É um físico teórico que escreve um romance”. Assim se vê Orfeu Bertolami ao escrever uma obra de ficção que tem como pano de fundo o período da Segunda Guerra Mundial. O livro, lançado na passada sexta-feira (18) no salão nobre da reitoria da Universidade do Porto, surge da vontade de “reagir aos autores que dizem coisas que nos tocam” e “lançar perguntas e indagações aos leitores”.

Apesar de este ser – entre poesia, contos e peças de teatro – o seu quinto livro de caráter literário, Bertolami não se assume como escritor e afirma que aquilo que escreve é, à semelhança de “qualquer contribuição que damos ao conhecimento”, o “resultado de uma integração extraordinariamente complexa daquilo que herdámos e aprendemos ao longo dos tempos”. “Não sou um escritor, sou um leitor”, resume.

Dos factos à ficção

O romance parte de um conjunto de acontecimentos factuais que remontam ao período do nazismo e do Holocausto. A história “tem início no fatídico dia 30 de janeiro de 1933, quando Hitler toma o poder na Alemanha, e termina quando acaba a Segunda Grande Guerra”.

Quanto às personagens, o autor destaca Albert Einstein, “o homem mais importante do século XX”, e Adolf Hitler, “uma personagem sinistra, que aparece ao longo da história através das ações que vão sendo levadas a cabo, muitas vezes, pelos seus colaboradores”.

De um modo geral, o autor procurou manter inalterados os factos históricos, “embora haja alterações pontuais”. Assim foi na criação de um episódio em que Einstein é capturado pelos nazis e obrigado a colaborar na construção de armas nucleares para a Alemanha. “Obviamente, ele é coagido a fazê-lo, assim como outros cientistas que também são capturados com este propósito”, conta o autor.

Nesta obra, podemos encontrar “a análise de inúmeras questões relacionadas com o poder e com as lições que este período tão negro nos dá”. Orfeu Bertolami espera que, da leitura do livro, possa resultar “uma reflexão sobre a possibilidade, ou não, de estes acontecimentos se repetirem”. Para o autor, “a História nunca se repete exatamente da mesma forma, mas frequentemente se metamorfoseia, e apresenta-se de forma a proporcionar-nos situações que são muito próximas daquilo que já foi vivido”.

O testamento de Hitler está integrado num dos capítulos da obra. Foto: Hugo dos Santos

Colocar a História “em perspetiva”

O autor considera “extremamente importante” que os jovens “entendam a dimensão do que aconteceu”. “Os números variam, mas estamos a falar entre 65 e 80 milhões de mortos. Estamos a falar da destruição quase total da Europa civilizada, por um país da Europa civilizada”, afirma o professor.

A propósito do modo como as questões do Holocausto são analisadas hoje, Orfeu Bertolami diz analisar o fenómeno de duas maneiras. “Uma coisa é olharmos para o Holocausto como um dos acontecimentos históricos mais trágicos de sempre, outra coisa é colocá-lo em perspetiva. E, quando o colocamos em perspetiva, temos de pensar de forma alargada: quando temos um partido político que quer fazer uma cerca sanitária a um certo grupo de pessoas que fazem parte de uma etnia, estamos a falar do mesmo fenómeno, são manifestações da mesma coisa. Este é o mesmo discurso que estava no ‘Mein Kampf’”.

Orfeu Bertolami na cerimónia de lançamento do livro. Foto: Hugo dos Santos

Para o escritor, é “fundamental” que as publicações referentes a este período da História sejam “colocadas em perspetiva”, uma vez que, “se não o fizermos, corremos o perigo de cair em movimentos revisionistas”. No entanto, o investigador reconhece que é preciso “respeitar a inteligência das pessoas” e, por isso, opta por “apresentar os factos e acontecimentos, para que [os leitores] tenham elementos para decidir”. “A minha função não é ensinar-vos a pensar, é incitar-vos a pensar. Não posso fazer isto de uma forma dirigida e sectária, porque vocês são inteligentes demais para isso, vocês têm as vossas próprias ideias e capacidade de julgamento, mas é importante que tenham consciência do que aconteceu”, considera o autor.

