Cláudia Pedra, da secção portuguesa da Amnistia Internacional, acusa a existência de um vazio legal nos países em que a mutilação genital feminina é praticada. O presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social, Fernando Ká, diz ao JPN que há questões mais urgentes na Guiné-Bissau, mas considera que “o Governo deve tomar medidas para eliminar totalmente este tipo de prática”, acabando assim com aquilo que classifica como “tortura inaceitável”.

Ká aponta a necessidade de “informar as pessoas sobre os perigos” da mutilação genital”, mas adianta que isso, por si só, não é suficiente, e refere a urgência de se criar “uma legislação rígida para punir as pessoas que efectuam esse tipo de prática”.

Fernando Ká não se limita a incluir nesse grupo as mulheres que executam a excisão [PDF], e vai ao ponto de reclamar a punição também para os pais que querem que as suas filhas sejam amputadas no seu órgão sexual para que uma tradição se cumpra. Por isso, o dirigente guineense defende que “o Estado tem por obrigação intervir em casos como estes”.

“Convencer as pessoas não é fácil, sobretudo em África, onde elas são ainda iletradas e não têm a noção do risco que [a excisão] acarreta”. Por isso, o dirigente considera ser “necessária a intervenção do Estado, médicos e chefes religiosos que subscrevem essa prática”. Este é, de resto, um apelo inscrito pela UNICEF no relatório divulgado hoje acerca da mutilação genital feminina.

“A intervenção da sociedade civil é extremamente importante”, concorda Cláudia Pedra, apontando para a importância da mudança de atitudes dos “chefes tribais onde se pratica a excisão e dos líderes religiosos que a incentivam”.

A mutilação genital “não é uma característica cultural”

Os dois responsáveis concordam, sobretudo, num aspecto: a mutilação genital feminina é “um acto de tortura” e “uma prática violenta e desumana”. As opiniões divergem, contudo, quanto à natureza da prática.

Cláudia Pedra é radicalmente contra a aplicação do conceito de acto cultural à excisão do clítoris a mulheres, uma prática recorrente nos países da África sub-sariana e no Médio Oriente e que vitima anualmente três milhões de raparigas, de acordo com o relatório da UNICEF.

A responsável sublinha que a mutilação genital feminina “não é uma característica cultural, mas um acto de tortura”. “É importante que a sociedade veja isso como um acto de tortura e não como um acto de cultura”, insiste, argumentando que “a desculpa que é usada sempre é que a mutilação genital feminina é um acto cultural”. “Um acto cultural é a pintura das mãos das mulheres da Índia. A ablação do clítoris não é um acto cultural”, defende.

Já Fernando Ká, presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social, refere que a mutilação genital feminina é vista “como um acto cultural”. Faz questão de frisar que, na Guiné-Bissau, a mutilação genital feminina atinge “apenas pessoas que praticam a religião muçulmana”. Ressalva, porém, que a prática” não tem nada a ver com fundamentos da religião islâmica, até porque os árabes não fazem isso”.

Apesar de considerar a excisão do clítoris “uma prática violenta e desumana”, Fernando Ká lembra que a operação (feita a sangue-frio por uma mulher) é “uma prática muito enraizada, e as mulheres [guineenses muçulmanas] não se casam sem se sujeitarem a ela”.

Cláudia Pedra lembra que já existem alguns “movimentos que têm substituído a mutilação genital feminina por um ritual de passagem que envolve palavras”. Aponta o Quénia como exemplo, entre outros países africanos onde isso já acontece. A responsável alerta, no entanto, para o facto de tal não significar que a prática da excisão termine ou que fique resolvida, uma vez que “não há legislação”.

Fernando Ká diz desconhecer se existem em Portugal casos de excisão, mas admite que, “a existir, será num circuito muito fechado, porque não é permitido [praticá-la] em território português”. Admite, porém, que, no seio da comunidade guineense muçulmana residente em Portugal, alguns pais levem as suas filhas a países onde a prática é permitida, para serem excisadas: “é muito provável, tendo em conta a tradição”.

Ana Correia Costa
Foto: SXC