O pátio interior do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP) teve lotação esgotada esta terça-feira (21), para assistir à sessão “Ouvir, 59 minutos de imersão poética”, com Andreia C. Faria, um dos nomes em maior destaque no atual panorama literário português. O evento permitiu ao público uma aproximação singular à obra da poeta que se assume como feminista e à poesia como uma forma de subversão.

No céu recortado pelos telhados da antiga Faculdade de Ciências, a noite foi caindo à medida que se cumpriu o primeiro momento do programa: a escuta de uma seleção gravada de poemas de Andreia C. Faria, pela voz da própria autora.

Como preâmbulo, foi-nos oferecida uma paisagem sonora composta por Francisco Oliveira e Henrique Ferrara, estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, sob orientação do professor Gilberto Bernardes, da mesma instituição.

Os poemas escolhidos por Andreia C. Faria foram retirados de “Alegria para o Fim do Mundo”, a antologia publicada em 2019 pela Porto Editora, na coleção “Elogio da Sombra”, dirigida por Valter Hugo Mãe, que valeu à escritora natural do Porto, de 35 anos, a atribuição do 13.º Prémio Literário Fundação Inês de Castro. O anúncio foi feito na semana passada.

Em declarações ao JPN, à margem do evento organizado pela Casa Comum da Universidade do Porto, a poeta confessa estar muito satisfeita por receber este galardão: “É um prémio importante que tem premiado autores que eu sigo e que admiro muito e, portanto, estar nessa lista é muito bom, deixa-me feliz”.

A distinção é o culminar do reconhecimento praticamente unânime da crítica e dos pares vivida nos últimos anos, em que se destaca ter sido vencedora do Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Livro de Poesia, em 2017, pela obra “Tão Bela Como Qualquer Rapaz”, e, mais recentemente, por ter sido convidada para ser uma das escritoras residentes da Feira do Livro do Porto 2020, cujo mote será precisamente o título do seu mais recente livro, “Alegria para o Fim do Mundo”.

Já com a noite cerrada, o evento entrou numa segunda fase em que a autora e Fátima Vieira, vice-reitora da Universidade do Porto, se juntaram num pequeno palco, para uma conversa que não se isentou de refletir sobre o momento especial que estamos a atravessar. Se é certo que, nas palavras de Andreia C. Faria, não estamos a viver o fim do mundo a que o título da antologia da sua obra alude, existe a “sensação de que algo está para acabar. O fim de uma civilização, o fim de uma forma de estar no mundo”, que é também o “fim da imaginação, o fim do que podemos imaginar que aí vem”, observou a antiga aluna da UP.

É nesta época de grandes incertezas que uma (re)aproximação à poesia como “forma de contemplação ativa, de resistência, de subversão” ganha um valor político, ético e existencial acrescido. “Os poetas são os punks da linguagem”, diz a autora. “Devem estar sempre na vanguarda a fazer um trabalho de rebeldia, de estranheza”.

A poesia em Portugal, acrescentou mais tarde ao JPN, vive uma fase muito interessante, sobretudo devido ao trabalho das “pequenas editoras independentes”. “Daqui a uns anos vamos perceber, olhando para o catálogo dessas editoras, que o que de novo e mais interessante está a surgir, está lá”, completou.

Um pequeno, mas fervoroso, grupo

Existe um lastro de grande produção poética em Portugal que influenciou Andreia C. Faria, alimentado por autores como Luísa Neto Jorge, Luís Miguel Nava – dois escritores do corpo, de uma poesia visceral, com que a portuense se identifica particularmente -, António Franco Alexandre, Carlos Poças Falcão, Daniel Faria ou Joaquim Manuel Magalhães.

A esta vitalidade da produção poética nacional responde também um público que, sendo um “nicho” – “Costuma dizer-se que são trezentas pessoas”, brinca a propósito -, tem um sentido especial de combatividade e de compromisso: “vai atrás do que quer, conhece a fundo a obra de um autor quando gosta de um autor, está atento a tudo o que se vai passando e tem sobretudo uma grande generosidade para ir acompanhando o que se vai fazendo”.

