Autoridades italianas alegam razões "técnicas e de segurança" para o arresto de dois navios no porto de Palermo. ONG defendem que os motivos são políticos. “Não importa se há barcos das ONG ou não, as pessoas continuam a vir e a morrer", afirma Sophie Weidenhiller, da Sea-Eye, ao JPN.

Nos primeiros cinco meses de 2020 chegaram à Europa 23.658 migrantes. 182 ficaram no mar. Todos os dias, barcos de borracha que ignoram limites de capacidade e normas de segurança atravessam o Mediterrâneo com esperança de chegar a terra europeia.

Em tempos um cenário idílico de férias, na última década o mar Mediterrâneo tornou-se pano de fundo de tragédias diárias. E 2020 parece ter trazido uma nova maré de azares a quem se arrisca na mais perigosa travessia marítima do mundo – porque, embora pareça impossível, em casa era ainda pior.

Desde o dia 13 de abril que não há barcos de resgate civil no Mediterrâneo. Os dois últimos em missão, o Alan Kurdi, da organização alemã Sea-Eye, e o Aita Mari, da espanhola Salvamento Marítimo Humanitario, foram imobilizados no porto de Palermo, capital da Sicília, por “razões técnicas e de segurança”, alegam as autoridades italianas.

Na última semana, a organização Humans Before Borders (HuBB) organizou um protesto simbólico no consulado italiano no Porto e na embaixada em Lisboa para apelar à libertação dos navios. “Se não assumem as suas próprias responsabilidades, os estados-membros da União Europeia não podem impedir a sociedade civil de o fazer”, reclama a HuBB.

“Não faz sentido nenhum”

“Eu estava lá quando as autoridades vieram. Demoraram oito ou nove horas a revistar o navio e tudo o que encontraram foram algumas lâmpadas fundidas”, conta ao JPN Jordan Bradl, paramédico no Alan Kurdi – batizado em honra do menino de três anos que deu à costa, sem vida, na Turquia, em 2015.

O voluntário da Sea-Eye entrou em missão a 6 de abril para aquela que foi a última do Alan Kurdi até ao momento. Depois de resgatar 150 pessoas de embarcações de madeira na costa da Líbia a 13 de abril, o navio de bandeira alemã foi impedido de atracar em Itália e Malta. Os países justificaram a decisão com medidas de prevenção da COVID-19.

No final da semana, os migrantes foram transportados pela guarda costeira italiana para um navio cedido pela Cruz Vermelha, onde foram testados (sem positivos) e permaneceram em quarentena. A Sea-Eye não obteve informação do seu paradeiro atual. Já a tripulação do Alan Kurdi ficou a cumprir quarentena no mar e a 5 de maio, cumprido o isolamento, preparava-se para regressar às missões no Mediterrâneo quando foi arrestado pela guarda costeira italiana.

Transferência de migrantes do Alan Kurdi para o navio da Cruz Vermelha. Foto: Sea-Eye

Jordan Bradl estava no navio aquando da inspeção surpresa que detetou cerca de 30 falhas “técnicas e de segurança”, desde lâmpadas fundidas à lotação do barco. “Disseram que o navio não tinha sido construído para 150 pessoas – o número que tivemos na missão anterior -, mas não há nada que possamos mudar”, diz o voluntário da Sea-Eye ao JPN.

O Alan Kurdi é dos principais equipamentos de resgate no Mediterrâneo e já ajudou a salvar 688 vidas, segundo a ONG que o opera. No meio do mar e da tragédia, não há lugares contados.

Jordan Bradl sublinha que “não faz sentido nenhum” imobilizar um navio que tinha passado na inspeção de março sem problemas.

“Outra coisa que disseram foi que não tínhamos casas de banho suficientes”, conta a porta-voz da Sea-Eye Sophie Weidenhiller. “Se pudéssemos fazer os resgates e ir logo para terra já não havia problema, mas temos sempre tanta gente a bordo durante tanto tempo”, explica a voluntária. “Por que será? Porque continuam a impedir-nos de atracar. É ridículo”.

O navio da Sea-Eye foi batizado com o nome de Alan Kurdi, o menino sírio de três anos que morreu afogado em 2015, depois de uma travessia frustrada do Mar Mediterrâneo.

