A praxe académica, assunto sempre sensível e muito controverso na sociedade portuguesa, especialmente entre jovens estudantes, está novamente a ser debatida. A razão pela ressurgência deste assunto é a entrega e admissão a discussão na Assembleia da República de um projeto de resolução em relação à tradição académica, que tem vindo a ser desenvolvido pelo grupo de deputados do Bloco de Esquerda (BE).
A admissão a discussão deste projeto de resolução dos deputados bloquistas, não tem uma visão proibitiva das praxes académicas, mas reitera a posição antagónica do Bloco em relação às mesmas. O documento em si explica, em primeiro lugar, a posição do partido político em relação às praxes, usando de seguida vários exemplos de casos de praxes violentas para se justificar, e culmina em cinco propostas de medidas que serão agora avaliadas pelos restantes deputados parlamentares no plenário. Luís Monteiro, deputado do Bloco e simultaneamente estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) é um dos co-assinantes do projeto de resolução, e falou com o JPN sobre o mesmo.
O caso pessoal
Luís Monteiro não tem problemas em admitir que nunca participou na atividade praxística, afirmando mesmo ter sido sempre crítico da mesma. “Sempre tive um contacto próximo com as realidades da praxe porque na faculdade onde estudei, em Letras aí no Porto, há uma praxe bastante grande”, recorda. Apesar de referir ter consciência de que muita gente não toma parte na praxe, a sua presença é ainda assim fortemente sentida, mesmo por quem opta não participar nela. “Era uma realidade que me tocava de forma muito próxima, independentemente de fazer parte ou não. Era uma realidade com a qual convivia diariamente”, explica.
Ainda assim, Luís Monteiro revela não ter usado a sua experiência pessoal no momento da redação do documento, pelo menos não de forma direta. “Não é pela minha experiencia em Letras em específico. Obviamente que ela conta, e é o retrato que eu tenho, mas isto é um trabalho de grupo, de conjunto e de investigação”, clarifica.
Segundo explica Luís Monteiro, este projeto de resolução “já tinha sido apresentado na legislatura anterior”. Embora esta versão de 2015 contenha “algumas mudanças”, o mesmo é “mais ou menos aquilo que já tinha sido feito anteriormente”. O projeto foi na altura chumbado pelo governo de coligação entre PSD e CDS-PP. “Mesmo nessa altura já tinha sido uma das pessoas que tinha pensado e redigido esta redação, e agora voltamos a apresentá-la”, refere o jovem.
A primeira das cinco medidas pretendidas pelo Bloco consiste na realização de “um estudo plural com várias entidades”, que “faça um levantamento nacional de todos os problemas da praxe”. Esta medida prevê portanto a realização de um estudo dos problemas maiores da praxe, nomeadamente os casos de violência física e psicológica, que seja também capaz de fazer um levantamento dos sítios onde a praxe é mais violenta. Esse estudo seria idealmente executado pelo Ministério da Educação em conjunto com outras entidades.
O segundo ponto abordado pelo documento diz respeito ao desenvolvimento por parte do mesmo ministério de um folheto informativo, a ser distribuído a escala nacional, a todos os alunos de primeiro ano do Ensino Superior no início da cada ano letivo. A ideia é que os folhetos contenham informações, não só sobre a praxe, mas também “sobre formas alternativas de integração das escolas e das faculdades”.
A terceira medida assinada pelos deputados esquerdistas é dirigida às instituições de ensino e pretende que essas assumam posições críticas e anti-praxe. “Não basta que a posição seja ‘proibir as praxes dentro do espaço físico da faculdade’, precisa-se, sim, que os próprios conselhos diretivos não legitimem a praxe através, por exemplo, de convites para cerimónias, que muitas vezes acontecem, especialmente no início do ano”, afirma Luís Monteiro.
Outra das ideias referidas no projeto de resolução é a da “criação de uma rede de estudantes do ensino superior que permita um acompanhamento psicológico e jurídico aos estudantes que solicitem apoio e que denunciem situações de praxes violentas”, segundo o deputado. Nessa rede seria possível reportar casos de praxes violentas ou abusivas, assim como indicar lugares onde as vítimas de tais casos pudessem receber o apoio de que necessitariam.
Por último, o quinto ponto quer obrigar as instituições do Ensino Superior “à realização de atividades de receção aos novos alunos, de caratér lúdico e informativo”. Em concreto, o Bloco pretende a criação de um “gabinete de apoio à integração académica” em cada escola, que tenha sempre informações disponíveis sobre toda a parte formal e curricular de cada um desses estabelecimentos de ensino superior. “A ideia da criação deste ‘gabinete de integração’ é exatamente a de não entregar à instituição ‘praxe’ a possibilidade – ou muitas vezes até o dever – de fazer este tipo de trabalho”, revela o bloquista.
