Eleito, em 2015, o patologista mais influente do mundo, Manuel Sobrinho Simões é o convidado deste Memórias do Meu Porto. Cruzamos caminho com o médico e professor na Foz, antes de continuarmos a nossa jornada rumo ao Hospital de S.João, onde, todos os dias, continua a treinar o olhar ao microscópio e a investigar o cancro. Oiça ou leia aqui na íntegra o episódio de Memórias do Meu Porto.

Transcrição completa do episódio

[Música]

Lara Castro

Este é o Memórias do Meu Porto. Aqui exploramos o som que remete para a memória. 

[som ambiente de praia]

Nádia Neto

Com olho treinado para o microscópio e para o mundo, o médico que nunca viu doentes é também professor, Manuel Sobrinho Simões abriu portas na investigação do cancro da Tiróide.

[som ambiente de praia e música]

Manuel Sobrinho Simões já foi considerado o patologista mais influente do mundo. Nádia Neto/JPN

[som ambiente do encontro com Manuel Sobrinho Simões]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Bom dia. Já fui ao Senhor Ferreira, que é ali abaixo. E já fui tomar café. Perguntei e ainda é vivo o avô. É o neto do Senhor Ferreira.

[Registo áudio – Lara Castro]

E era lá que aconteciam as tertúlias?

[Registo áudio – Lara Castro]

Eram lá que aconteciam as tertúlias.

Nádia Neto

É junto à pérgula da Foz do Douro, que está o restaurante do senhor ferreira, espaço de tertúlias há mais de 50 anos. Um dos dois locais que o Sobrinho Simões, prémio pessoa em 2022, mais associa às memórias que tem do Porto.

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Nós descíamos e Júlio Machado Vaz também. Vínhamos para ali ao sábado e depois começamos a juntar uma tertúlia. Foi a primeira tertúlia que fizemos e ainda temos hoje. Éramos muito miúdos e nessa altura falávamos de política. Tinha havido o 25 de abril e andávamos todos entusiasmados com a Revolução. 

[som ambiente de praia]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Está a ouvir o som. É o som do mar. É muito engraçado, é o som do mar, as gaivotas e quando há vento, tem vento. 

[som ambiente de praia e gaivotas]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É bestial. Tem um cheirinho a mar. É muito giro, caramba. É o mar, é não ter limite. E depois é engraçado, também, para mim, esta ideia, porque havia os barquinhos ao longe, percebem? Isto, nunca foi bom para tomar banho. Nós nunca tomamos aqui banho. E nós quando íamos para a praia, íamos para Âncora, por exemplo. E nós somos muito do Norte. O que é muito importante, mas a água é fria como o caraças.

[som ambiente de praia ]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É para conversar, é uma coisa única. Os aviões a passar, os barquinhos ao longe. É muito engraçado. Mas eu nunca achei graça ao Porto, do meio, o Porto antigo. Para mim, o Porto é o Porto Atlântico. Apesar de tudo, acho muito bonito a Ribeira, mas a Ribeira tem sempre uma limitação: também é muito bonita, mas é Gaia. Eu lembro-me, aqui sempre, desta ideia de que o Porto é muito mais do que só a terra, é o mar, é o cosmopolita no sentido que a gente quando está no Porto vai para outros sítios. 

[som ambiente de praia e avião]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Para mim o que é impressionante e uma das razões porque deixei de vir aqui, é porque os meus netos não acham graça vir para aqui. Sei lá, os meus filhos iam procurar búzios e conchinhas. E os meus netos já não acham graça.

[Registo áudio – Lara Castro]

E que som é que fica dessas tertúlias?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É sobretudo a memória e a amizade. 

[Música]

“Este lugar para mim é o mar, é não ter limite”, expressou Sobrinho Simões, enquanto observava a Foz. Foto: Nádia Neto/JPN

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Agora o mar a bater, ouve-se muito bem. Eu preciso de ter a noção de que estou metido na vida, eu não quero sentir o silêncio. É o medo do desconhecido. Mas repare, eu sou muito medroso, tenho medo de tudo. Tenho da eletricidade, tenho medo do fogo, do gás. 

[Registo áudio – Lara Castro]

Como é que um homem da ciência tem medo de tudo?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Eu não sou da ciência, sou um médico, que teve medo de ser clínico, por causa da incerteza. Eu quis estudar as doenças e depois até comecei a estudar o cancro, na altura não sabia. Gosto muito de estudar doenças, mas eu não gosto de ser clínico. Quer dizer, por medo de não saber lidar, medo da incerteza. Aquilo que eu gosto mesmo é ser professor de medicina. E para isso é verdade que fiz alguma ciência, razoável, publiquei muita e tal, mas não foi nada…

Nádia Neto

E foi assim que, em 2015, se tornou o patologista mais influente do mundo. 

[Música]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Foi considerado como aquele que fez mais escolas, no fundo, escolas de Anatomia Patológica para ensinar a fazer diagnósticos de cancro. Quer dizer, fiz muita coisa no México, na Argentina, na Columbia, no Chile, no Brasil. Eu gosto muito de aprender, ainda hoje. Porque que ainda hei de andar a aprender se agora tenho 76 anos? Estou aprender para quê? Eu gosto de aplicar.  

Nádia Neto

Foi há 35 anos que Sobrinho Simões fundou o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, o Ipatimup. Um ano marcante para ele e para o mundo.

