Do Rossio dos Olivais para o ecrã de um computador, a Web Summit arrancou, esta quarta-feira (2), muito diferente do habitual. Nem de propósito, foi a tecnologia, que o evento tanto discute e promove, a solucionar a impossibilidade de o certame ser realizado no formato presencial – assim o impôs a pandemia de COVID-19. 

À espera de mais de 800 oradores, 100 mil participantes e 2 mil startups, a grande conferência que Lisboa acolhe desde 2016 cumpriu o seu primeiro dia com quase dez horas de eventos online.

Com a passagem para o online, passamos em revista o que mudou no funcionamento da conferência e espreitamos, claro, várias das suas sessões. Ouvimos Cal Henderson (Slack) a assegurar que “vai mudar para sempre” a sensação de ir para o trabalho, Kara Hurst (AMAzon) a apresentar o “Climate Pledge” que junta 1.200 empresas em torno de objetivos de sustentabilidade ambiental, ou o neto de Nelson Mandela a defender que “quando se fica sem opções, o protesto é a via”.

Uma Web Summit com muitas novidades

O formato online da mega-conferência tecnológica está recheado de interatividade e, claro, de muitas novidades.

Este ano, os palcos habituais foram substituídos por seis canais: o “Central”, que substitui o palco principal da conferência, o dos “Criadores”, um dedicado à “Sociedade” e a várias problemáticas associadas, outro para os ”Construtores” e outro ainda exclusivamente dedicado a “Portugal” – uma das novidades da edição deste ano – pelo qual vão passar dezenas de oradores nacionais das mais variadas áreas: do cinema ao futebol, passando pela música ou pela política. Há ainda um canal dedicado em exclusivo à formação com especialistas, através das “Masterclasses”.

O espetador tem a liberdade de navegar pelos canais e assistir às conferências que deseja, sem um guia obrigatório.  

Durante as mesas redondas, que se debruçam sobre as mais diversas temáticas, os internautas podem interagir e participar, algumas destas salas encontram-se inseridas nas denominadas “salas de parceiros” do evento. 

O chat permanente é novidade. Durante todas as conferências, existe um espaço de conversação onde os espetadores podem interagir entre si e reagir ao que é dito, o que torna a experiência mais dinâmica. 

Para além disto, existe o Mingle – uma ferramenta que mimetiza o funcionamento das aplicações de speed dating para colocar os participantes do evento em contacto durante 3 minutos. O match é aleatório, no entanto, a aplicação tenta escolher alguém que se assemelhe ao perfil e preferências do internauta.

Nos chamados “Q&A” – sessões de perguntas e respostas -, os espetadores têm a oportunidade de interagir e fazer questões em direto a alguns dos muitos oradores presentes no evento.

“Tech saves lives”

Paddy Cosgrave, CEO e fundador da Web Summit, esteve, como é habitual, no arranque do evento, que se realizou 100% online. O CEO disse estar verdadeiramente entusiasmado por abrir mais uma edição de um evento que tem como objetivo “fazer ouvir as pessoas mais incríveis por todo o mundo”.

Filomena Cautela foi a primeira a estrear o palco virtual da conferência. A apresentadora da RTP foi mestre de cerimônias e vai apresentar todas as sessões do evento no decorrer dos três dias. António Costa e Fernando Medina também participaram na sessão, para reforçarem a ideia de que Portugal quer ser um polo de inovação.

O primeiro-ministro iniciou a mensagem de boas-vindas à Web Summit num registo de proximidade, embora só visível através do ecrã: “aqui estamos nós, juntos, nestes três dias de conferência digital”. Com cerca de 6 mil pessoas de olhos postos em si, o chefe de Governo aproveitou para referir que “2020 é um ano marcado pela pandemia de COVID-19, mas 2020 não é só sobre isso. Foi um ano em que Portugal passou para a liga dos campeões da inovação”.

Depois do muito discutido apoio do Erário Público ao evento, o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, aproveitou a cerimónia de abertura para reafirmar que “eventos como a Web Summit são necessários, mais do que nunca”. Referiu ainda a esperança e confiança de que em 2021 a cidade receberá os participantes da cimeira in loco.

Ursula von der Leyen foi a oradora que se seguiu e começou por dizer “tech saves lives”, ou, na versão portuguesa, “a tecnologia salva vidas”. Este foi o ponto de partida do discurso da presidente da Comissão Europeia, que apresentou um olhar otimista quanto ao futuro. Falou-se numa “remodelação do mundo de uma nova e melhor forma” e de dados que revelam 2020 como um ano de enorme sucesso para as empresas tecnológicas europeias que apresentaram um crescimento significativo.