Decisão encoberta por motivação “política”, dizem as ONG

Para a Sea-Eye, apoiada por outras ONG de resgate no Mediterrâneo, não há equívocos acerca do real motivo do arresto. “É bastante óbvio que é um problema político, até porque os barcos das ONG foram os únicos impedidos. É um ataque para nos prevenir de salvar e usam cada desculpa que possam”, considera a porta-voz da organização.

Contando com mais de 14 mil assinaturas, a Sea-Eye lançou a petição #freetheships para a libertação do Alan Kurdi e do Aita Mari. Ainda não houve resposta dos destinatários no Ministério do Interior e dos Transportes italiano e no governo alemão. Apesar de este ter expressado discordância com Itália, não houve ainda ação efetiva face aos arrestos.

É por “interesse político” e “não porque estão preocupados com a segurança das pessoas a bordo” que os navios estão parados, garante Ana Paula Cruz. A médica do coletivo Humans Before Borders (HuBB) trabalhou no navio alemão em 2019 e considera as falhas técnicas apontadas “completamente ridículas dada a emergência que está a acontecer no mar”.

Ana Paula Cruz alerta para a falta de “vigilância” e de “denúncia ativa das violações de direitos humanos e de leis marítimas” que decorrem da ausência de missões no Mediterrâneo. “As ONG fazem muito este papel de ativismo no mar”, diz a voluntária ao JPN.

E sem ajuda no mar, o que resta aos migrantes? “Não importa se há barcos das ONG ou não, as pessoas continuam a vir e a morrer, ou então a voltar atrás pela suposta guarda costeira líbia”, reflete Sophie Weidenhiller.

Líbia: “nenhum país em guerra é um porto seguro”

Tanto a médica portuguesa como a porta-voz da Sea-Eye referem uma violação que está à vista de todos. “É um facto muito bem conhecido que a UE coopera com os líbios e parece ser essa a nova política europeia”, diz Sophie Weidenhiller, que reforça que enviar migrantes de volta à Líbia “não é legal”.

Devido à sua localização estratégica, mesmo a sul de Malta, a Líbia é o ponto de partida mais usado para a travessia do Mediterrâneo. “Estão a levar os migrantes de volta ao sítio de onde eles fugiram”, resume Sophie.

Desde 2011 que a Líbia está dividida numa guerra civil e “nenhum país em guerra é um porto seguro”, conclui Ana Paula Cruz, da HuBB. De facto, os portos do país não são mesmo considerados seguros pela Lei Internacional de Resgate de Refugiados por Mar.

Na mesma lei prevê-se que, à falta de porto seguro, “a responsabilidade pelos resgates é das embarcações de resgate e dos estados que têm jurisdição sobre ele. Ainda na semana passada, um navio de carga com bandeira portuguesa resgatou 100 migrantes no Mediterrâneo e entregou-os à guarda costeira líbia.

Em causa está também o princípio da não devolução, ou non refoulement, previsto pelo Gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O documento está sob a lei internacional dos direitos humanos e prevê que “ninguém deve ser devolvido a um país onde sofra tortura”, aplicado a “todos os migrantes a todos os momentos”.

Segundo a ONG Alarm Phone, que por serviço telefónico liga migrantes em emergência a equipas de salvamento, quase quatro centenas de migrantes foram devolvidos à Líbia no final de maio.

Na última missão do Alan Kurdi, que resgatou 150 migrantes, barcos líbios interceptaram a missão com armas de fogo apontadas aos migrantes e aos humanitários. Numa gravação partilhada pela ONG nas redes sociais, é possível ver migrantes a atirarem-se do barco em pânico, enquanto a equipa da Sea-Eye, com ação restringida, lhes atira coletes salva-vidas.

O JPN conversou com um voluntário da Alarm Phone, que pediu para não ser identificado. Segundo o operador telefónico, “a pandemia está a ser usada para se impor uma espécie de zona sem lei em alto mar, onde há devoluções ilegais para a Líbia e a Turquia justificadas flagrantemente pela falta de segurança nos portos europeus”.

Em abril, Itália e Malta declararam os seus próprios portos como inseguros e proibiram a chegada de migrantes enquanto houver coronavírus. Em relação aos 150 migrantes retidos em Itália, a Sea-Eye está a reunir esforços com o governo alemão de forma a transportá-los de avião para a Alemanha.

