O título do último álbum dos Mão Morta, “Nus”, tem como ponto de partida um poema de Allen Ginsberg. Já antes vocês tinham sido convidados para trabalhar poemas de Heiner Müller. Qual é a relação dos Mão Morta e do Adolfo com a poesia?
A minha relação com a poesia é essencialmente a de leitor. Gosto de ler poesia.

Não se considera um poeta, então?
Não… Eu escrevo letras para canções, o que obedece a um formato específico que não tem nada a ver com escrever poemas, que é muito mais abstracto, muito mais profundo.

Mas não há uma relação entre escrever letras e escrever poemas?
É evidente que há sempre relações, como também há uma relação entre a poesia e a prosa. Mas do meu ponto de vista são coisas diferentes. Nós trabalhamos a partir de textos do Heiner Müller, que são considerados poesia – apesar da maior parte serem notas que ele depois usou em peças de teatro – e musicámos essa poesia. O que é certo é que, considerando que aquilo é poesia, ela pode ser musicada, como qualquer poesia pode sê-lo. O inverso nem sempre acontece. Uma letra pode perfeitamente fazer muito sentido dentro de uma canção e não fazer sentido nenhum quando é lida. Só isso já é uma grande diferença entre letras de canções e poesia.

Mas então as letras de canção que podem ser lidas e entendidas no livrinho do CD são poesia?
É verdade que isso pode acontecer. Mas eu não lhes chamaria poemas por uma razão muito simples: é que, tal como no caso do Heiner Muller, essas letras não foram feitas com o objectivo de serem lidas. Existem para completar um outro todo que é uma canção. Há aí uma grande diferença de intencionalidade. A poesia moderna é uma coisa extraordinariamente visual, enquanto uma letra de canção não tem nada de visual.

Em 1984, o Adolfo editou um livro. Era um livro de poemas?
Era um livro de pseudo-poemas, de pequenas escritas. Tinha algumas prosas, as chamadas prosas poéticas. Efectivamente era um livro que pretendia ser de poemas, mas, sendo honesto, não tinha qualidade para ser assim chamado. Esses textos foram recuperados para o livro que saiu há dois anos, o “Estilhaços”.

O Adolfo costuma dizer que não é um cantor mas um “diseur”…
Não é bem essa palavra, mas é equivalente…

Pode por isso ser considerado um declamador de poemas?
É exactamente o termo “declamador” que eu costumo usar e que, por acaso, está muito ligado à poesia. Na música, utilizo uma voz mais declamada do que cantada. São raros os momentos em que canto, efectivamente. Mas não se esgota na declamação porque há também uma interpretação do texto.

À partida, um bom declamador também interpreta o texto…
Sim… Mas neste caso não é uma declamação de poesia, é uma declamação de texto.

Qual é a sua visão acerca das letras que são escritas em Portugal, na actualidade? Há um bocado aquela ideia de uma tal preponderância da música sobre as letras que estas acabam por ser quase palavras atiradas à sorte…
É verdade que a regra é essa, o que não faz dela absoluta. Há boas excepções como o Rui Reininho ou o Manuel Cruz. Também há os clássicos como o Sérgio Godinho e o José Mário Branco, mas aí já há uma certa preponderância do texto sobre a música. No universo pop-rock, as coisas funcionam mais ao contrário.

E as bandas que cantam em inglês… Fazem-nos para esconder algo?
Exactamente… para esconder as suas ineficácias linguísticas. Notam-se menos mas acabam por existir, na mesma. Mas há excepções, como o David Fonseca, por exemplo, que escreve muito bem em inglês.

O que é que o Adolfo lê, dentro da poesia?
Não leio coisas muito específicas. Procuro muito. Ultimamente, tenho lido coisas portuguesas. Tenho andado a ler e, de certo modo, a tentar traduções do Maiakowski, que não é nada fácil… Ando um pouco ao sabor do acaso.

Carlos Luís Ramalhão