Retirar a legitimidade
Com isto, a ideia é criar “canais alternativos para uma integração diferente”. Luís Monteiro acredita que esses são necessários, pois “tiram a legitimidade que hoje a praxe tem nas instituições”, onde aparece quase como órgão. “Não é órgão nenhum, que não existe juridicamente, mas aparece como um órgão capaz de resolver os problemas de integração”, acrescenta o deputado. Segundo o mesmo, isso leva a que as próprias instituições acabem por se “desresponsabilizar” das tarefas de integração dos seus novos alunos. “É preciso começar a tirar esta legitimidade que se está a dar à praxe, de forma automática, que não tem nem deve ter”, diz o jovem.
Mesmo tendo essa posição antagónica para a praxe, Luís Monteiro clarifica que nem a sua posição, nem a do Bloco, é uma de proibição da prática tradicional. “O nosso objetivo nunca foi proibir a praxe. Aliás, nem nós temos uma visão proibicionista tanto em relação à praxe como a outras temáticas. Nós não temos uma visão proibicionista, mas temos sim uma visão de combate em relação a este tipo de práticas”, esclarece.
Para ele, a praxe é algo que se “combate diariamente com uma mudança cultural e política na forma como encarar os estudantes e de estar na faculdade”. Nesse sentido, o combate será realizado pelo Bloco e pelos seus ativistas “nos seus espaços, escolas e universidades” respetivos.
De qualquer forma, o assunto está longe de estar encerrado. Ficou no ar a promessa de que o assunto continuará a ser debatido, estando já organizadas “uma série de ações para breve”, independentemente do resultado da discussão no plenário. “Isto é um assunto do qual o Bloco nunca largou mão, e vai continuar a falar. Entregamos o projeto de resolução e esperamos que seja aprovado agora com a nova maioria parlamentar. Mas não largaremos esta temática, independentemente da sua condução e de como ele será votado. Continuaremos a fazer este combate e denunciar todo o tipo de praxe violenta e deste tipo de práticas”, disse Luís Monteiro.
Do lado das associações
Por seu lado, as associações de estudantes são cuidadosas ao falar neste assunto. Algumas recusam-se a ter qualquer tipo de posição sobre o mesmo, como é o caso da associação de estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).
Tiago Miranda, presidente da associação de estudantes da Faculdade de Economia do Porto (AEFEP), revela à conversa com o JPN que as praxes não são problema na sua faculdade. “Aqui na FEP nós temos a nossa praxe, e não temos, julgo, nenhuns problemas com estudantes ou casos mais mediáticos”, afirma. Admite que a praxe “é, de facto, importante para a integração dos estudantes na faculdade” mas apressa-se a deixar claro que “ninguém de facto é obrigado a ir à praxe, só vai quem quer”. O mesmo considera ainda que “há um regime muito grande de liberdade aqui na faculdade. Vai quem quer, e quem não quer não se sente minimamente ameaçado nem violentado”.
O jovem ainda refere ter tomado conhecimento, no ano passado, de várias iniciativas de entregas de folhetos contra as praxes abusivas. A “mensagem era clara: não às praxes violentas. Essa mensagem foi passada sem problema nenhum”, revela Tiago Miranda. O que transparece é que a praxe é tolerada nesta faculdade precisamente por se desenrolar num ambiente mais sereno do que os casos de praxe que foram usados como exemplos negativos na elaboração do documento. Por isso, Tiago Miranda e o seu executivo defendem a praxe, mas apenas se ela estiver “nos moldes em que está a decorrer neste momento na Faculdade de Economia do Porto (FEP)”. “Sei que o número de estudantes na praxe está a diminuir, mas da forma como está a decorrer aqui na FEP, nós somos a favor que se mantenha”, acrescenta.
André Ramos, presidente de associação de estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (AEFCUP), também falou com o JPN sobre este assunto, procurando deixar clara a noção de neutralidade da sua direção. “É uma coisa que temos de respeitar, grande parte da comunidade é a favor, nós temos uma posição neutra. Nós não podemos tomar uma posição 100% contra ou a favor porque temos alunos nas duas opções”, precisa este. Mesmo assim, deixou a entender que a praxe é tolerada, desde que se adeqúe ao que os novos alunos precisem. “A nível de praxe, precisa mesmo de ser de integração e não abusiva, que seja uma forma de conhecer a cidade, a vida noturna, mas não num sentido violento. Assim não somos contra”, admite. O presidente da AEFCUP deixou ainda o aviso de que ele e o seu executivo irão “intervir quando tomar conhecimento de praxes abusivas”. “Tomaremos conta da situação para garantir que isso não aconteça e que os culpados sejam responsabilizados”, nota.