Com o agravamento da guerra em Gaza, as condições das comunidades que vivem na Faixa de Gaza continuam a degradar-se. O JPN falou com membros de uma organização não governamental para perceber o dia a dia de um trabalhador humanitário neste território.

Mais de 30 mil pessoas morreram em Gaza, mais de 70 mil ficaram feridas e mais de um milhão foram deslocadas, desde que Israel lançou uma ofensiva sobre a Faixa de Gaza, na sequência dos eventos de 7 de outubro, segundo as Nações Unidas. No terreno, várias organizações não governamentais tentam diariamente dar resposta às necessidades das comunidades que vivem nesta zona e que são afetadas pelo conflito.

Saaed Al-Madhoun, gerente de programas de emergência em Gaza da organização humanitária CARE (Cooperative for Assistance and Relief Everywhere), é um dos trabalhadores humanitários que está diariamente no terreno. Ao JPN, conta que as condições de vida são “desafiantes”.

“As maiores dificuldades que enfrento são a constante ameaça de conflito e violência, o acesso restrito a necessidades básicas, como água potável, eletricidade e cuidados de saúde, e o custo emocional de testemunhar o sofrimento das pessoas que estou a tentar ajudar”, explicou o palestiniano. “É difícil planear o futuro e manter um sentido de normalidade devido à guerra em curso, às telecomunicações extremamente deficientes, aos desafios de transporte, à falta de eletricidade e à instabilidade económica”, acrescentou.

O diretor executivo da Amnistia Internacional, Pedro Neto, disse ao JPN que “o grande perigo resulta da imprevisibilidade do próprio conflito”. “O escalar do conflito não tem respeitado de modo algum aquilo que são as convenções de Genebra, ‘as regras da guerra’. Genericamente, [estas regras] dizem que civis e trabalhadores humanitários ficam fora dos conflitos, são pessoas e atores que nos teatros de guerra têm de ser protegidos. E isto não tem acontecido”, explicou.

Segundo o Aid Worker Security Database (AWSD), 203 trabalhadores humanitários morreram em Gaza desde 7 de outubro de 2023. No início de abril, sete trabalhadores humanitários da World Central Kitchen (WCK) – três britânicos, uma australiana, um polaco, um norte-americano-canadiano e um palestiniano – morreram em Gaza, após um ataque israelita com drones.

Francis Hughes, diretor de resposta da CARE na Cisjordânia e em Gaza e supervisor da equipa de Saeed Al-Madhoun, disse que “nenhum lugar em Gaza é seguro”.

“A morte dos sete membros da WCK foi extremamente trágica, mas este não é um fenómeno recente, houve muitos outros trabalhadores humanitários mortos desde o início da crise. Mas não nos podemos assustar e parar de distribuir ajuda e assistência vital. Na semana seguinte, haverá mais [trabalhadores] humanitários mortos e não nos podemos dar ao luxo de parar agora ou de reavaliar, temos de continuar. Continuaremos a seguir as medidas de desconflito, mas todos os que vão para Gaza como trabalhadores humanitários sabem que existe um elevado risco de morte e de ferimentos”, acrescentou.

O diretor de resposta explicou ainda que a equipa em Gaza foi deslocada em diversas ocasiões e que tem de procurar comida, abrigo, espaços seguros para eles próprios e para as suas famílias todos os dias.

Apesar do perigo e das condições precárias, o palestiniano, de 40 anos, disse nunca ter ponderado suspender o seu trabalho na ajuda humanitária. “Embora a ideia tenha passado pela minha cabeça em tempos particularmente difíceis, a necessidade de assistência em Gaza é imensa e acredito que o nosso trabalho faz uma diferença significativa nas vidas das pessoas afetadas pela crise”, afirmou.

“O que me motiva a continuar o meu trabalho humanitário é a resiliência e a coragem do povo de Gaza. Ver o impacto do nosso trabalho na melhoria da vida de mulheres, crianças e idosos, mesmo que de forma pequena, e a gratidão dos membros da comunidade que servimos dão-me esperança e motivam-me a continuar, apesar dos desafios”, concluiu.

CARE envia ajuda humanitária por via terrestre. Foto: DR

“Gaza está inserida num contexto muito volátil, é um ambiente muito sensível”

Nem todos podem fazer parte da equipa da CARE em Gaza. Para integrar a organização, os trabalhadores têm de ter experiência em trabalho humanitário e pertencer à CARE, no mínimo, há cinco anos. Todos são da área e conhecem bem a situação no terreno.

Francis Hughes, diretor de resposta da CARE em Gaza, explicou que a equipa “está a trabalhar em Gaza, porque [os seus elementos] são de Gaza”.

Conhecem o contexto mais do que eu e mais do que os voluntários internacionais que vêm dar apoio, sabem com quem falar, o que está a acontecer no terreno e também são altamente qualificados para dar resposta. A minha especialidade é sistemas de emergência, mas a da equipa é operações terrestres. O meu conhecimento é a ponta do iceberg em comparação com o que eles sabem”, afirmou.

O diretor de resposta disse que todos os trabalhadores humanitários receberam treinos de segurança. Tal como acontece com outras ONG, a CARE informa o exército israelita sobre as ações e localizações dos seus trabalhadores humanitários para minimizar o risco de ataque. Mas, segundo Francis Hughes, esta medida “não tem sido respeitada”. A equipa da CARE, situada em escritórios fora do território de Gaza, mantém o contacto constante com os trabalhadores que estão no terreno para os informar sobre possíveis ataques, previstos pelas Nações Unidas.