 Cal Henderson e o futuro do trabalho 

Dos mais novos aos mais velhos, todos viram a realidade interrompida com o aparecimento da COVID-19. Assim, surgem, inevitavelmente, questões sobre o futuro do mundo do trabalho como o conhecíamos.  

O co-criador do Slack, uma plataforma que oferece salas de conversação organizadas por tópicos, grupos privados e mensagens diretas, foi, nesse contexto, um dos primeiros a passar pelo “palco principal” da Web Summit para falar sobre “O Trabalho depois da crise”. Em conversa com a jornalista Jemima Kiss, Henderson falou desta plataforma que se apresenta como “uma nova forma de comunicar com a sua equipa”, considerando-a “mais rápida, melhor organizada e mais segura que o email”. 

Numa fase em que todos somos estimulados a ficar em casa, falou-se no futuro do trabalho remoto e híbrido: será que veio para ficar? Cal Henderson, o CTO do Slack, expôs algumas das suas convicções sobre o tema. O programador acredita que para existir evolução, as empresas têm de se moldar e aderir ao trabalho híbrido. Assim, os escritórios tornar-se-ão meros locais colaborativos.

“O escritório como o conhecemos vai mudar e deverá singrar, de forma ampla, a flexibilidade no trabalho, além do trabalho remoto e híbrido, que veio para ficar para sempre”, afirmou Cal Henderson. Com este novo formato, as relações interpessoais, em contexto laboral, podem sair ameaçadas. A propósito, o CTO do Slack anunciou que está a tentar soluções para esta questão. Até porque, diz: “A sensação de ir para o trabalho vai mudar para sempre após este período”.

Se os modelos de execução de ofícios mudou, a forma como o trabalhador projeta o ideal de exercício de funções também. O programador fez referência a um estudo global que assinala que apenas 22% dos trabalhadores em escritórios preferem voltar a tempo inteiro para o habitual local de trabalho, em escritórios, após a pandemia. Os restantes 78% têm preferência pelo modelo híbrido.

“Faz sentido dar mais flexibilidade de horários às pessoas em casa e fomentar a colaboração conjunta no escritório, as empresas devem focar-se em resultados e não em horários se não querem ficar para trás”, declarou Cal Henderson.

O empreendedor considera que a utilização das ferramentas que o mundo digital nos oferece no que concerne ao mundo do trabalho “são aprendizagens que vão tornar as organizações mais fortes após a pandemia”.  

O programador lança ainda um presságio: “O email vai ser substituído por canais de comunicação, como o Slack, e espero que optem por nós”. A forma como comunicamos está em constante evolução e transmutação, serão os canais de comunicação como o Slack o próximo passo? É o que veremos.

Mais sustentabilidade na mobilidade

O tema da sustentabilidade está nas bocas do mundo. É cada vez mais imperativo caminhar em direção a uma dimensão mais amiga do ambiente. Sobretudo gigantes tecnológicas cujos serviços dependem fortemente da mobilidade. Foi sobre isso que falaram Kara Hurst, da Amazon, Juan de Antonio, da Cabify, e um alto representante do Governo britânico, Nigel Topping, na conferência “Investindo no clima do futuro”.

A norte-americana Amazon, pela sua parte, anunciou que tem 2 milhões de euros para investir em tecnologias que visem a sustentabilidade. Kara Hurst, responsável pelo departamento de Sustentabilidade da empresa, aponta para a iniciativa da qual é cofundadora, a “Climate Pledge”, como impulso de grandes mudanças e avanços para empresas de todo o mundo. O programa, que nasceu em 2015, conta com a parceria de 1.200 empresas e curadoria de sete Organizações Não-Governamentais. Os envolvidos assumem o compromisso de atingir zero emissões de carbono em 2040. 

Entre as empresas parceiras encontram-se a Cabify, que Juan de Antonio frisou estar a cumprir o segundo ano consecitivo de neutralidade carbónica.

De forma a reduzir o impacto de carbono da frota de entregas da Amazon, a empresa já encomendou cerca de 100 mil veículos elétricos. A encomenda foi realizada a uma empresa americana especialista em produção de carrinhas elétricas para diminuir a pegada de carbono, assegurou Hurst.

Foi também com grande entusiasmo que Kara Hurst anunciou algumas novidades, como um parque eólico na Suécia, “a maior instalação de energia solar” da empresa no Reino Unido e o “primeiro grande projeto de energia renovável em Espanha”.

