O dérbi da cidade do Porto tem barbas, neste caso rijas, que o jogo costuma disputar-se em cada metro quadrado do terreno. E a chuva é uma constante. Domingo, quando Boavista e FC Porto se voltarem a encontrar, parece que não vai faltar. Pode um quadro tão cinzento fazer suspirar pelo passado? A resposta é: claro que sim.
“Um dérbi à inglesa”
João Nuno Coelho é portuense e portista e nessa dupla condição não esconde que o jogo de domingo é “muito especial”. Ao JPN conta que viu muitos dérbis nas bancadas e é desses que guarda melhor memória: “Eram as partidas disputadas no Bessa que atingiam maior intensidade e dramatismo, dado que aí a rivalidade era mais sentida”, lembra.
“Nas Antas [anterior caso do FC Porto] havia tal diferença de número de adeptos que se diluía muito a oposição entre os seguidores das duas equipas. E era também no Bessa que o Boavista conseguia quase sempre bater o pé ao Porto. Aquele era um dos campos mais complicados para as ambições portistas”, recorda.
E confessa: “Para mim rapidamente se tornou uma ‘questão pessoal’. As derrotas em 1983/1984 e 1984/1985 – neste último caso a única derrota num campeonato brilhantemente ganho pelo primeiro Porto de Artur Jorge -, faziam-me temer sempre o regresso ao Bessa”.
Para o adepto do FC Porto e autor de vários livros sobre a história do futebol português, ir ao Bessa era uma aventura. “Ainda para mais éramos especialmente mal recebidos pelos boavisteiros… Quase sempre em dias de chuva, numa bancada apinhada de portistas, com uns pilares que diminuíam a visibilidade para o campo. E o resto era futebol enquanto sofrimento, jogos renhidos, duros, conflituosos. Verdadeiros dérbis. Anos depois quando vivi em Inglaterra percebi que o Boavista-Porto é o que mais próximo existe em Portugal de um dérbi à inglesa. Luta, rivalidade, ódios de estimação, no estádio mais britânico de Portugal sob a chuva do Norte…”, reflete o também comentador do programa Grande Enciclopédia do Ludopédio, programa onde divide as “despesas” do jogo com Rui Miguel Tovar.
Quando o Major saiu “de fininho”
Na longa história de duelos entre os dois emblemas, não faltam estórias e curiosidades. Rui Miguel Tovar cita-nos duas, uma de 1982 e outra de 2004: “O de há 34 anos tem a ver com a grande primeira parte do FC Porto: 5-0 ao intervalo. De fininho, Valentim Loureiro levanta-se e sai da tribuna, juntamente com outros dirigentes boavisteiros. Quem apanha com a ira dos adeptos? Esse mesmo, Pinto da Costa, eleito presidente há coisa de um mês (ou nem isso). É vê-lo a olhar para todos aqueles indignados, a rasgar os cartões de sócio e a atirar objetos. Isto, um dia depois da visita do Papa ao Porto”, conta, numa alusão ao epíteto que também serve na cidade para substituir o nome do presidente do FC Porto.
“Ah é verdade”, prossegue o jornalista, também ele autor, “acaba 6-0 para o FC Porto (hat-trick de Jacques). Na baliza do Boavista, um jovem Madureira a respirar alguma intranquilidade na ausência de Matos”, completa.
De 2004 recorda que “os 90 minutos só produzem um golo, de Alenitchev” mas classifica-o como um “dérbi célebre pela quantidade absurda de faltas atrás de faltas. No meio de tanta má fé, Paulo Paraty expulsa Deco por este atirar a sua chuteira ao chão. O treinador do Boavista é um tal Erwin Sánchez”, o mesmo que agora orienta a equipa axadrezada.
O melhor dérbi
Nesta eleição, João Nuno Coelho e Rui Miguel Tovar dividem-se. Para o jornalista, a escolha recai sobre “o do Natal 1997. Acaba 4-3 para o Porto. Jardel marca, Timofte empata, Jardel marca (sim, outra vez), Timofte empata. Ah pois! Tudo em menos de cinco minutos. Do 1-2 para o 2-2, então, é bola ao meio, tic, tac, golo. Na segunda parte, 2-3 de Gaspar e 3-3 de Martelinho. Quem decide é Mielcarski, perto do fim. É o FC Porto a caminho do tetra”.
Para João Nuno Coelho, o melhor foi lá atrás: “O dérbi da minha vida foi o Boavista-Porto de 1985/1986. Luta acirrada pelo título com o Benfica. Jogo no Bessa com os condimentos do costume, incluído chuva diluviana, mais uma vez a perder ao intervalo, tudo indicava mais um desastre portista no Bessa, com regresso tristonho à parte alta da cidade, sob os insultos e as piadas adversárias. Futebol-sofrimento, pois. Mas estava escrito que aquele era o dia da vingança”.
O “deus vingador” de João Nuno Coelho chama-se Rabah Madjer. “Um muçulmano argelino que chegara ao Porto poucos dias antes, para levar o FC Porto à glória de Viena. Mas antes havia que ganhar o campeonato. E foi ali, no inferno do Bessa, que começámos a ganhar aquele campeonato e a Taça dos Campeões [Europeus]. Com dois golos soberbos de Madjer. Um de cabeça e outro num fabuloso volley de pé esquerdo – um dos melhores golos que vi ao vivo até hoje. Ambos a passe do endiabrado Paulo Futre. Nesse dia voltei encharcado, mas de alma cheia ao Marquês”, assume.
Dias de glória
Antes da viragem do século, houve o Porto do “penta” e houve o “Boavistão”. Décadas que deixaram saudades a João Nuno Coelho. Saudade “do tal dramatismo dos dérbis portuenses”.
Rui Miguel Tovar corrobora: “Saudades, sempre. Também dos anos oitenta e dos anos setenta, quando a rivalidade atinge picos nunca vistos pela categoria das duas equipas, talvez só comparável àquela época 2002/2003 em que tanto uma como outra se apuram para a meia-final da Taça UEFA”.
“A nostalgia está sempre presente se nos lembrarmos do Alfredo (e do Mlynarczyk), do Casaca (e do João Pinto), do Artur (e do Madjer), do Bobó (e do Jaime Magalhães), do Nélson Bertolazzi (e do Gomes). Há imagens de jogadas e golos que nos perseguem. Felizmente”, completa o jornalista.
Regresso ao presente
Tal como o Bessa, o dérbi da Invicta, agora, é do século XXI. Domingo, a partir das 18h15 defrontam-se duas equipas a passar por um momento complicado. O FC Porto é segundo na tabela, em igualdade pontual com o Benfica, mas perdeu esta semana o treinador. O Boavista é penúltimo, também já mudou de treinador esta época, e está em zona de despromoção.
“Com novo treinador, o Porto tem de se atirar para a frente, sem medos, senão não sai da cepa torta. Ao Boavista, falta-lhe um resultado como o nulo no Dragão da época passada para arrepiar caminho. Se o dia estiver cinzento, que o dérbi seja o arco-iris. E, atenção, o [estádio] Século XXI tem sido mais proveitoso para o Boavista (quatro vitórias) que para o Porto (só três)”, atira Rui Miguel Tovar.
“Tanto pode ser mais um pesadelo como o início de uma nova etapa para o FC Porto”, analisa João Nuno Coelho, que conclui: “Parece realmente que o futebol tripeiro não está no seu melhor, mas estas coisas são mesmo assim, cíclicas, e voltarão os dias do dérbi mais britânico do futebol português”.