“Expressões como ‘portos seguros’ são distorcidas no contexto da pandemia para enviar as pessoas para sítios que em caso algum podem ser apelidados de seguros”, levanta o operador da Alarm Phone.

“A grande consequência da imobilização dos barcos é que há menos pessoas a ser resgatadas para a Europa em vez de para a Líbia – se forem resgatadas de todo”, admite o voluntário da Alarm Phone. No país africano, o destino dos migrantes é o mesmo que o seu ponto de partida para a travessia: “centros de detenção desumanos”.

Ana Paula Cruz conta caras e nomes nas missões que fez e conta que “todos eles tinham uma cicatriz qualquer feita nos centros de detenção na Líbia – torturados, violados, baleados, explorados, traficados e escravizados” na última paragem antes da derradeira tentativa de liberdade na Europa.

“E esta violência é paga e financiada por acordos europeus”, acusa a voluntária portuguesa.

Controlo líbio financiado pela Europa

Em 2017, a União Europeia anunciou um reforço de 90 milhões de euros ao pacote original de 120 milhões do Fundo Fiduciário de Emergência da UE para África, sendo estes valores direcionados apenas à Líbia com o objetivo de “reforçar a gestão migratória” no país.

O primeiro investimento serviu para o “treino e capacitação da guarda costeira para salvar vidas no Mediterrâneo” enquanto o segundo reforço seria encaminhado para a melhoria de condições junto dos migrantes retidos na Líbia, lê-se no comunicado de há três anos.

“A guarda costeira líbia é uma milícia, apoiar a formação é dar-lhes dinheiro para comprarem armas que usam para intimidar organizações de resgate civil”, afirma Ana Paula Cruz, da HuBB.

Num esforço continuado para “acompanhar o embargo ao armamento imposto pelas Nações Unidas à Líbia”, anuncia a UE, foi renovada a operação da Política Comum de Segurança e Defesa com o país africano, desta vez apelidada de IRINI – paz, em grego -, até março de 2021.

A Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, ou FRONTEX, da qual a Polícia Marítima Portuguesa também faz parte, coordena a operação no Mediterrâneo Central. Ao JPN, a agência sublinha que “as equipas são responsáveis pelo bem-estar das pessoas que trazem a bordo como parte do salvamento. No entanto, em terra, são entregues às autoridades nacionais, que passam a ter essa responsabilidade”.

A FRONTEX remata que “ainda assim, se os nossos agentes detetarem uma potencial violação de direitos fundamentais, são obrigados a alertar a agência” e garante que “quando necessário”, trabalham “de perto com as ONG para salvar vidas”.

A organização não comentou acerca das devoluções de migrantes à Líbia.

Registo das missões levadas a cabo pela Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira. A missão atual, Irini, começou em abril. Fonte: FRONTEX

Da parte das ONG, há resistência para com estas operações por serem motivadas por razões que estão para lá do salvamento. “As vidas dos migrantes são postas diariamente num perigo ainda maior devido às políticas anti-migratórias feitas pelas mesmas autoridades cujo dever é salvar, mas que agem como se não houvesse leis”, explica o operador telefónico da Alarm Phone.

O voluntário relata casos de emergência que nunca foram atendidos: “infelizmente já é hábito que as guardas costeiras não atendam as nossas chamadas, ou que, se conseguirmos chegar a eles, não cooperem. Em diversas ocasiões as autoridades responderam apenas após pressão pública”, explica.

Para acertar na política, falha-se na humanidade

Os testemunhos das outras ONG seguem a mesma linha. Jonas Bradl, da Sea-Eye, admite: “Itália e Malta não ficam muito satisfeitos com a nossa presença, mas depende”. Em caso de hospitalização urgente de migrantes, a transferência para terra é rápida, “mas muitas vezes reagem de forma agressiva”, relata o paramédico.

Ana Paula Cruz, da Hubb, considera que a cooperação entre guardas e ONG “não existe e é muito forçada”. A médica relata um episódio em que o Alan Kurdi ficou retido por quatro dias na costa de Itália até o governo alemão pressionar para que fosse recebido por Malta. “Mas no mesmo dia a ONG Open Arms fez um resgate também de imensas pessoas e teve-as a bordo por 14 dias. Aconteceram tentativas de suicídio a bordo porque as pessoas estavam totalmente desesperadas”, conta a voluntária.

