“Creio que o mundo se divide entre os que ouvem e os que falam”, solta Connie, num jogo de palavras onde Martha se cala e lampeja raiva com o olhar. Do jogo de palavras para o jogo de espelhos, as personagens mexem-se num cenário feito de vidro e projectam as suas sombras para as paredes. E então falam para as paredes numa última tentativa egocêntrica de serem escutadas.

“Quando Deus quis um filho” estreia amanhã, terça-feira, no pequeno auditório do Rivoli, às 21h30 e ficará em cena até 9 de Julho. A Ensemble – Sociedade de Actores volta a um texto de Arnold Wesker, depois de no ano passado terem apresentado “Cartas de amor em papel azul”, também no Porto.

Na nova peça, encenada por Carlos Pimenta, o mutismo confunde-se com gritarias babélicas. O jogo cénico privilegia as palavras e o silêncio, ressaltando o histerismo de uma mãe colérica e anti-semita, a crítica voraz de um pai judeu e a ironia triste de uma filha perdida entre os dois.

Da plateia para o palco, uma projecção de vídeo lança o público sobre um prédio tipicamente urbano. Vários quadradinhos dividem os vizinhos e escondem as vidas de cada família. Através de um “zoom” “voyeur”, uma estrutura de vidro transforma-se numa janela e aproxima-nos de Connie, Joshua e Martha, os protagonistas.

Joshua é judeu. A ex-mulher, Martha, é anti-semita. E a filha, Connie, tentou ser comediante, mas o seu humor era demasiado sofisticado para ter sucesso. Connie regressa a casa, em busca de uma ternura perdida algures na infância. Joshua volta a casa para “oferecer à mulher a possibilidade de ser generosa e dar-lhe dinheiro”, conta ao JPN o actor Jorge Pinto.

A peça não é apenas um olhar sobre uma família desestruturada, fruto dos tempos pós-modernos. Antes incide, de forma subtil e mordaz, sobre a História, a ignorância, a intolerância e a frustração das relações humanas.

“Quando Deus quis um filho…enfiou-se nas saias de uma judia”

O título da peça aponta para “uma consideração sobre o anti-semitismo primário, que nos obriga a reflectir sobre os fundamentos culturais, religiosos e comportamentais nos quais se alicerça a nossa civilização”, explica o encenador Carlos Pimenta.

O texto, escrito em 1986 pelo escritor e dramaturgo inglês de origem judaica Arnold Wesker, esboça temas que gritam actualidade. “Por ela passa o Thatcherismo e mal podia Wesker adivinhar que depois da polémica de [Salman] Rushdie se sucederia a polémica das gravuras”, comenta o encenador.

Além disso, completa, “constitui-se como objecto da nossa capacidade de debate e do nosso eterno contentamento com a superficialidade da informação”.

“Quando Deus quis um filho… enfiou-se nas saias de uma judia” é uma das deixas de Joshua, que aponta para a falta de diálogo inter-religioso. Para discutir a cultura sefardita, será realizado um debate, no dia 4 de Julho, com a presença do encenador, actores e representantes da comunidade judaica.

Texto e foto: Carina Branco