Nove personagens numa festa. Cruzam-se, falam-se e ocupam-se do desempenho dos seus papéis sociais. Procuram exercer o poder sobre o(s) outro(s), sobre o que estiver mais à mão, mais vulnerável, não importa.

Um décimo elemento: incumbida de realizar uma reportagem sobre a democracia dos humanos, uma estrangeira de outro planeta circula pelo meio deles. Um espaço onde a “crítica à sociedade contemporânea” e à “falta de liberdade” que ela implica é “iminente”, descreve o encenador Luis Miguel Cintra.

“Sangue no Pescoço do Gato” (1971), do dramaturgo e cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder (1946-1982), “é uma espécie de jogo”, mas é, acima de tudo, “uma peça sobre a realidade”. Sobe hoje, quinta-feira, ao palco do Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, às 21h30, e está em cena até dia 8.

O encenador da peça, Luis Miguel Cintra, recentemente distinguido com o Prémio Pessoa 2005, viajou com a sua Cornucópia, que fundou em 1973, até ao Porto, para apresentar três espectáculos representativos do trabalho que aquela companhia tem feito e que abrem, agora, a programação de 2006 do Teatro Nacional de S. João (TNSJ).

O director da Cornucópia garante que a responsabilidade pela estadia da companhia no Porto é de Ricardo Pais, director artístico do TNSJ: “eu sou director de uma companhia que não tem meios para fazer estas residências”, esclarece.

Uma peça “iminentemente política”

De volta a Fassbinder: “Escolhemos esta peça porque tem a ver com a nossa sociedade”, explica Luís Miguel Cintra. Além de ser uma peça “iminentemente política”, “Sangue no pescoço do gato” é uma “violenta crítica à nossa sociedade”, “à vida que as pessoas levam e à falta de liberdade que essa vida implica”.

As personagens demonstram uma “total incapacidade de serem livres”, observa o encenador. “Sendo uma obra escrita há bastantes décadas, sente-se actualíssima”, elabora. “Se a estrangeira entrasse na nossa sociedade, provavelmente encontraria uma sociedade do mesmo género”.

“Sangue no pescoço do gato” é, afinal, um espelho que reflecte a “desumanização das sociedades democráticas em que vivemos”, em que “fragmentos de vida vão aparecendo através de diálogos-tipo entre as personagens”, também elas tipificadas (não têm nome: há um professor, uma modelo, uma amante…).

A reportagem falha: a estrangeira quer entrar para o grupo e gera-se a confusão. Phoebe Zeitgeist acabará por perder-se no meio das mentiras, do cinismo e das contradições. Sem compreender o que ouve, a extraterrestre reproduz frases soltas e descontextualizadas, causando perplexidade nas restantes personagens

Mais dois espectáculos

Ao longo deste mês, a Cornucópia leva ao palco do TeCA mais dois espectáculos. Entre os três, nenhum denominador comum: a diversificação das propostas pretende dar a conhecer o trabalho da companhia de Luis Miguel Cintra: “tento que haja grande flexibilidade”.

A residência da Cornucópia no TNSJ prossegue com “Esopaida ou vida de Esopo” e “História do soldado”.

Ana Correia Costa
Foto: DR