As guardas costeiras atuam nas regiões de busca e salvamento (SRR) – delimitadas a azul no mapa – correspondentes a uma área de mar ao cargo de cada país. Este mês, o porta-voz do Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, Rupert Colville, expressou preocupação face a relatos de que a guarda costeira maltesa estaria a contratar navios comerciais para “empurrar” embarcações de migrantes de volta à SRR líbia, financiada pela UE.

Alegação que a Alarm Phone confirma. “Houve pushbacks coordenados pelos malteses de forma a devolver as pessoas à Líbia e outras em que suspeitamos que haja um atraso propositado no salvamento para que a suposta guarda costeira líbia pudesse ganhar tempo para a interceptação”, revela ao JPN um voluntário do serviço de emergência.

Em comunicado, o porta-voz da ONU para os Direitos Humanos refere ainda que a imobilização dos navios humanitários “numa altura em que os números de travessias da Líbia para a Europa aumentaram drasticamente” – o quádruplo em relação ao ano passado – poderá fazer parte de “medidas administrativas” que alegadamente têm sido postas em curso para “impedir o trabalho das ONG”.

No início de maio, a ONU requereu uma moratória em “todas as inteceptações e devoluções à Líbia” em harmonia com as diretivas de saúde em relação à COVID-19 e aos migrantes. A organização reconhece a ilegalidade das devoluções, apontando o fecho de portos em Itália e Malta como justificação para o recurso à Líbia. Urge ainda pela revogação do arresto dos navios em Itália que “está a pôr vidas em risco”.

No meio do Mediterrâneo, por onde a entrada para a Europa é feita através de dois países fechados ao acolhimento, não há hipótese de navegar para muito mais longe mas a opção de voltar ao inferno de onde fugiram não pode ser a única.

Para as organizações humanitárias é evidente que a luta pela vida das pessoas no Mediterrâneo é travada a sós contra, dizem, a Europa, que se cerca por mar por guardas costeiras que financia.

“A ideia não é salvar pessoas, é controlar a fronteira. Ninguém pode chegar à Europa, não importa se morrem ou se ficam na Líbia”, critica Ana Paula Cruz. “É assustador que isto seja tão oficial e que nós o aceitemos”, lamenta a médica.

Deixar o problema do outro lado do mar é impossível quando o desespero está do outro lado da linha, conta o operador da Alarm Phone. Fonte: Sea-Eye

Sem apoios e com obstáculos, salvar é uma missão “muito frustrante”

“Dar uma resposta quanto ao número de salvamentos fracassados no Mediterrâneo é ainda mais difícil do que seria normalmente, sendo que não podemos dizer que estão salvas as pessoas que voltam aos campos de tortura líbios ou que ficam presas nos navios, como as 350 que ainda estão a bordo dos navios Captain Morgan no porto de Malta”, explica o voluntário da rede Alarm Phone.

Numa só afirmação, Ana Paula Cruz parece conter a frustração das missões de resgate civis: “o maior desejo de todas as ONG é que não sejam necessárias. As ONG civis de resgate só existem porque há um vazio criado pelos estados europeus”, lamenta a voluntária da HuBB.

Frustação é a reação inevitável face a um equilíbrio desequilibrado entre forças de salvamento e motivações no mar Mediterrâneo. “Há uma irresponsabilidade criminosa dos estados europeus face às pessoas que morrem pela imposição desta fronteira gigante que é o Mediterrâneo”, ao mesmo tempo que “criminalizam a ajuda humanitária”, diz Ana Paula Cruz.

De um lado, a tentativa de controlo de uma situação que inunda a Europa, desigual na sua política de acolhimento – a ONU já veio apelar à iniciativa da restante Europa para alívio italiano e maltês. Do outro, um esforço civil por uma prioridade que acreditam que devia ser a dos grandes decisores políticos.

Desde 2014, morreram 20.771 pessoas no Mediterrâneo, 80% na região central, delimitada pela Itália, Malta e Líbia. Ignorar estes números e deixar o problema do outro lado do mar é impossível, explica o operador telefónico da Alarm Phone, quando o desespero está do outro lado da linha. “Atender o telefone a pessoas em emergência enquanto se testemunham jogos políticos perigosos feitos atrás das costas é muito frustrante”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva