A terminar o seu mandato como comissária europeia da Coesão e Reformas, Elisa Ferreira já teve a seu cargo o Ministério do Ambiente e do Planeamento. Durante a entrevista ao JPN, disse estar preocupada com os partidos populistas que "não propõem nada e alimentam-se das críticas".

Elisa Ferreira é comissária europeia da Coesão e Reformas. À margem de uma sessão sobre fundos de coesão, que se realizou na quinta-feira (18), na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a comissária em fim de mandato afirmou, em entrevista ao JPN, que “fica muita coisa por fazer“. No entanto, mostrou estar orgulhosa com o trabalho que realizou nos últimos cinco anos.

A comissária defende que a coesão pode ser uma forma de combater o crescimento dos populismos nos meios esquecidos pela administração pública e refere que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um “programa de emergência” e não de continuidade.

JPN – É comissária da Coesão e das Reformas desde 2019 e vai terminar o mandato em breve. Que reformas é que mais se orgulha de ter feito e o que é que fica por fazer?

Elisa Ferreira (EF) – A Coesão e as Reformas são dois lados, no fundo, da mesma moeda. Na parte das reformas, o que tentamos fazer e, acho que conseguimos, foi abordar a qualidade das instituições, a qualidade da administração pública e apoiar os países.
Estamos a apoiar, a pedido dos Estados, todos os países, através de um instrumento que se chama Instrumento de Apoio Técnico – Technical Support Instrument, em inglês. Portanto, talvez a coisa mais interessante nesse contexto é o que já está a funcionar e que foi um dos sucessos deste mandato, que é aquilo a que podemos chamar como um Erasmus para os funcionários públicos. Já há, neste momento, 300 funcionários públicos de várias administrações de vários países, que vão passar entre cinco dias e três meses noutra administração pública, precisamente para aprenderem novos métodos de trabalho, para perceberem como é que a mesma legislação pode ser gerida num sítio de uma maneira e noutro sítio de outra. Isso está a ter bastante sucesso.
À parte disso, fizemos apoios a pedido: ajudamos a reorganizar, por exemplo, o sistema judicial em Chipre; ajudamos a utilizar a inteligência artificial numa série de processos da administração pública, de maneira a simplificar procedimentos e a introduzir novos métodos, novas tecnologias. Faço notar que, muitas vezes, os nossos funcionários públicos, chamemos assim, não têm as condições que deveriam ter para responder a tudo aquilo que se lhes vai dizendo.

Mesmo com a crise da dívida soberana, não houve uma renovação das administrações públicas, as pessoas não foram treinadas, a organização dos sistemas não é a melhor, e, depois, exigimos às pessoas coisas que elas não podem dar. Não houve gente nova a entrar, muitas vezes.

É um sucesso ter, neste momento, um apoio em que as administrações pedem ajuda no que for e nós damos diretamente ou arranjamos consultores externos para eles, de facto, assessorarem as administrações, melhorando a qualidade das instituições. Só com instituições qualificadas é que se podem fazer boas opções também de gestão de políticas públicas.

JPN – E o que é que fica por fazer?

EF – Fica sempre imensa coisa por fazer, mas imensa coisa por fazer.

JPN – Alguma prioridade em específico?

EF – Não. Acho que, neste momento, a minha grande preocupação – e é mais no âmbito da política de coesão – é que os Estados-membros percebam que a coesão interna territorial é um fator de resiliência para o país e para a economia.
Um país desequilibrado é um país frágil. Um país que depende só de uma determinada indústria é um país frágil, porque pode acontecer qualquer coisa nessa indústria, pode acontecer qualquer coisa nesse tal centro desenvolvido, e se acontecer, o país todo morre.
Por exemplo, a Alemanha só tem para aí quatro ou cinco cidades com mais de um milhão de habitantes. Tem muitos polos de desenvolvimento. Falando com os alemães, eles dizem isto: [é preciso] descentralizar para adaptar as políticas à realidade de cada região e, ao mesmo tempo, favorecer vários polos de desenvolvimento. Isto é uma grande lição. Muitos países optaram exatamente por entrar nesse tipo de lógica. A Grécia, por exemplo, já criou regiões. A Roménia criou oito regiões, a Grécia criou treze.
Começam a descentralizar para conseguir perceber as dinâmicas de cada região, mas é preciso uma prioridade. É preciso que os países não deleguem para o nível europeu fazer coesão e que eles próprios assumam em todas as políticas que o território interessa. Porque senão aquilo a que assistimos neste momento – e os estudos mostram isso – é que aquelas regiões, que ficam estagnadas durante muito tempo, são os sítios onde as pessoas começam a votar contra o sistema, votam nesses partidos mais radicais, precisamente porque dizem que este mundo é muito complicado.

