Formado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, Francisco Miranda Rodrigues tem 46 anos e é psicólogo desde 1997. Esta sexta-feira, o atual bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) concorre a um segundo mandato.

O psicólogo encabeça a Lista B, uma das duas que estão na corrida. A Lista A é liderada por Sónia Rodrigues, investigadora externa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, com quem o JPN também falou, numa entrevista publicada ontem.

Francisco Miranda Rodrigues está convicto de que foram feitos avanços na valorização profissional da classe, havendo ainda “muito a fazer” ao nível do acesso aos cuidados de psicologia. Nesta altura, o que mais o “angustia”, diz na entrevista ao JPN, “é a demora em dar passos significativos na solução do acesso [a psicólogos] ao nível dos centros de saúde”. 

Quanto aos serviços de apoio psicológico no Ensino Superior, o candidato considera-os “muito insuficientes” e diz que têm que ser reajustados para se concentrarem na prevenção, no desenvolvimento de competências, na promoção da integração e do sucesso escolar, mais do que na dimensão clínica.

JPN – Começando pelo estudo da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, no qual se diz que “as perturbações mentais e do comportamento representam 11,8% da carga global das doenças em Portugal, mais do que as doenças oncológicas (10,4%).” São números que comprovam que continuamos a colocar a saúde mental em segundo plano?

Francisco Martins Rodrigues – São indicadores que nos permitem afirmar que a saúde mental não tem estado incluída nas preocupações sobre a saúde na lógica preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que inclui saúde física, psicológica e social. E não são só eses números. Em Portugal, se olharmos mais esmiuçadamente para dados como os relativos à depressão, estamos no pelotão da frente no que não gostaríamos de estar à frente. Muito provavelmente isso tem que ver com o desinvestimento naquilo que é o acesso aos serviços de apoio à saúde mental, seja da promoção, seja do tratamento, e esse é um dos fatores. Outro é o da literacia em saúde, nomeadamente em saúde psicológica, que é relativamente baixa. E outro ainda que tem que ver com determinantes sociais: num país que tem mais de 20% das pessoas na pobreza ou em exclusão, quando juntamos a questão da literacia à dificuldade de acesso, isto torna difícil que os números sejam outros.

Há ainda, até no âmbito da pandemia, uma dimensão do impacto psicológico que está muitas vezes escondida. Há pessoas que não cumprem o critério biomédico para serem diagnosticadas com o que quer que seja, mas que não deixam de ter o que [na Psicologia] designamos por reações adaptativas, com uma intensidade que às vezes é moderada ou mesmo forte, e que precisam de apoio, embora não tenham desenvolvido nenhuma perturbação. E aí não há resposta. Sobretudo, para as classes mais desfavorecidas.

JPN – Justamente essas classes socialmente mais vulneráveis não deviam ter um acesso privilegiado aos serviços de acompanhamento psicológico?

FMR – Sim, mas… Sim, no sentido em que deviam ter serviços específicos com capacidade de resposta para lhes dar um apoio que muitas vezes acaba por não existir e outras vezes é insuficiente. Podemos dar o exemplo dos mais idosos, e dentro destes os que estão em estruturas residenciais de acolhimento. Sabemos que uma larga percentagem deles ainda por cima tem várias comorbilidades, juntamente com processos demenciais, e seria muito importante, relativamente à preservação da sua qualidade de vida, do seu bem-estar, que existisse um apoio por parte de psicólogos nestas estruturas. Há, mas é ainda pouco.

Há muitas lacunas, e este é apenas um exemplo. Se formos a outras populações vulneráveis, vamos encontrar lacunas da mesma dimensão. Há muito a fazer. É verdade que tem crescido o número de psicólogos em muitas destas áreas, mas também é verdade que continua muito àquem daquilo que é necessário, particularmente quando há vulnerabilidades.  

Portanto, sim, mas depois também há a população em geral que, na verdade, também está totalmente a descoberto quando quer um acesso no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

JPN – Há portanto uma carência do serviço público que não consegue dar uma resposta eficaz às necessidades da população.

Claramente. De todas as coisas que ainda estão por fazer no trabalho para disponibilizar mais os serviços que os psicólogos e as psicólogas prestam, o que mais me angustia é a demora em dar passos significativos na solução do acesso [a psicólogos] ao nível dos centros de saúde, porque já é difícil aceitar explicações por parte dos decisores nesta matéria. 