[Música]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

O ano de 89 é um ano do caraças. Porque em 89 caiu o murro [de Berlim] e Tiananmen, por exemplo. Morreu Khomeini e foi o fim da Guerra Fria no mundo, em 1989. E é neste ano que nós criamos o Ipatimup e Serralves também se foi criado.

[Registo áudio – Lara Castro]

E a fundação saiu destas tertúlias?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Claro, sempre. Porque nós falávam0s disto. 

[Registo áudio – Lara Castro]

Professor, qual é o próximo destino?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Agora vamos para o [Hospital] S.João. Comecei a ir para lá tinha 16 anos, foi há 60 anos que entrei pela primeira vez no S. João. 

[som ambiente da entrada no carro]

Nádia Neto

Entramos no carro e seguimos rumo ao Hospital S. João.

[Registo áudio – Lara Castro]

Ouve rádio ou música?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Ouço os noticiários e depois ouço o que está.

[Registo áudio – Lara Castro]

E que rádio ouve?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É sempre Antena 1. Sempre. Depois tenho aqui [no carro], se olharem para o lado, vêem as minhas coisas todas, vão ser, sobretudo, Jacques Brel e Leonard Cohen. Vocês conhecem esta música?

[Música Dance Me to the End of Love de Leonard Cohen]

[Registo áudio – Lara Castro]

É um caminho que fez bastantes vezes?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É um caminho que faço todos os dias. É este que faço. 

[Registo áudio – Lara Castro]

Mesmo reformado, não consegue estar parado?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Isso não. Continuo fazer exatamente a mesma coisa. Eu continuo a estar no S. João entre as 8h15 e as 8h20. Vou lá até à hora de almoço e à hora de almoço vou para o Ipatimup. 

[Registo áudio – Lara Castro]

E o Ipatimup nasceu de que vontade?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Tinha havido uma revolução. Nós éramos todos universitários, nós fazíamos muito gosto e eu queria ser universitário. Mas eu gostava de ter uma Universidade mais flexível e com mais capacidade de fazer diferença. Portanto, eu acho que a gente fez o Ipatimup porque tínhamos, por um lado, um reitor que queria fazer coisas na Universidade do Porto e um ministro que se chamava-se Mariano Gago, também acho que se tinha de desenvolver a ciência e a investigação para melhorar a Universidade.

[Música]

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Há uma coisa que vão ver no S. João. Aquilo chama-se o terrenos da Asprela. O Governo decidiu fazer um grande polo universitário e onde também tinha um hospital e onde tinha o IPO. E a ideia foi que todo aquele terreno, era para fazer um grande campus universitário. Entretanto em 1968, tinha havido a revolução francesa, em Paris houve o maio de 68, e o Salazar apanhou um susto com esta ideia de ter uma concentração muito grande de, no fundo, faculdades era um perigo. E, portanto, deixaram de ter ideia de pôr lá todas as faculdades. É por isso que a faculdade de ciências, arquitetura e etc, estão no Campo Alegre. 

[Música,  som ambiente a sair do carro,  entrada na Ala de Anatomia Patológica do Hospital S. João]

[Registo áudio – Lara Castro]

O que é a Anatomia Patológica?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É diagnóstico. Tem um cheirinho bom, que acho graça até, um bocadinho de solvente. Este barulho é típico. Vou mostrar-vos as lâminas. Isto são fragmentos que são cortados muito fininhos, já estão corados e é isso vamos ver ao microscópio. E depois perceber se é tumor benignos ou maligno. 

[Sobrinho Simões é interrompido por outro médico que explica o processo num laboratório da Ala de Anatomia Patológica]

[Registo áudio – Médico]

Nós transformamos amostra citológica ou espeleológica, em fragmentos maiores ou menores cancerigenos. Aqui é uma fábrica de produzir lâminas para o patologista dar o diagnóstico.

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Atenção tem de ser fininhas e coradas. 

[Registo áudio – Médico]

Com diferenciação cromática, porque se não, não se consegue diferenciar as diferentes estruturas tecidulares.

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Este é o meu mundo. Foi o meu espaço durante 60 anos.

[Som ambiente do corredor da Ala de Anatomia Patológica]

Nádia Neto

Mesmo reformado, é há 60 anos que o professor Sobrinho, como é tratado, chega pontualmente ao Hospital de S. João, parte do seu porto.

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

É um Porto muito marcado pelo meu trabalho, porque, no fundo, eu fui marcado pelo Porto Atlântico, sobretudo, por causa da família. Tenho muito poucas memórias do Porto que não estejam ligadas ao trabalho.

[Registo áudio – Lara Castro]

E para alguém que viajou tanto?

[Registo áudio – Manuel Sobrinho Simões]

Não compara com o Porto, por amor de Deus. Quer dizer, é a minha terra. [Risos]

Lara Castro

Foi mais um episódio de Memórias do meu Porto. Uma entrevista de Lara Castro e Nádia Neto a Manuel Sobrinho Simões, médico e professor. Vai a jpn.up.pt e consulta a galeria de fotografias ou lê a transcrição desta entrevista. Até ao próximo episódio onde cada som ecoa as memórias da cidade.

Tenho muito poucas memórias do Porto que não estejam ligadas ao trabalho“, garante sobre a cidade. Nádia Neto/JPN