JPN – Encontra neste aspeto algum paralelo com o nosso país?

EF – Há algum paralelo. Portugal não é uma exceção a isso. Portanto, pode haver territórios que estão estagnados a um nível muito baixo de rendimento, territórios que estão a um nível muito alto e territórios que estão a um nível intermédio, e há uma correlação estatística que associa que, de facto, essas duas coisas acontecem nos mesmos territórios.
Acho que isso é um sinal que aparece no nono relatório da coesão. Faço muita questão que façam a consulta, precisamente porque descreve este problema grave, que é o das consequências, não só em termos de haver territórios e pessoas que não contribuem para a riqueza coletiva – são deixadas um bocadinho ao abandono -, mas também a questão social e política.
A pessoa sentir que não sai da cepa torta, que está perdida, cria-lhe uma sensação de dizer: “Vou votar contra”. Nessa altura, vota seja em quem for que apareça a dizer: “Tenho aqui a solução, vou-te proteger”. A maior parte são vendedores de banha da cobra, que não têm nada para oferecer em alternativa.

JPN – Relativamente aos fundos de coesão, durante a sessão, disse que “se deve ensinar os países a pescar e não dar sempre os peixes”. Se houvesse uma escala de dependência, em que patamar é que estaria Portugal?

EF – Não vou fazer esse tipo de classificação, até porque as situações são tão diversas de país para país. Depois, há outra coisa que é importante. Quando há uma prioridade nacional de coesão, todas as políticas têm de ter a noção de que uma política, por mais homogénea que seja, tem impactos territoriais diferentes. Isto é, se fizer uma política de apoio à inovação na agricultura, há territórios que beneficiam, há outros que não beneficiam nada. Se fizer uma política de ciência e tecnologia, em que centros é que vão fazer? Sobre os territórios, incidem políticas horizontais, umas de caráter nacional, outras de caráter europeu.
Por exemplo, a política comercial. Se levantar uma barreira de proteção para a indústria automóvel e se abrir as fronteiras para a indústria têxtil, há territórios que ficam penalizados e há territórios que ficam favorecidos. Portanto, não há aqui uma relação de culpa. O meu objetivo, ao dizer isto, é alertar para a necessidade de olhar para vários territórios e que se tente utilizar os fundos de maneira a desbloquear o que está a bloquear o desenvolvimento e potenciar aquilo que pode ser o valor acrescentado na região.

JPN – Esta questão dos fundos também está intrinsecamente ligada à possibilidade de alargamentos da União Europeia. Em que medida a adesão de um gigante como a Ucrânia prejudicaria Portugal?

EF – Já não é a primeira vez que alargamos e vou-lhe só dar um exemplo. Depois do alargamento à Polónia, convidei um colega que tinha sido ministro na Polónia para vir falar sobre como é que a Polónia via Portugal. Ele disse: “Portugal é um país fabuloso”. Duvidei se ele estava a falar a sério, porque não pensamos isso de nós. Ele disse: “É um país do outro extremo, tão longínquo. O maior banco privado na Polónia é um banco português, a maior rede de distribuição nos supermercados é uma rede portuguesa e a maior empresa de construção civil é portuguesa. Portanto, os portugueses são o máximo, e temos de copiar o que os portugueses fazem”. Isto dá-lhe uma ideia do que pode ser o potencial associado ao alargamento. Todos os alargamentos que fizemos até agora foram acompanhados de reforços da política de coesão.
Esse reforço é necessário para criar potencialidades ao país que está a ser apoiado. Mas se esse reforço existir – e é importante que exista -, acho que participar na reconstrução de um país, como a Ucrânia, é uma oportunidade muito boa para os ucranianos e para todos quantos sejam capazes de ajudar na sua reconstrução. 
Uns oferecem uma escola, outros oferecem um centro de saúde, outros oferecem um centro de investigação, precisamente para criar as condições para uma recuperação rápida e alargar o mercado interno com novos clientes, novos compradores, novas oportunidades de investimento. 

