Se o aumento de vagas nos cursos de Medicina pode ser uma boa notícia para milhares de alunos que todos os anos não conseguem colocação, para outros a ideia avançada pelo ministro do Ensino Superior ao “Expresso” a 23 de maio é uma má opção.
Entre os que estão contra a possibilidade está a Universidade de Coimbra, cujo curso de Medicina faz parte dos que reúnem condições para aumentar as vagas – até mais 38, se usar os 15% que o Ministério quer autorizar para os cursos de Medicina fora de Lisboa e do Porto.
No ano passado, quase 1.500 candidatos concorreram às 255 vagas abertas naquela instituição. Carlos Robalo Cordeiro considera, contudo, que aumentar as vagas “não faz sentido no contexto atual”, fruto da “restrição de natureza financeira”.
Ao JPN, o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) garante que “não há capacidade formativa das Faculdades de Medicina” e que esta “está esgotada há muito“. Por isso, diz, é “cada vez mais difícil garantir um ensino de qualidade” devido quer às “condições de espaços físicos”, quer à “ausência de capacidade de contratação de recursos humanos que permitam um rácio aluno/tutor de acordo com as recomendações internacionais”, assegura o diretor da FMUC.
Também a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) rejeita a ideia de Manuel Heitor. Em declarações ao JPN, Mar Mateus da Costa considera que “não faz sentido abrirem mais vagas em Medicina em Portugal”.
Para a presidente da ANEM, a “incapacidade das atuais oito escolas médicas nacionais de formarem os mais de 12.000 estudantes inscritos nos mestrados integrados e ciclos preparatórios em Medicina” é resultante do “subfinanciamento crónico das escolas médicas” e por isso “não há qualquer margem de aumento do número de vagas em Medicina”, afirma.
Com o Governo a manter os quatro cursos de medicina de Lisboa e do Porto de fora destas regras, a abertura de vagas para outras escolas médicas do país, poderia ser uma oportunidade de descentralização do exercício do ensino da medicina.
A ANEM acredita que “olhar para o Ensino Superior e para a sua atratividade somente em função do número de vagas e da sua distribuição geográfica é extremamente redutor”. Os estudantes de Medicina consideram que mais do que a distribuição das vagas é “o modelo curricular adotado e os seus resultados na colocação laboral pós-formação, a existência de infraestruturas necessárias à fixação dos universitários – como residências, quartos, cantinas, bibliotecas e condições de mobilidade”, que são fatores necessários para a atratividade de uma determinada região.
O acesso à especialidade de jovens médicos é neste momento o calcanhar de aquiles do acesso à profissão em Portugal. Só no ano passado cerca de 1.200 médicos ficaram sem acesso à formação médica especializada.
A ANEM compreende que apesar do Ministério da Saúde e da Ordem dos Médicos terem já realizado “auditorias independentes ao processo de atribuição de vagas” é necessário, para esta associação, o “aumento do número de vagas” na especialidade. “Não se pode pensar em ensino pós-graduado (especialidade), sem pensar no pré-graduado (escolas médicas)”, sublinha Mar Mateus da Costa.
Com muitos médicos com “autonomia, mas sem capacidade de realizar atos complexos ou técnicas para além do muito elementar”, a ANEM “exige a redução do numerus clausus para que o sistema consiga absorver todos os graduados na especialidade, em rácios mais semelhantes ao resto da Europa”, com o investimento nas “infraestruturas e serviços de Medicina nos hospitais” como medida mais imediata por forma a “aumentar as capacidades formativas destes”, sugere a presidente da ANEM.
Com o enfoque a passar pelo aumento da capacidade no acesso à especialidade, a ANEM é por isso “contra a abertura de qualquer novo curso de Medicina que aumente, ainda mais, o numerus clausus, seja ele em instituições do setor público, privado ou concordatário”.
Para a associação que representa os estudantes de Medicina, a “necessidade de estágios em grandes centros hospitalares ou em centros académicos clínicos com um grande número de especialidades”, aliadas às “dificuldades em formar os atuais alunos com rácios tutor/aluno adequados”, torna inviável a “abertura de vagas num futuro próximo, ainda por cima após a situação pandémica vivida neste segundo semestre”, esclarece Mar Mateus da Costa.