O que acontece não é significativo e está a demorar demasiado tempo. Têm acontecido coisas. Por exemplo, em 2018 abriu um concurso. Já não abria um concurso para psicólogos para a carreira de psicologia clínica e da saúde no SNS há 20 anos! Há 20 anos que não abria! É alguma coisa ter aberto, mas não fechou até agora. É angustiante também por isso. E foi para quantos? Para 40. Não chega.       

JPN – Nos centros de saúde de todo o país, segundo os dados mais recentes, haverá menos de 250 psicólogos (rácio inferior a 2,5 profissionais por 100 mil habitantes). Já nas escolas, segundo os números que referiu num artigo de opinião no “Público”, o número de psicólogos passou de 700 para 1.700 em cinco anos. Estes números refletem uma valorização ou a falta dela? O trabalho dos psicólogos, em Portugal, é valorizado?

É valorizado, mas tem de ser mais. Está a fazer-se um caminho, que levou a uma maior valorização. Se há crescimentos da grandeza do que referiu [em relação às escolas] significa que há mais valorização. Quando há a criação de um serviço de aconselhamento psicológico na Linha SNS24, como aconteceu nesta crise, e que se vai manter definitivamente, é sinal que há mais valorização. Quando largas centenas de psicólogos entraram nos mais diversos serviços públicos através dos regimes de regularização dos trabalhadores precários, isso também é uma valorização. Agora, eu não acho que possamos estar satisfeitos. 

Na resposta à crise pandémica houve contratação de psicólogos e psicólogas para os centros de saúde. Mas a que houve, é muito pouco significativa.

JPN – Indo à crise pandémica, qual o papel que os psicólogos tiveram e qual deviam ter tido numa crise de saúde pública como a que vivemos devido ao novo coronavírus? Sónia Rodrigues, candidata da Lista A, fala numa “oportunidade que se não for agarrada é uma oportunidade perdida”. Concorda?

Eu acho que uma avaliação mais correta e honesta tem de ser feita no final da crise pandémica, mas se tivesse que fazer um balanço agora, eu diria que os psicólogos têm aproveitado muito bem esta oportunidade. Porque conseguiram responder muito rapidamente e adaptar-se rapidamente às necessidades que a população tinha. 

Enquanto Ordem, tivemos uma resposta rapidíssima logo nos primeiros dias, com muito material de apoio à ação dos profissionais, com orientações, com recomendações, com coisas muito concretas sobre como é que os profissionais se podiam adaptar à intervenção à distância, por exmplo, que foi crítico. Conseguiram com isso reduzir o impacto na sua atividade profissional e económica e ao mesmo tempo conseguiram fazer parte de respostas novas que foi preciso criar. Foram criadas linhas por todo o país, como se sabe.

A resposta dada pelos psicólogos que estão no SNS também mostrou a importância de se ter conseguido nestes quatro anos que o Governo determinasse que os serviços de psicologia no SNS deveriam ser autónomos, ter uma organização própria em termos funcionais. Isso foi fundamental, porque aqueles que entretanto já os tinham montado tiveram uma capacidade de resposta rapidíssima para apoiar outros profissionais de saúde e para responder à população em geral que estava a ser acompanhada, que podia ter ficado sem resposta e que no caso dos serviços prestados pelos psicólogos não ficou, porque se adaptaram rapidamente. Também produzimos mais de duas centenas e meia de documentos para a população geral, contribuindo para a literacia.

JPN – Da parte da classe política sente que há reconhecimento do contributo que pode ser dado pela classe?

Sim, muito reconhecimento, a começar pelo senhor Presidente da República, mas que se pode encontrar noutras áreas de governação. É preciso lembrar que temos uma complexidade que é pouco comparável com a maior parte das profissões, nós temos que articular com várias áreas do Governo, porque os psicólogos estão em muitas áreas: não estão só no SNS, estão no sistema educativo, na Segurança Social, na Justiça, nas Forças Armadas, nas Forças de Segurança, há muitas áreas onde temos de articular.

O que queremos é o passo que falta: nós somos os profissionais daquela ciência que estuda os comportamentos e os processo mentais. Logo, tudo o que tenha que ver com dimensões de comportamento, se nós queremos mobilizar pessoas para determinados comportamentos, o profissional de referência é um psicólogo ou psicóloga.

Em 2018, aconteceu também uma coisa que poucas profissões têm em Portugal. A Assembleia da República consagrou o dia 4 de setembro como o Dia Nacional do Psicólogo. Eu sei que é simbólico, mas é simbolicamente importante.     

JPN – Numa Ordem com cerca de 84% de mulheres inscritas, temos pela primeira vez uma mulher a candidatar-se ao lugar de Bastonária. Na sua opinião, as psicólogas portuguesas sentem-se representadas neste organismo? 

