Ao que tudo indica, 800 médicos não vão ter a oportunidade de se especializarem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) depois de concluído o processo de colocação de 2018. O Movimento “Médicos indiferenciados, Não” vê a criação de médicos sem especialidade como uma “precarização da profissão médica” e alerta para a “degradação dos serviços públicos de saúde”.

O ano passado, foram 1.758 as vagas para 2.477 candidatos. Em 2018, o número aumenta para 2.703 candidatos e inclui os estudantes que realizam o exame pela primeira vez, os que o repetem e aqueles que vêm do estrangeiro. Com o mesmo número de vagas para este ano e considerando que alguns alunos podem desistir do concurso, podem ficar cerca de oito centenas de médicos fora da especialização.

Os dados constam de uma previsão de Estevão Soares dos Santos, presidente da Associação de Médicos pela Formação Especializada (AMPFE), e tendo em conta que as vagas para a especialidade se mantêm de ano para ano, existirão cerca de quatro mil médicos nesta situação em 2021.

Ainda assim, Afonso Moreira, representante do Movimento “Médicos indiferenciados, Não” (MiN) nota que esta é uma previsão “otimista”, declarou ao JPN.

De ano para ano, o número de vagas e de candidatos não aumenta na mesma proporção. Infografia: André Garcia

O problema não é “só dos internos”

A AMPFE foi criada em 2015, com o objetivo de defender o acesso à formação especializada de toda a classe. Já o MiN surgiu no ano passado, por um grupo de médicos internos. “Começámos a ver que há anos e anos que se falava desta questão de virem a ser criados médicos sem especialidade, depois já cá estavam os médicos sem especialidade e continuava-se a falar da mesma maneira e nós sentimos que precisávamos de dar uma nova perspetiva nesta questão”, conta Afonso Moreira, representante do movimento.

Em conjunto com a AMPFE, o MiN redigiu uma petição online, com o nome “Contra a criação de médicos sem especialidade e a precarização na saúde; pela defesa da especialização médica, das carreiras médicas e da qualidade de saúde no país”. Em duas semanas, a petição reuniu cerca de quatro mil assinaturas e foi apresentada na Assembleia da República, levando a discussão ao Plenário.

“Ninguém quer chegar a uma urgência e à sua frente ter um médico sem especialidade”

A ação teve como principal objetivo estender o debate à comunidade civil, alertando a população para o crescente número de clínicos sem especialidade. Segundo Afonso Moreira, aquele que é um problema que pode parecer “só dos internos”, afeta na verdade “toda a carreira médica e, consequentemente, a qualidade dos serviços de saúde à população”.

Para o representante do movimento, a diminuição da qualidade dos serviços de saúde de atendimento é uma consequência imediata desta questão. Além disso, “ninguém quer chegar a uma urgência e à sua frente ter um médico sem especialidade, sem estar a ser supervisionado por um tutor designado especialmente para o supervisionar e sem uma formação contínua”, acrescenta.

Afinal, há médicos a mais em Portugal?

Esta quarta-feira, houve uma reunião a propósito do tema no Centro de Informação Urbana de Lisboa, “participada a vários níveis, com médicos e estudantes”. Além do movimento “Médicos indiferenciados, Não” estiveram também presentes a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), a Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP), a Associação de Médicos pela Formação Especializada (AMPFE) e a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).

De acordo com Afonso Moreira, todos os presentes concordaram que em Portugal “há médicos a menos” no Serviço Nacional de Saúde. Para o representante do movimento “Médicos indiferenciados, Não”, a solução passa por aumentar o investimento no SNS, já que o país está “abaixo da média da União Europeia” em termos de investimento nesta área.

Em relação ao custo que os médicos indiferenciados representam para o SNS, o resultado não é líquido: o rendimento base auferido pelos clínicos gerais é inferior ao dos médicos especialistas, ainda assim, é importante ter em consideração outras variáveis, como as horas de trabalho.

O movimento aponta o subinvestimento na área da saúde como um dos principais motivos para a disparidade entre o número de candidatos e vagas para a especialidade. Com condições de trabalho pouco apelativas, os médicos com capacidade formativa podem trocar o Serviço Nacional de Saúde pelo privado ou, no caso dos mais velhos, pela reforma antecipada.

“O sistema está errado, está caduco”

Para além da falta de médicos para tutorar os mais jovens, Afonso Moreira declara que o sistema está “errado” e “caduco” e que deve ser alterado para outro “que tenha planeamento”.

Lembra ainda que a culpa não é dos candidatos ao exame que ficam abaixo do valor de entrada, mas sim do sistema: “o valor da nota do primeiro a não entrar tem vindo a subir, obviamente, porque o sistema assim determina e vai aumentando sucessivamente com o aumento dos candidatos”, explica.

A reunião desta quarta-feira surge na sequência de uma alteração à legislação. O Novo Regime Jurídico do Internato Médico, que data de 26 de fevereiro e entrou em vigor a 1 de março deste ano, prevê a separação da formação geral e da especializada. Os “clínicos gerais” são médicos sem formação especializada, cuja educação se limita aos seis anos de licenciatura e a um ano de formação geral.

Relativamente à existência de médicos indiferenciados, Afonso Moreira, aluno da especialidade em Saúde Pública, considera que o Novo Regime Jurídico do Internato Médico “não só não altera nada, como até o normaliza [o problema]”. No dia 29 deste mês, o Decreto-Lei vai ser levado à Assembleia da República a pedido do PCP e do BE, para uma apreciação parlamentar.

O Novo Regime Jurídico do Internato Médico prevê a separação da formação geral e da especializada

O Novo Regime Jurídico do Internato Médico prevê a separação da formação geral e da especializada. Foto: Agencia Brasilia/Flickr

ANEM propõe redução de numerus clausus

Contactada pelo JPN, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) mostra-se solidária com o Movimento “Médicos indiferenciados, Não” no que toca à discrepância entre o número excessivo de candidatos e o número reduzido de vagas para especialização depois de concluído o curso de medicina, facto que leva à existência de clínicos indiferenciados.

A ANEM defende a redução do número de vagas no ensino superior e “um melhor aproveitamento das capacidades formativas pós-graduadas”, afirma Vasco Mendes, vice-presidente da estrutura.

“As capacidades formativas das escolas médicas estão saturadas, formam-se estudantes a mais, há uma demografia médica que é desequilibrada e devia haver um melhor aproveitamento dos recursos humanos”, refere o representante da associação.

“Há zonas com falta de médicos, mas não quer dizer que Portugal não esteja a formar médicos que sejam capazes de suprir o Serviço Nacional de Saúde”

Vasco Mendes adverte que, ainda que existam zonas carenciadas de médicos em Portugal, isso não significa que existam profissionais a menos. “Há zonas com falta de médicos, mas não quer dizer que na globalidade Portugal não esteja a formar médicos que sejam capazes de suprir o Serviço Nacional de Saúde”, esclarece. O vice-presidente da ANEM concorda que a má gestão das políticas de saúde pode motivar médicos a recorrer ao serviço privado ou mesmo à emigração.

O ano passado, a ANEM apresentou à Assembleia da República uma petição que pede a criação de uma “comissão isenta e externa permanente que fizesse uma avaliação dos recursos humanos em saúde, ou seja, que visse quais é que seriam as necessidades do Serviço Nacional de Saúde”. Vasco Mendes lamenta que a sugestão não tenha sido seguida e considera importante a existência de medidas que prevejam os problemas antes de os resolver.

“A definição dos numerus clausus dos estudantes do ensino secundário que entram no curso de Medicina deveria ser calculado com o cuidado de, a jusante, sair um número de médicos para o qual o sistema tenha capacidade e garanta uma formação pós-graduada”, termina.

Artigo editado por Filipa Silva