Muitos dos escritores de referência descobriu-os enquanto trabalhou na histórica livraria Leitura (que fechou as portas em 2018). Nessa altura, já tinha terminado a Licenciatura em Ciências da Comunicação na UP, e feito estágio no JPN e na secção de Cultura do “Jornal de Notícias”. Aos poucos o jornalismo e a crítica literária foram ficado para trás, em detrimento da criação poética.

Ter tido experiência de livraria, sublinha, proporcionou-lhe o contacto com livreiros cheios de conhecimento que lhe apresentaram inúmeros autores. Foi um período marcante para a sua formação, até porque a leitura e escrita andam necessariamente a par, pois “quem quer escrever já sabe que tem que ler muito, de tudo”, refere ao JPN.

Em 2008, estreia-se com “De haver relento” (Cosmorama Edições). Seguiram-se “Flúor” (Textura Edições, 2013), “Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração” (Edições Artefacto, 2015) e “Tão Bela Como Qualquer Rapaz” (Língua Morta, 2017).

Residência na Feira do Livro do Porto 2020 servirá para refletir sobre a cidade

A conversa com Fátima Vieira focou-se em alguns temas prediletos da poeta, como o feminismo, conceito em que se revê integralmente: “É de bom senso ser feminista. Qualquer pessoa decente é feminista, porque se trata de direitos humanos”. Andreia C. Faria é mestre em Estudos Anglo-Americanos pela UP, na vertente de Estudos Sobre Mulheres, e nesse âmbito estudou escritoras como Emily Dickinson (1830-1886) ou Sylvia Plath (1932-1963), poetas que admira e cujas obras e experiências acabaram por influenciar a literatura e pensamento feministas.

Andreia C. Faria reforça que toda a poesia tem uma dimensão política que lhe é inerente, porque a poesia é também um compromisso com o outro, implica um compromisso ético. Assim, embora a poesia não se deva submeter à política, “o poeta tem que ter responsabilidade pelas suas metáforas”. No seu caso, a defesa pela vida animal é também uma preocupação transversal à sua obra.

Dentro de algumas semanas, Andreia C. Faria participa como escritora residente na Feira do Livro do Porto 2020. A proposta passa por olhar o momento que a cidade atravessa e interpretá-lo literariamente. Haverá ainda uma partilha com o público sobre o ‘work in progress‘ que fará em parceria com Inês Lourenço, a outra escritora convidada.

O evento culminou numa sessão de autógrafos. A fila formou-se com pessoas de várias idades carregando nas mãos “Alegria para o Fim do Mundo”. Perguntamos à poeta se este contacto com as pessoas é importante. Ela responde: “É bom perceber a forma como as pessoas reagem à leitura e, neste caso, à voz. É interessante ver essa reação em tempo real, mas a poesia é sobretudo uma prática do silêncio, do recolhimento e da solidão. Por isso, é algo que acontece a partir de agora, quando as pessoas forem para casa com o livro e se confrontarem com os poemas”.

Recolhidos na intimidade de sua casa talvez leiam estes versos premonitórios de Sabão Offenbach que extraímos de “Flúor”: “Rugoso e maciço, fatiado e vendido/ ao balcão de madeira de qualquer mercearia,/ o sabão Offenbach é recomendado pelas autoridades/ para lavagem de espaços comuns/ sempre que surge a ameaça de uma epidemia” . É possível que o mundo adquira então, para essas pessoas, a tal estranheza que, para Andreia C. Faria, é o cerne de toda a poesia.

Andreia C. Faria deu voz à quarta sessão do Ciclo “Ouvir, 59 minutos de imersão poética”, uma iniciativa trazida ao público portuense pela Casa Comum da UP, com curadoria da Porto Editora. Depois das primeiras participações de João Gesta e João Habitualmente (em conjunto) e de Cláudia R. Sampaio, o ciclo, programado para decorrer mensalmente até ao final de 2020, teve que ser suspenso. Regressou este mês com apresentações de Adolfo Luxúria Canibal e Andreia C. Faria no âmbito das Noites no Pátio do Museu. Novas datas, garantem os organizadores, serão agendadas assim que as condições o permitirem.

Artigo editado por Filipa Silva