A multinacional americana diz ter 90 projetos de sustentabilidade em curso. Apesar de o compromisso aspirar a 80% de operação energética renovável até 2024 e 100% até 2030, a meta está a ser projetada para atingir os 100% no ano de 2025.

Vera Jourová e a democracia na Europa

“A maior ameaça à democracia é acharmos que não funciona”. Foi neste tom que Vera Jourová, vice-presidente para os Valores e a Transparência na Comissão Europeia, começou por abordar o contexto político atual da Europa, no qual têm emergido forças políticas mais extremadas e anti-sistema. Na sessão “Defendendo a democracia na Europa”, moderada por Shona Ghosh, jornalista do Business Insider, a política checa considerou que é preciso um trabalho dos diferentes países para mostrarem que os regimes democráticos estão bem de saúde e que se recomendam. “Como? Lutando contra a desinformação, contra os extremismos, contra a violência”, afirmou.

A Internet e a World Wide Web foram ainda capítulos abordados nesta conferência. Isto, porque Vera Jourová tende a descrever este espaço abstrato como o principal meio de propagação dos fenómenos mencionados.

Contra toda esta nova corrente que parece provocar discórdias e bipolarizar a sociedade moderna, a entrevistada refere que é importante que cada um de nós mantenha bem presente a História e o que nos trouxe a este sistema ao qual chamamos democracia: “Não esqueçamos o que vivemos para chegar à democracia”, notou.

Adiar a questão e correr o risco de mais países aderirem a esta tendência é navegar em correntes perigosas na visão da representante da Comissão Europeia: “Ignorar não é a solução, mas sim corrigir e lutar contra opiniões destas [extremistas]”. Por isso, concluiu, “é assunto para tratar hoje e não amanhã”. 

O poder dos jovens contra a injustiça sistémica

Ainda no canal “central”, houve espaço para falar de opressão e mudança. O neto de Nelson Mandela, Siyabulela Mandela, ativista dos direitos humanos e da paz, Modupe Odele, co-fundadora da “End SARS Legal Aid” e Femi Kuti, músico nigeriano que também se afirma como arrivista político, e Sabrina Saddiqui, jornalista do “The Wall Street Journal”, conversaram sobre injustiça sistémica na sessão “Silêncio = Violência”.

Siyabulela Mandela, para quem “quando se fica sem opções, o protesto é a via”, foi a voz mais ativa deste painel e ressalvou a “responsabilidade em criar um movimento imparável contra a injustiça”. Na sua opinião, “todos os seres humanos têm uma escolha entre dar a mão ao próximo e lutar contra os opressores ou de se calar e, dessa forma, não ajudar os oprimidos. 

Como é do conhecimento geral, “muitos africanos vivem oprimidos pelos seus próprios governos”. Neste capítulo, Siyabulela Mandela apelou ao “protesto e para que os oprimidos nunca se esqueçam que há sempre uma opção e que eles também têm poder”.

“Façam-se ouvir sempre que houver opressão”, apelou por seu turno Femi Kuti. O músico espelhou uma visão menos romântica sobre esta questão. Para o nigeriano “vai sempre haver opressão, não é algo recente e vai ser algo que vai durar mesmo quando” a sua geração “deixar de existir”. “Nós temos a responsabilidade de lutar, temos a responsabilidade de ser honestos, mas sobretudo deveríamos ter a necessidade de viver num mundo sem injustiça”, disse ainda o músico.

Por último, Kuti abordou um assunto bastante sensível ao referir que o continente africano não produz armamento. O armamento, esse, “chega por intermédio dos Estados Unidos da América e Rússia para que depois possam ficar com os nosso recursos de graça”, acusou. Esta afirmação veio no sentido de apelar a um protesto sem armas, porque para obter resultados, tais objetos não são necessários, defendeu.

Já Modupe Odele, co-fundadora do movimento “End SARS Legal Aid” – que luta contraa brutalidade policial na Nigéria – “as pessoas têm que entender que desempenham um papel importante nos governos”. Por outro lado, o voto de cada um dos cidadãos conta no dia das eleições, a voz de cada um deles conta no dia do protesto. Como tal, Modupe Odele encoraja cada um a levantar-se e a perceber a sua importância na defesa de qualquer causa.

“Os governos de hoje já conhecem melhor a nova realidade. Os jovens não têm medo de dizer o que pensam”. Neste sentido, há melhoras, mas que para Modupe “não são suficientes”, já que as pessoas apenas se habituam às suas realidades. Nâo pelo facto de não conhecerem outra realidade, mas pelo medo que os imobiliza perante uma potencial revolução.

Artigo editado por Filipa Silva