Portugal, além de ter o terceiro maior rácio de médicos por mil habitantes na União Europeia a 28, é também o nono país da OCDE que forma mais médicos, atrás de países com sistemas de saúde com elevado desempenho, pelo menos equivalentes ao nosso, como a França, a Alemanha, ou a Noruega.
Números que levam a ANEM a manter a ideia que se estão a “formar demasiados médicos”, alertando para a discrepância na “abertura de vagas no ensino pré-graduado, sem correspondência no ensino pós-graduado (especialidade)”, que conduzem à “formação de recursos humanos indiferenciados”.
O diretor da FMUC está “completamente de acordo” quanto ao elevado número de médicos formados no nosso país, e também concorda que “muitos destes médicos ou se tornarão ‘indiferenciados‘, por não terem acesso a especialidades” ou vão ser “obrigados a procurar trabalho fora de Portugal, infelizmente”, ressalva Carlos Robalo Cordeiro.
Mas se a capacidade formativa das escolas está no limite, fará sentido, como referiu o ministro Manuel Heitor na mesma entrevista, abrir o estatuto de estudante internacional aos cursos de Medicina?
Para o diretor da FMUC, faz. “A abertura das Escolas Médicas ao acesso a estudantes internacionais é uma ambição antiga e que vem sendo sucessivamente bloqueada”, diz Carlos Robalo Cordeiro, ressalvando que “essa abertura e expectativa, desejável, terá, naturalmente, que ser articulada com a capacidade formativa das Escolas”.
Também a ANEM, por reconhecer “o valor que os estudantes internacionais trariam ao Ensino Médico português, com a diferenciação do corpo estudantil e a criação de uma Academia médica verdadeiramente internacional e aberta ao Mundo”, se mostra de acordo com a abertura do estatuto do estudante internacional à Medicina, desde que não seja aumentado o atual numerus clausus.
Conselho de Escolas Médicas quer ser ouvido pelo ministro
Quem está também contra o aumento de vagas anunciado por Manuel Heitor é o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) que, em carta aberta divulgada na íntegra pelo jornal “Público”, apelou ao ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para que oiça aqueles estabelecimentos, para “bem da saúde dos portugueses”.
Na carta, o CEMP manifesta a sua estranheza por ter tido conhecimento, através dos meios de comunicação social de uma “alegada intenção” do ministro em “alargar em 15% o número de novos alunos de Medicina, nos cursos lecionados fora de Lisboa e Porto, a saber Coimbra, Minho e Beira Interior”.
Sobre isto, o organismos entende que “o aumento do número de alunos irá naturalmente degradar a qualidade do ensino, sobretudo nas vertentes clínicas, dada a manifesta incapacidade de cumprir com rácios aceitáveis.”
Na missiva, o CEMP realça ainda a “total ausência de necessidade de mais escolas médicas em Portugal, quer privadas ou públicas, que apenas contribuirão para engrossar o número de médicos sem saída”.
O CEMP receia que “escudadas por uma lógica demagógica e irrealista, algumas estruturas privadas, sistematicamente reprovadas na suas intenções de abrir escolas de Medicina em Portugal, queiram aproveitar este momento para fazer valer os seus argumentos demagógicos e conseguir aquilo que em tempos normais não conseguiram, por manifesta falta de condições”, refere a nota deste órgão da Ordem dos Médicos.
Assim, o conselho propõe ao ministro uma reunião, para que o possam “elucidar de forma adequada e com conhecimento de facto sobre o ensino médico em Portugal, quais as suas fraquezas, as suas limitações, as suas necessidades e evitar, acima de tudo, que se possam tomar medidas desenquadradas da realidade”, dizem.
Portugal tem atualmente oito escolas médicas, todas públicas. São elas, a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, também no Porto, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, a Escola de Medicina da Universidade do Minho e a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior. A estas junta-se a Universidade do Algarve onde é lecionado desde 2008 o Mestrado Integrado em Medicina, um curso que tem características próprias e cuja entrada não é feita através do Concurso Nacional de Acesso. Nas universidades dos Açores e da Madeira, são dados cursos básicos de Medicina (com prosseguimento de estudos no Continente depois do terceiro ano).
Artigo editado por Filipa Silva