A economista, a deputada europeia, a mulher. Nesta entrevista, efectuada por altura dos 30 anos do 25 de Abril, Ilda Figueiredo fala sobre a situação do sexo feminino durante a ditadura salazarista, sobre a sua experiência pessoal, sobre o contributo do 25 de Abril para a Igualdade de direitos entre homem e mulher. Actualmente é deputada no Parlamento Europeu pelo Partido Comunista, mas já fez outras coisas na vida. Foi professora primária, licenciou-se em Economia, mas aquilo que sempre a apaixonou foi a política, actividade à qual dedica mais tempo.
Considera-se uma “defensora de causas justas”. E a defesa da dignidade da mulher é uma delas. Actualmente faz parte da Comissão para a Igualdade dos Direitos e da Participação das Mulheres no Parlamento Europeu.

Como é que viveu o período da ditadura, antes de 25 de Abril de 1974?

Vivi a ditadura aqui, em Vila Nova de Gaia. Era professora primária. Dei aulas em Alheiras, Pedroso e também em Oliveira do Douro e simultaneamente era aluna da Faculdade de Economia do Porto.

E como é que a ditadura se fazia sentir aqui, em Vila Nova de Gaia?

Sobre esse período, posso-lhe contar alguns episódios interessantes. Um deles passou-se na Faculdade de Economia do Porto, para a qual fui quando já era casada. Numa primeira aula de Economia, o professor disse: “Ah, estão aqui algumas raparigas! Mas só estão aqui até se casarem, até arranjarem marido”. E eu disse: “Olhe, eu não, porque já sou casada”. E acabou ali a conversa. Era esse o modo como eles viam as raparigas a frequentar um curso de Economia. Além disso, não podia ir de calças para a escola, mas eu ia. Um dia, a directora da escola chamou-me e disse-me que isso era proibido e que se a inspecção lá fosse, eu podia ser expulsa. Bem, eu continuei a fazê-lo, mas nunca lá foi nenhuma inspecção. Foi a minha sorte.

Mas apercebia-se de situações de discriminação à sua volta?

Sim, claro. Basta ver a situação das professoras primárias que, até certa altura, para se poderem casar tinham de provar que o marido tinha um rendimento superior ao delas, porque senão não eram autorizadas a casar-se. E também não recebiam subsídio de férias porque o Governo partia do princípio de que elas tinham que ser sustentadas pelo marido. Creio que isto demonstra bem o que era o fascismo, o que era a discriminação das mulheres, e o que era essa discriminação instituída na própria Lei.

Teve algum tipo de papel de intervenção ou de oposição ao regime, nesse período?

Bom, a oposição era no dia-a-dia da nossa vivência. Em 1973, havia um professor na FEP que dava um tema livre para as teorias económicas. Claro que não se davam as teorias marxistas, isso era proibido. Mas ele disse que podíamos fazer o trabalho sobre o que quiséssemos para o exame. Então eu decidi fazer a comparação entre a teoria marxista e a teoria Keynesiana. Apresentei-o ao professor e no fim havia um debate sobre o tema. Esse professor subia a todos dois valores na oral, em torno da defesa do trabalho. No exame escrito eu tive 15, portanto era pressuposto ficar com 17. Claro que como eu tinha escolhido aquele tema, e como Marx era proibido na escola, o professor pura e simplesmente não me fez o exame oral. Perguntou-me qual era o tema, eu disse-lhe e ele mandou-me embora com a nota do exame escrito. Portanto, considerou a discussão oral do tema como não feita.

E agora vem a pergunta típica: onde estava no 25 de Abril?

Estava a dar aulas. Quando veio o 25 de Abril, ouvi de manhã, em casa, o anúncio num programa na rádio que nos levou a pensar que algo tinha acontecido. Aliás, todos nós estávamos naquele permanente sobressalto de que algo ia acontecer. O meu marido, na altura, estava com um processo disciplinar no trabalho, não por ser preguiçoso, mas por motivos mais ou menos políticos: tinha defendido alguns trabalhadores. Portanto, estávamos naquela ânsia permanente do que é que ia acontecer. Quando ouvimos aquilo na rádio notámos que algo de estranho tinha acontecido. Eu fui à escola. Havia lá um grupo de gente anti-fascista. Rejubilámos com aquilo, viemos todos para a rua com os alunos, para a beira da PIDE, a exigir que soltassem os presos políticos. Não me recordo de me ter deitado naquelas três primeiras noites, até que surgiu entretanto o 1º de Maio e foi a grande festa. Fomos todos para a Baixa do Porto festejar o primeiro 1º de Maio em liberdade que pudemos comemorar no nosso país.

A seu ver, qual foi o contributo do 25 de Abril, ao nível dos Direitos da Mulher?

Eu costumo dizer que se alguém ganhou com o 25 de Abril, e ganhámos todos, mas os mais ganhadores foram as mulheres. Porque é a primeira vez que no nosso país, com dezenas de anos de atraso relativamente aos restantes países da Europa, é reconhecida a igualdade de direitos das mulheres. É a primeira vez que isso acontece em Portugal, porque mesmo durante a República, que antecedeu o fascismo, os direitos das mulheres não foram reconhecidos. A primeira vez que isso acontece é, de facto, com o 25 de Abril de 1974, em Portugal, e esse é um ganho fundamental.

Sim, mas apesar de todas essas mudanças, a verdade é que ainda não se atingiu a igualdade plena, e isso nota-se particularmente na política, que é a área em que está mais envolvida…

É toda uma luta muito dura. Mas deram-se transformações espantosas naqueles primeiros anos, embora seja verdade que não se mudam mentalidades por decreto. E, portanto, é necessária toda uma educação permanente, toda uma formação. Eu recordo-me que nos primeiros anos em que fui candidata a várias coisas, por exemplo à Assembleia da República, era comum ouvir homens e mulheres, e sobretudo nas mulheres isso custava-me muito, a dizerem: “vai mas é para casa cuidar das crianças, dos filhos, do marido, cozinhar, coser meias”. E isso durou alguns anos, em várias campanhas. Mas com o tempo as pessoas habituaram-se. É óbvio que não ouço isso há muitos anos, embora haja jovens que me tenham dito, noutros sítios do país em que têm sido candidatas, que infelizmente ainda se ouvem essas bocas. E isto alerta para o seguinte problema: os direitos não são definitivos, os direitos são permanentemente postos em causa e é necessário lutar para os defender.

Anabela Couto