O presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP), Rui Rio, justifica a actual política de concessões a privados dizendo que se tem empenhado em “tirar a câmara de onde não deve estar, para a pôr onde deve e tem de estar”.

Noutra ocasião, o presidente afirmou que o seu objectivo é dirigir o investimento da câmara – que diz ter uma capacidade de endividamento de 50 milhões de euros – para a via pública, a habitação social e as escolas. De acordo com o autarca, estas são áreas que não devem ser entregues a privados. O sector da cultura será, por outro lado, um dos mais flexíveis para receber a participação dos privados.

A cultura pode ser uma forma de “intervenção social”

“Se esse argumento fosse aplicável, não havia cultura”, diz Paulo Cunha e Silva. De acordo com o professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, “há sempre habitação social para construir, há sempre hospitais que precisam de ser melhorados”, e este tipo de visão atribui à cultura um valor de “ornamento” e não de componente importante na vida quotidiana da cidade. “Eu acredito na cultura como intervenção social”, sublinha.

O sociólogo João Teixeira Lopes afirma que, até agora, a autarquia “não construiu uma única habitação social”, limitou-se a arranjar as fachadas de alguns bairros que dão para a VCI, que são “mais visíveis”. Quanto à reabilitação da Baixa do Porto ser motivo para concessionar infra-estruturas, o também professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto diz que a política de Rui Rio não está realmente a reabilitar o centro da cidade, limita-se a “expulsar as classes baixas e a dar lugar às elites”.

Também a socióloga da cultura Helena Santos defende que “não é por fazer a reabilitação dos bairros sociais que Rui Rio poupa alguma coisa na cultura”, por serem duas áreas completamente distintas. A socióloga acredita que a cultura pode mesmo ter um papel importante na integração de populações mais desfavorecidas, na medida em que contribui para “a qualificação da própria cidade onde estão também essas populações”.

Privatização da cultura para sensibilizar empresas

Existe uma tendência para a privatização da cultura, defende Helena Santos, mas não nos termos das concessões que têm vindo a acontecer no Porto. A privatização da cultura deve traduzir-se em “parcerias, na procura do envolvimento da sociedade civil e em conseguir implicar e sensibilizar não só o cidadão comum, mas sobretudo empresas e outros agentes que possam implicar-se financeiramente”, explica a socióloga.

Este é um processo comum “em meios anglo-saxónicos”, onde “o envolvimento privado no próprio financiamento à produção e à criação artística está muito mais enraizado”. Contudo, em Portugal, os privados financiam apenas organismos que “já estão legitimados” e são “pouco sensíveis a instituições menos consolidadas”, que são as que mais necessitam de apoio, considera Helena Santos.

De acordo com Paulo Cunha e Silva, a vida cultural portuense gira em volta de “duas ilhas culturais”, a Casa da Música e a Fundação de Serralves, e os “fenómenos precários e efémeros” que estão no meio desses dois pólos tenderão a acabar. “Ainda mais quando a cultura é obrigada a não criticar a autarquia”, acrescenta, referindo-se à situação da companhia de Teatro Art’Imagem, cujo subsídio camarário foi retido, em 2006, quando o grupo se absteve de assinar um contrato com uma cláusula que implicava não criticar a autarquia.

Actual política cultural “asfixia” investimento anterior

Paulo Cunha e Silva acredita que a CMP “tem alienado todas as obrigações culturais”, levando a cabo “políticas culturais viradas para o espectáculo inconsequente, como corridas de carros antigos e shows aéreos”. O investigador afirma que “as autarquias anteriores tiveram um papel importante na caracterização cultural da cidade”, em oposição ao presente executivo.

Helena Santos partilha da mesma opinião. Com os executivos anteriores foi dada uma inédita “atenção à vertente cultural, em múltiplas dimensões”, que conduziu à dinamização do Porto “muito pela via da cultura”. Por outro lado, a actual política cultural é “asfixiadora, senão aniquiladora daquilo que durante dez ou 12 anos se conseguiu ir criando”, acrescenta.

“Houve de facto um esforço de estímulo aos agentes artísticos, aos públicos e à criação de uma dinâmica de relações inter-institucionais na cidade”, cujo ponto alto foi a Porto 2001, defende a socióloga. “Tenho muita pena é que, imediatamente a seguir, se começou a destruir o que até aí tinha sido feito”.

Segundo Helena Santos, a criação de rotinas culturais que se “auto-alimentem” é muito demorada e “destrói-se muito rapidamente se deixa de haver oferta [cultural]”. “Demora muito tempo a consolidar dinâmicas em que as pessoas se familiarizam com as obras e com os bens e serviços culturais, demora muito a criar gosto crítico”, acrescenta.