“A interpretação da História é sempre muito complexa e é fundamental termos muitas visões. Nunca teremos todos os documentos, todos os elementos; temos sempre de construir uma narrativa com aquilo que temos, mas temos de garantir que é uma narrativa fiável, objetiva, o mais próxima possível da realidade”, defende Orfeu Bertolami.

Contudo, a mensagem é clara: “temos de fazer todo o possível para que isto não se repita”.

Quando temos um partido político que quer fazer uma cerca sanitária a um certo grupo de pessoas que fazem parte de uma etnia, estamos a falar do mesmo fenómeno, são manifestações da mesma coisa. Este é o mesmo discurso que estava no Mein Kampf.

Ciências e Humanidades: faces opostas do mesmo prisma?

O cruzamento da História com a Ciência está presente em “A Solução Final”, mas a ideia de diálogo entre as várias áreas do saber deve estar presente quotidianamente, na perspetiva de Orfeu Bertolami. “A investigação histórica tem muito em comum com a investigação científica: estamos todos a tentar entender as coisas, cada um no seu campo específico de ação. São mundos que, frequentemente, vivem completamente separados, mas a separação não é total, nem é possível”, garante o físico.

“Na Ciência, procuramos coisas para as quais não temos ideia nenhuma, com elementos e interação entre partes que nos são invisíveis”, considera Bertolami. “No que se refere à História, estamos a falar de acontecimentos que têm impacto na vida das pessoas e esse impacto é, per se, indício das causas desses acontecimentos”, acrescenta.

O livro foi lançado na passada sexta feria (18), no Salão Nobre da reitoria da Universidade do Porto. Foto: Hugo dos Santos

Referências literárias e projetos futuros

Eu nunca termino um projeto sem ter outros projetos em mente”, afirma o professor, que alega ter já outros livros concluídos, à espera de serem editados. “Tenho outras ideias. Como sou um experimentalista e gosto de pensar na literatura como um campo de experimentação, eu gostava, também, de experimentar aquilo que é mais óbvio para um cientista: escrever um romance de ficção científica”, acrescenta o investigador, que sempre evitou este género por lhe parecer “uma espécie de batota: para um físico isso é muito fácil”.

No entanto, “editar os livros é um exercício de paciência”. “Temos de entender as limitações dos editores e as limitações do país”, diz o autor, que já tem este livro – agora editado pela U.Porto Press – terminado desde 2014.

Uma vez que se considera, “acima de tudo, um cientista e leitor”, Orfeu atribui uma relevância aos autores dos livros que leu ao longo da vida. “Há autores que estão comigo há 50 anos: Kafka mudou a minha vida, quando eu tinha 14 anos. Mas a minha perspetiva altera-se, claro”.

Os livros ocupam um lugar central na vida do professor, que garante: “não houve um dia da minha vida em que não tenha lido. Passo as noites, ou a ler, ou a escrever”. Para Orfeu Bertolami, há inúmeras obras de ficção que “mudaram a humanidade para sempre” – “Leiam o D. Quixote e o mundo muda a partir dali! Nós aprendemos tanto sobre a natureza humana, sobre a relação entre as pessoas, que saímos profundamente enriquecidos da experiência. E os livros têm essa função – de trazer-nos e colocar-nos face a face com experiências que são impensáveis. Colocam-nos cenários distópicos, paradisíacos ou de confronto, são todas antecipações importantes, não daquilo que vai acontecer, mas daquilo que pode acontecer. Esta é a dimensão mais extraordinária do exercício literário”.

Para Orfeu Bertolami, “a boa literatura consegue apresentar as coisas como elas são: ambíguas, sem pretos e brancos, mas sempre com muitos claros e escuros”.

Eu nunca termino um projeto sem ter outros projetos em mente.

O autor do livro é professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). Foto: Hugo dos Santos

Artigo editado por Filipa Silva