Falar com outros membros da equipa nem sempre é fácil. Francis Hughes mantém contacto com os trabalhadores, incluindo Saeed Al-Madhoun, através do Whatsapp, Skype e email, quando os serviços de Internet e telemóvel estão a funcionar. Quando não estão, a equipa tem de se dirigir ao Centro Conjunto de Comando de Operações Humanitárias (JHOC, na sigla em inglês), criado pelas Nações Unidas, que tem serviços de telecomunicações constantes.

“Gaza está inserida num contexto muito volátil. É um ambiente muito sensível para trabalhar. Conhecer as comunidades e a forma como a sociedade está estruturada é uma mais-valia que me faz sentir mais apto. [Desde que estou na organização], tive a oportunidade de trabalhar em estreita colaboração com parceiros e comunidades locais, o que me permitiu interagir com várias pessoas com diferentes faixas etárias, ter experiência em lidar com diversidades e ser capaz de gerir e resolver problemas”, contou Saaed Al-Madhoun ao JPN. 

Atualmente, a prioridade da ONG é dar assistência em cinco áreas: água e saneamento (através do transporte de água e kits de higiene); saúde (clínicas móveis); proteção de civis; segurança alimentar; e abrigo

A intervenção da ONG nesta zona não é recente, já que a CARE está presente em Gaza desde 1948. Antes do conflito, cerca de 800 camiões circulavam por dia em Gaza. Agora, reduzimos para cerca de 22 camiões. Só há uma passagem fronteiriça principal aberta, que é Rafah, no Sul de Gaza. Todos os recursos são enviados por via terrestre. É o mais eficaz e o mais barato. Além disso, não temos acesso ao espaço aéreo. Os governos estão a entregar recursos através desse meios, mas as organizações humanitárias não têm acesso”, disse o diretor.

Antes dos recursos saírem do Egito rumo à Faixa de Gaza, a equipa avalia e cria uma lista, na qual são apontadas as pessoas que precisam de assistência com maior urgência. Se tivermos 500 kits para distribuir, temos uma lista de cerca de 600 pessoas, porque o conflito muda a cada dia. Há muitas pessoas a morrer”, explicou Francis Hughes.

O diretor de resposta disse ainda que distribuir os kits através de lançamentos aéreos não é a melhor solução, já que a organização não pode “supervisionar quem recebe os kits, porque geralmente são os mais fortes e os mais aptos que os recebem”. “Também existe um alto risco de cair nas mãos de atores armados. Além disso, já ouvimos relatos de inúmeras pessoas mortas ou feridas em consequência destes lançamentos”, contou.

“Não parece que a situação vai melhorar”

O futuro do conflito em Gaza e dos trabalhadores que lá estão é incerto. “Trabalhamos sem parar, as coisas mudam todos os dias, então, não há nada que possa ser planeado. Estamos constantemente a planear o pior cenário possível e isso é incomum em comparação com outros conflitos. As equipas em Gaza e as equipas na Cisjordânia não dormem há meses, porque apenas nos concentramos em prestar apoio imediato para salvar vidas”, afirmou Francis Hughes.

Não parece que a situação vai melhorar. Noutros conflitos, às vezes, há uma espécie de pausa na luta ou o conflito está concentrado numa área específica. Aqui, a única constante são os bombardeamentos e a incursão de soldados. Ainda nem começamos a ver o que vem a seguir. Penso que não vamos olhar para isso por muito tempo”, disse. 

Organizações não governamentais, como a World Central Kitchen, interromperam as suas operações em Gaza face à escalada do conflito. A CARE não tem planos de abandonar o terreno, enquanto organização.

No entanto, qualquer membro da equipa pode desistir e sair de Gaza em qualquer momento sem perder o apoio da ONG. No entanto, essa saída de Gaza, mesmo que apoiada pela CARE, pode não estar totalmente garantida. Hughes reitera que a organização tem “muito pouco controlo” sobre o que acontece em Gaza. “Os pontos de acesso dentro e fora de Gaza são muito limitados. Se houver uma incursão israelita no terreno, podemos ficar com pessoas presas lá. Portanto, temos de ter planos em vigor. Temos kits para a equipa, que incluem dois meses de alimentos, no caso de não ser possível realizar uma evacuação de emergência”, esclarece.

Francis Hughes disse ainda ao JPN que, nos próximos meses, o número de trabalhadores humanitários em Gaza pode começar a diminuir, uma vez que Israel não está a renovar os vistos dos elementos que integram as equipas das organizações não governamentais. Esta situação poderá, segundo o diretor, sobrecarregar os recursos das outras ONG e piorar a situação da população em Gaza.

Sobre a degradação das condições humanitárias, Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional, afirma que “o respeito pelo direito internacional, pelos civis, é aquilo que distingue a civilização da barbárie“. “Creio que é evidente que as vidas humanas de civis têm de ficar de fora da guerra e que não pode haver punições coletivas e deixar aquela gente morrer à fome e sem cuidados de saúde”, concluiu. 

Artigo editado por Inês Pinto Pereira