JPN – Relativamente às eleições europeias, o crescimento de partidos populistas na Europa é um fenómeno já de alguns anos. Acredita que nas próximas eleições este fenómeno também vai fazer-se sentir na composição do Parlamento Europeu? O que é que isso significa para o projeto europeu como o conhecemos?

EF – Todos estamos preocupados com isso, até porque são partidos de contestação, não de construção de alternativas. Portanto, não propõem nada e alimentam-se das críticas. As críticas são também muito alimentadas por forças externas à própria União Europeia, que fomentam, através sobretudo das redes sociais, esse tipo de desentendimento, desencontro, crítica.

Espero que alguns países, que beneficiaram imenso da União Europeia, que valorizam imenso a democracia, tenham a lucidez de construir a Europa, reconstruir aquilo que não existe ainda ou coisas que não estão a correr tão bem. A Europa não é perfeita, a nossa família também não é perfeita, o nosso país não é perfeito, mas a Europa constrói-se e reconstrói-se em cada momento através da participação dos cidadãos de uma forma construtiva. E, portanto, a minha esperança é que o bom senso e o instinto de sobrevivência dos europeus e dos portugueses seja prevalecente num momento tão importante em que só através da Europa é que conseguimos controlar os impactos de uma pandemia, que era inimaginável, de uma guerra, que ainda se mantém nas nossas fronteiras, de uma guerra que, entretanto, surgiu na parte mais sul, mas também nas nossas fronteiras, uma manipulação do setor energético, que passou a ser uma arma de guerra por parte da Rússia.

Dadas todas estas circunstâncias, acho que é evidente que só dentro da Europa e só unidos é que conseguimos afrontar estas – esperemos que não aconteçam mais e as que existem, as que persistem que acabem -, mas outras virão de caráter climático, de perda de demografia, de migrações. Portanto, só juntos é que temos força para ter um papel na globalização, senão ficamos completamente fragmentados e somos impotentes.

JPN – Qual é a avaliação que a Comissão Europeia faz da execução do PRR português?