Eu julgo que as psicólogas se sentem tão representadas como os psicólogos. Nós temos, até por via da composição que disse, temos muito mais psicólogas nos orgãos sociais do que psicólogos, o que é natural. Depois há que acrescentar que ambas as listas têm de respeitar a paridade, o que decorre da lei. 

 Acho que sim, sentuir-se-ão de igual modo representadas. Existirão os que se sentem mais ou menos representados, sendo psicólogos ou psicólogas.

JPN – Na entrevista que deu ao JPN, a candidata da Lista A considerou que há “uma atitude muito elitista dos membros da Ordem”. Acolhe a crítica? 

Discordo, de facto. Não sei exatamente quais são os factos que levam à afirmação. 

JPN – Julgo que se decorre de uma ideia de algum distanciamento face aos profissionais no terreno.

Julgo que há uma tentativa mais durante esta campanha de passar essa ideia do que outra coisa, porque como é que se pode falar em distanciamento quando, e vou-lhe dar dados, só falando da direção nacional, ela percorreu 60 mil quilómetros ao longo destes quatro anos a ir aos locais de trabalho dos psicólogos, por todo o país, pelas ilhas. Dá uma dimensão. Depois, como se pode falar nisso quando criamos forma de, independentemente de onde o membro está, ter hoje em dia acesso à mesma formação [da Ordem}, em regime de e-learning? Tinhamos esse compromisso de reduzir as iniquidades no acesso aos serviços da Ordem, a começar pela formação, e fomos tendo um crescimento exponencial para chegar já às 23 mil participações ao longo destes quatro anos. Numa ordem que tem 23 mil membros, é muito significativo. 

JPN – Vem aí uma crise que vai afetar o mercado de trabalho dos psicólogos. Portanto, os estudantes do último ano de Psicologia vão sentir uma maior dificuldade em arranjar emprego e, posteriormente, progredir na carreira. Quais são os apoios que tem preparados para estes psicólogos em início de carreira?

Estamos muito atentos a isso. Felizmente, durante este tempo de crise pandémica, não tivemos muitos indicadores a piorar, por exemplo, nas suspensões de inscrição que é logo um indicador de falta de atividade económica. O número de suspensões até se reduziu face ao período homólogo. Tivemos aqueles meses em que houve a necessidade de não se ter iniciado anos profissionais júnior, mas quando foram, retomaram muito bem.

Estamos atentos a esses indicadores e temos programas próprios que vão desde o tempo em que se é estudante. Para estes temos, por exemplo, a Academia OPP, que vai todos os anos aos 31 cursos de Psicologia que existem em Portugal, para partilhar com os estudantes coisas como o estado da profissão, quais são as áreas emergentes, como é que se faz o processo para o Ano Profissional Júnior.

JPN – Num inquérito realizado em junho a estudantes do Ensino Superior do Porto, 80% diz ter sentido um aumento do estado de ansiedade ou depressão por causa da pandemia, sendo que apenas 36% dos alunos tiveram acesso a soluções de ajuda acessíveis e em tempo útil. Serão os serviços de apoio psicológico no ensino superior suficientes?

Não. São muito insuficientes. Temos vindo a alertar o Governo para isso. Temos vindo a alertar as universidades para isso. Tivemos uma reunião com reitores e representantes de reitores há cerca de ano e meio, em que alertamos para os problemas que existiam nesta área. Os rácios aqui são muito baixos e há um outro problema que é a confusão relativamente aquilo que deve ser o papel do psicólogo nesta área. Por isso nós comprometemo-nos, temos uma medida em relação a esta matéria, de modo a contribuir para o desenvolvimento do papel do psicólogo e da psicóloga no Ensino Superior, definindo bem aquilo que podem ser linhas de orientação para a prática do psicólogo neste contexto que vão muito para além da dimensão remediativa.

Ou seja, muitas vezes aquilo que é feito pelos psicólogos neste contexto decorre da falta de resposta do SNS. A verdade é que devíamos ter o máximo de serviços prestados em matéria preventiva. Ou seja, termos por exemplo ações de desenvolvimento de competências, de acolhimento para melhorarmos os processos de integração no Ensino Superior, para reduzir o abandono, para aumentar o sucesso e isso vai muito para além das atividades individuais clínicas de apoio, que também são necessárias, mas que são muito mais necessárias por via da não resposta do SNS do que por serem a melhor prática do que deve acontecer no ensino Superior. E há bons exemplos, no Porto, por exemplo, têm é de ser replicados em todo o país.