Médico e professor catedrático da Faculdade de Medicina do Porto [FMUP], entre muitas outras funções, Daniel Serrão conta-nos um pouco da sua vasta história… Uma vida marcada pelo trabalho na área das ciências e da bioética, mas também pela revolta contra o sistema pós-25 de Abril.

(Esta entrevista foi realizada por altura das comemorações dos 30 anos do 25 de Abril)

Depois de se formar em Medicina, como é que foi o seu percurso, dentro ainda do Estado Novo?

Nasci em 1928, o que significa que nasci exactamente com a Revolução que depois criou o Estado Novo. Nunca conheci nenhum outro regime. A verdade é que não tínhamos nenhuma formação política. Nunca me interessei pela política nacional. Interessava-me pelo meu trabalho, por formar-me… Formei-me em 1951, fui assistente da faculdade [FMUP], fiz a carreira toda até ser professor e depois doutorei-me.
Os funcionários públicos – e um professor é um funcionário público – tinham, quando tomavam posse, de jurar que cumpriam as disposições da Constituição da República Portuguesa “com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. Quer dizer que a escolha era-nos apresentada entre o regime de autoridade que estava instalado – dirigido pelo Professor Oliveira Salazar e o comunismo e as ideias subversivas.
Se pergunta a mim, com certeza que eu era anti-comunista – como depois os comunistas dizem – anti-comunista primário! Quer dizer, o comunismo era o mal absoluto… Então, entre o mal absoluto e uma coisa que ía funcionando, que era o governo do Estado, o governo da Nação e tal… No fundo, a gente encolhia os ombros e andava para a frente…

Qual é a memória que guarda do 25 de Abril?

Aquilo que realmente mais me surpreendeu, devo dizer, foi a “saída da toca” de um conjunto de pessoas que viviam, colaborando no sistema, trabalhando, fazendo as suas vidas normais – como médicos, até assistentes da faculdade… E que, de repente, de um dia para o outro, se transformaram em vingadores, julgadores, em indivíduos que queriam exercer o poder, porque eram, efectivamente, membros do tal Partido Comunista [risos] ou das ideias subversivas que a gente tinha que combater… Portanto, as pessoas tinham uma vida dupla, oculta: estavam dentro do sistema, aparentemente, e quando tiveram esta oportunidade, transformaram-se em donos, em proprietários, procurando exercer um poder absoluto… Porque esse era o objectivo do partido comunista: tomar conta do poder… Não para criar democracia, mas para transformar um regime de autoridade noutro regime de autoridade, mas agora deles… E isso foi um período difícil para mim…
Acabei por ser demitido de todas as minhas funções, em Junho de 1975. No dia 24 de Junho, leio no jornal que tinha sido demitido… Nunca tive nenhum processo, nunca fui ouvido por nada, nem por ninguém… Fui demitido…! Deixei-me estar…
Comecei a trabalhar, a fazer a minha vida particular… Montei um laboratório e um ano depois, fui readmitido, também pelo mesmo sistema… Nunca fiz nada para ser readmitido, como não tinha feito nada para me demitirem.

Como foi voltar à faculdade?

A minha postura em relação à faculdade mudou completamente. É evidente que a gente só cai uma vez, não é? Eu tinha confiança no Estado, na Administração Pública. Fui demitido ilegalmente, e sem qualquer justificação… A partir daí considerei que o Estado não era “uma pessoa de bem”, e continuo a pensar isso hoje, claramente. Eu disse claramente quando entrei: “A minha prioridade daqui em diante não é o ensino, nem é a investigação, nem é a direcção de serviço, nem é a progressão de pessoas, nem é coisa nenhuma… São os meus interesses pessoais. É desses que eu vou tratar daqui em diante até atingir o limite de idade e farei o que me apetecer… Venho cá quando eu quiser, porque também me mandaram embora e não me perguntaram se eu estava disposto a ir para casa ou não…”

O que é que mudou na ciência portuguesa com o 25 de Abril?

Isso foi muito importante… A ciência, em Portugal, antes do 25 de Abril era apoiada pelo Instituto de Alta Cultura, de que eu fui geral e conselheiro durante muitos anos… Mas tinha pouco dinheiro. O Instituto da Alta Cultura tinha umas verbas ridículas para a época. Mas lá ia fazendo o que podia: mantinha os centros de investigação aqui no Porto, Coimbra, Lisboa…
Não se quer reconhecer isso, mas o grande salto qualitativo da investigação em Portugal que ocorreu, realmente, depois do 25 de Abril de 1974, só foi possível porque nos anos anteriores muitos jovens acabados de se formar tinham sido nomeados com Bolsas do Instituto da Alta Cultura para fazerem estágios de investigação na França, na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, na Noruega… Em países onde a investigação científica estava mais avançada.

A investigação cresceu, portanto?

A investigação cresceu muito… No entanto, ainda temos um número de investigadores pequeno. Uma massa crítica de investigadores que ainda é pequena…

Mais de trinta anos volvidos, qual é o balanço que faz da evolução da ciência?

Acho que a ciência no nosso país cresceu. A investigação em Portugal cresceu. Estou a falar da minha área, da Biomedicina, da Biologia Molecular, da Genética, onde temos hoje cultores de grande qualidade com repercussão internacional e que são investigadores que tanto fazia estarem aqui como nos EUA que seria a mesma coisa.

Letícia Amorim