EF – O PRR é um programa de emergência. Portanto, mais volumoso do que o PRR são os fundos estruturais, que alastram por sete anos. Trato dos fundos estruturais, mas não trato do PRR. Segundo a informação que me chega dos meus colegas, tem um comportamento perfeitamente normal, não há nenhum problema específico com Portugal.
O que acontece no PRR a nível europeu – agora não estou a falar de Portugal – é que em muitos casos a dimensão territorial do PRR é praticamente inexistente. Isto é, não houve a preocupação de fazer coesão também com o PRR, embora no texto legislativo haja algumas referências a isso, e, como o prazo era muito curto, muitas vezes aquilo que foi financiado é aquilo que já iria acontecer de qualquer maneira.
Mas esse é também o objetivo de um programa de emergência e que ajudou muito, juntamente com a reprogramação dos fundos estruturais, que foram o instrumento imediato. Foi, no fundo, permitir que 23 mil milhões de euros, que é muito dinheiro, para aí 10% dos fundos estruturais, pagassem parte das vacinas, ventiladores para os hospitais, máscaras, apoios ao emprego, ao lay-off, apoios às pequenas e médias empresas. Toda aquela ajuda que chegou três semanas depois da declaração da pandemia, foram fundos estruturais que foram reprogramados com a ajuda do Parlamento Europeu e do Conselho e que reprogramamos.
A partir daí, ter uma perspetiva de investimento deu também outro oxigénio à economia e aqui nota-se que a Comissão Europeia aprendeu e fez diferente da crise de 2008-2011. Todas as regiões – ricas, pobres, etc. -, em média, voltaram, em 2021, ao nível que tinham antes. Há emprego pleno, toda a gente está a queixar-se que não tem trabalhadores suficientes. A economia não teve a quebra que se esperava e, portanto, as coisas funcionaram. O PRR ajudou, mas é um programa de curto prazo, de emergência. A política de coesão tem outro tipo de consistência. A política de coesão continua e do PRR estamos a tentar trazer, depois de verificado, se isso de facto tem o resultado esperado, entre outros aspetos, por exemplo, a simplificação dos procedimentos, se forem mais simples. Mas isso é um processo que ainda está em avaliação também pelo Tribunal de Contas Europeu.
JPN – Falou também da questão da aprendizagem, que a Europa aprendeu com a guerra na Ucrânia a não estar tão dependente de outros países, nomeadamente relativamente ao gás russo. Também defendeu numa entrevista ao “Financial Times” que a Europa tem que ser mais proativa e mais competitiva. Como é que pode ser feito o balanço entre a necessidade de legislar e ser competitivo face a países que não têm essa preocupação?
EF – Mais do que a legislação, interessa que os operadores privados saibam as regras porque se pautam. Nesse aspeto, a Comissão e a União Europeia avançam muito. Neste momento, é um referencial, por exemplo, em termos de gestão de inteligência artificial, proteção de dados individuais, etc. Neste momento, não é uma questão de legislação, é uma questão de implementação e de lógica e de objetivos. A Europa está a apostar muito fortemente em reforçar a sua componente de investigação, de desenvolvimento, de novas tecnologias, e a tentar captar para dentro da União Europeia as fases críticas de todos os setores industriais.
Há todo um apoio que, neste momento, existe, inclusivamente também na política de coesão. Tenho uma oportunidade a que chamamos STEP, e que é a possibilidade de utilizar fundos estruturais nas regiões mais atrasadas da Europa para apoiar grandes empresas, coisa que a política de coesão tinha deixado de apoiar, nas áreas que são viradas para o futuro.
Estamos a falar das empresas que trabalham nas áreas de net zero, isto é, da indústria não poluente, que não tem emissões atmosféricas; na biotecnologia e nas áreas da tecnologia profunda. As próprias regiões e os países, que não têm a capacidade de fazer ajudas de Estado, como faz a Alemanha ou a França, têm a possibilidade de utilizar os fundos de coesão para apoiar e atrair essas empresas estratégicas, precisamente para que não haja, ao fazer todo este apoio às indústrias de futuro, um desequilíbrio entre as regiões que estão em países que têm essa capacidade para dar ajudas de Estado e as outras que estão em países que não têm essa possibilidade.

JPN – As leis verdes podem pôr em causa a reindustrialização da Europa?

EF – Não. A questão ambiental é uma questão em que a Europa apostou e continua a apostar. A ideia é que as empresas europeias, porque estão neste ambiente, que é muito mais sensível e muito mais estimulador do cumprimento de normas ambientais e de uma pegada ecológica menos forte, que consigam desenvolver o know-how e as tecnologias que lhes permitem ser liderantes no mercado global. É evidente que estamos particularmente atentos à retenção dentro da Europa deste know-how, porque este conhecimento, por vezes, é desenvolvido na União Europeia, pois é utilizado e capturado por outros espaços, como a China, que absorvem o valor acrescentado que foi desenvolvido aqui.
Há também a preocupação de proteger a indústria europeia através de barreiras alfandegárias, pelo menos para quatro setores neste momento, para que não aconteça algo que também aconteceu no passado, que é termos regras muito rígidas internas e depois os importadores fazerem a importação sem cumprirem as mesmas regras.
Em todos os setores, é importante ter-se consciência disto, mas analisar-se em detalhe de que forma e a que ritmo é que esta adaptação pode ser feita, porque, desde o sector agrícola a todos os sectores industriais, há uma revolução que está em curso. Também é para isso que existem os fundos estruturais e o PRR. O grande investidor público em indústrias ambientais acaba por ser a política de coesão, porque mais de um terço é dedicada exatamente a estimular a mudança de processos tecnológicos, o desenvolvimento de economias circulares.
É preciso que as empresas – grandes, pequenas, médias – percebam que este trajeto está a ser feito, que este é o futuro. Já vimos no IRA [Inflation Reduction Act ou Lei de Redução da Inflação, aprovada em 2022] da América uma reação a esta agenda ambiental. Também a China começa a valorizar e a entrar na concorrência das indústrias tecnologicamente limpas. Portanto, há toda uma dinâmica que, a partir da Europa, se começou a generalizar, e acho que isso é muito bem-vindo, se, de facto, quisermos sobreviver neste planeta.
Editado por Inês Pinto Pereira