a todos os estados que quisessem entrar. O professor não acha que Bruxelas se devia preocupar primeiro com os Balcãs ou mesmo países como a Bielorrúsia e Ucrânia, países que estão dentro da esfera geográfica europeia, antes de avançar para o complexo processo que é a adesão da Turquia?

O primeiro problema é que a União Europeia nunca se conseguiu definir claramente. Depois há ainda os diferentes movimentos dentro do projecto europeu. O movimento federalista, que quer transformar a União Europeia numa Federação Europeia, que define claramente que a Europa se devia unir, e quando falam em Europa excluem estados como a Rússia ou a Turquia, numa federação de estados, como acontece nos Estados Unidos. Uma Federação que deveria ter exército, um governo central, ministro dos negócios estrangeiros e Presidente. O próprio Tratado de Maastricht foi um passo rumo ao Federalismo e esta Constituição é a continuação desse passo. Depois há os países chamados euro-cépticos, que querem da Europa apenas uma parceria económica e social, sem qualquer interferência a outro nível. Por isso, em primeiro lugar, a Europa tem de se definir.

E em relação à expansão dentro das próprias fronteiras geográficas da Europa?

Sim, a partir do momento em que a Europa se tiver definido, finalmente será claro que o problema dos Balcãs tem de ser resolvido. Os Balcãs são um cancro no coração da Europa. A guerra na antiga Jugoslávia apenas tapou o problema, empurrou-o para debaixo do tapete. Mas ele continua lá. Para resolver aquele problema é preciso muito dinheiro e muita paciência. E agora nenhum país da UE quer dar muito dinheiro. Mais uma vez, dou o exemplo de Portugal. Quando em 1986 Portugal entrou na União Europeia, na altura CEE, ajudou-se muito Portugal. Bruxelas enviou muito dinheiro para cá. É preciso fazer o mesmo com os Balcãs. Só que não há vontade, não há dinheiro, não há outra maneira. Além do mais, é preciso muito tempo e paciência para incorporar primeiro estes novos países do leste como a Polónia ou Eslováquia e daqui a dois anos a Roménia e a Bulgária. Falar sobre a Ucrânia e a Bielorrúsia, isso já é outra história, que certamente não se vai resolver senão daqui a muito tempo.

“A “Velha Europa” vê a Turquia como o cavalo de Tróia dos Estados Unidos”

A Turquia pode servir como tampão ou plataforma giratória de imigrantes ilegais vindos do Médio Oriente para a Europa. Qual será a tendência com uma Turquia como estado-membro da UE?

Essa é uma questão que está resolvida há algum tempo. Quando Portugal e a Espanha entraram, já se falava de uma “invasão” portuguesa e espanhola da França, Alemanha e de outros países mais desenvolvidos. Mas isso não aconteceu. Como também não aconteceu agora com estes novos países membros. E isso porque há sistemas de trabalho, porque, por exemplo, estes novos países ainda não estão com direito à livre circulação de indivíduos. Há um controle eficaz por parte das instituições europeias. Além do mais, já há muitos turcos a trabalhar na Europa, especialmente na Alemanha, e estão a ocidentalizar-se gradualmente, sem criar grandes problemas.

A União Europeias levantou inúmeras salvaguardas ao início da negociação com Ancara. Primeiro falou numa baliza temporal de mais de quinze anos, depois levantou imensas questões sociais que podiam levar a interromper o processo. Isso não dá um sinal de que a Europa está relutante em receber a Turquia, mesmo sabendo que pode vir a ser algo importante para o futuro da União?

Quem está realmente interessado na entrada da Turquia na União Europeia são os Estados Unidos. São eles que estão a forçar o processo. É óbvio que hoje em dia, tudo no mundo depende dos Estados Unidos, incluindo essa questão. E não nos podemos esquecer que dentro da UE há as duas “Europas”. A “Europa Velha”, como chamou Donald Rumsfeld ao eixo Paris-Berlim, que quer ser independente do poder dos Estados Unidos na Europa e que não quer a Turquia dentro da União Europeia. Para utilizar a expressão de Charles de Gaulle, eles vêm a Turquia como “O cavalo de Tróia norte-americano na Europa”. Entretanto, há outra linha de orientação, a chamada “Nova Europa”, pró-americana, pró-Atlântica, que quer a Turquia o mais rapidamente possível na União Europeia. E há um claro confronto destes dois pontos de vista opostos.

Mesmo que a Cimeira do próximo dia 17 de Dezembro aprove o início das negociações com a Turquia, há ainda três grandes dossiers que têm de ser resolvidos até o processo estar concluído. A questão económica, a questão dos direitos humanos e o caso de Chipre. Como é que a União Europeia vai conseguir resolver estes difíceis assuntos?

Bruxelas vai aplicar a habitual politica externa da União Europeia, que é aplicar sanções económicas para conseguir objectivos políticos. A UE vai passar um cheque à Turquia, mas em troca vai pedir a rápida resolução destes assuntos, a começar pelo de Chipre. E perante este argumento, a Turquia vai ter de ceder. Aliás, a Turquia já cedeu, e acabaram por ser os cipriotas gregos a vetar a unificação do país no último referendo em Maio. Em relação aos direitos humanos, a Turquia está a apresentar melhorias, mas mais uma vez a ajuda económica de Bruxelas servirá como pressão para que Ancara apresse a tomar medidas rápidas de democratização da sociedade turca. Em relação à economia, é a tal solidariedade de que já falei, a tal ajuda comunitária que só chegará se a Turquia se tornar um membro efectivo da União.

Miguel Lourenço Pereira