Salgueiro Maia teve um acidente e foi preso pela polícia de trânsito. Sem ele, a revolução falhou e passados cinquenta anos Portugal continua parado no tempo. A distopia, com uma pitada de humor, sobe esta quinta-feira (11) ao palco do Teatro Carlos Alberto onde vai manter-se até 27 de abril.

25 de abril nunca aconteceu

Sob um olhar distópico, acompanhado de humor e ficção, a companhia Palmilha Dentada apresenta “O 25 de Abril nunca aconteceu” no palco do Teatro Carlos Alberto. Foto: Raquel Pardilhó/JPN

Como seria Portugal se a ditadura triunfasse? Como seria Portugal se Salgueiro Maia sofresse um acidente com um camião de entrega de pão por não ter parado no semáforo vermelho? E se ele fosse preso pela polícia de trânsito por causa disso? Com humor e muita ficção, a companhia Palmilha Dentada apresenta “O 25 de Abril nunca aconteceu”, uma distopia que sobe ao palco do Teatro Carlos Alberto a partir desta quinta-feira (11).

A peça retrata a história da família Freitas num mundo que avançou, mas Portugal não. O pai trabalha num esquema de extorsão de dinheiro a mulheres espalhadas pelo mundo que falam português. A tipografia onde trabalha esconde uma célula clandestina que faz circular informação sobre o contexto político português. A PIDE, a censura e o medo continuam presentes e ativos.

Sem cravos, as escutas estavam ao virar da esquina. O medo de ouvir alguém a bater à porta a meio da noite ainda é uma realidade. É a “passear os cães” que Marcolino e Manuel Tiago se reúnem em plena praça pública, à noite, a discutirem o descontentamento que partilham perante um regime opressor que proíbe a Coca-Cola e os crocs.

No entanto, a conversa é constantemente interrompida. Em cena entram, à vez, um colega de Marcolino; um monárquico acompanhado da filha de 15 anos que completou o ensino escolar até à quarta classe e que agora tem mais do que um trabalho para ter dinheiro suficiente para ajudar em casa; um suspeito agente da PIDE e um anarcossindicalista. Acabam sempre por colocar a mesma pergunta aos dois amigos: “o que é que estão a fazer aqui à noite?”. Apesar de os dois amigos já não se lembrarem em que dia de abril de 1974 é que se tentou fazer um golpe em Portugal, o desejo por mudança continua a fervilhar clandestinamente.

Em ensaio aberto à imprensa, Ricardo Alves, encenador, explica que, nesta história, Portugal liberta as colónias porque o prejuízo era maior do que o lucro. Porém, Angola permaneceu agarrada à metrópole devido à riqueza gerada pelo petróleo. Apesar de querer explorar muito o sistema político e as suas repercussões, as questões sobre “como seríamos nós como pessoas, como seria se estivéssemos a continuar a viver com medo (…) e como seria o crescimento das crianças” interessaram mais ao encenador.

Como é habitual com a companhia Palmilha Dentada, o humor não ficou de fora, o que ajudou a adensar a ridicularização de alguns aspetos, mas com o cuidado de não ridicularizar demais. “Houve um cuidado especial de levantar perguntas, que é o que o teatro deve fazer. É levantar perguntas. Não dou respostas nenhumas, só faço questões. Mas houve algum perigo de tornar a coisa demasiado ridícula, porque estávamos a falar de uma questão muito séria, mas acho que me consegui conter e não fazer as coisas excessivamente estapafúrdias ou absurdas”, sublinhou.

É com este intuito que Amy Winehouse acaba por entrar na peça, ainda que indiretamente. Julieta, adolescente de 15 anos, só ficou a saber oito anos depois que a cantora falecera. Isto para evidenciar o isolamento a que Portugal está votado nesta realidade paralela sem democracia.

“Os filmes estreavam cá com seis anos de diferença em relação a Hollywood. A maior parte das informações não nos chegavam, vivíamos numa realidade completamente diferente. E também me interessou dar essa ideia e os crocs são um bom símbolo, que é uma coisa que não vale cinco coroas e que, no entanto, pode ser um objeto de desejo para quem não o tem”, explicou.

O teatro como sala de aula

Apesar de a sinopse e o título terem começado a ser trabalhados há dois anos, o texto da peça foi sendo feito em conjunto com os atores, até porque o encenador tinha dez anos quando o 25 de Abril se deu. Os ensaios começaram há cerca de um mês e meio.

Numa altura em que a celebração dos 50 anos do 25 de Abril está cada vez mais próxima, o encenador considera que a arte “é fazer sonhar, fazer perceber e fazer rebentar tudo. É, acima de tudo, questionar as pessoas, pô-las a rir-se para que depois saiam a pensar na vida e levem daqui [da peça] alguma pergunta”.

Neste sentido, a peça surge também como uma chamada de atenção, uma vez que “há sempre esse perigo da memória ser traiçoeira”. “Quando nós crescemos, começamos a ficar um bocadinho mais deprimidos e a atualidade irrita-nos e temos sempre saudades do que éramos no passado. Pensamos que a saudade que temos é de algum momento particularmente mau que vivemos, e devido, se calhar, à nossa inocência, à nossa falta de expectativas e à nossa fragilidade, acreditamos que era bom”, salienta.

O encenador também quer chamar a atenção dos mais jovens, uma vez que não “têm noção do que é que foram aqueles 48 anos de ditadura e o que significou a alegria bêbada que foi aquele 25 de Abril para toda a gente. Essa poesia do 25 de Abril, também é importante passá-la e lembrar que temos a capacidade de mudar as coisas”, apontou.

Mário Moutinho, que interpreta um fascista, partilha a mesma opinião. Na vida real, tinha 27 quando se deu o golpe.

“Antes do 25 de Abril, para além daquelas coisas que conhecemos – a guerra colonial, a censura, a perseguição aos antifascistas, etc. -, havia também coisas muito mesquinhas. Eram presas as raparigas por irem de calças para o liceu, por exemplo. Lembrar-nos dessas histórias, se calhar, é útil para um trabalho como este, em que se fala das coisas ridículas. Aqui temos uma zona desta peça, onde a jovem quer usar crocs, mas não pode ser, porque estão proibidas. Quer dizer, na altura do Salazar não havia crocs. É uma coisa recente, mas é um exemplo de uma coisa ridícula”, exemplificou.

O ator partilhou algumas memórias do dia que os soldados saíram à rua para deitar abaixo o regime. Diz que foi o dia “mais feliz da vida” dele e foi quando sentiu que é possível “um mundo melhor” e, acima de tudo, “discutirmos uns com os outros, conversarmos, estarmos de acordo, não estarmos de acordo e [vivermos] numa sociedade onde todos temos o nosso lugar”.

No entanto, considera que ainda falta cumprir muita coisa ao nível de mentalidades. Com os resultados das últimas legislativas, acrescenta que o 25 de Abril deste ano é perigoso e que “estamos numa situação muito complicada”. Tanto Ricardo Alves como Mário Moutinho admitem que o texto do último ato da peça foi alterado assim que foram conhecidos os resultados das eleições. É mais “triste” e carregado de “desencanto” e “susto”, dizem.

Mário Moutinho tem curiosidade para saber “como é que os jovens vão olhar para um espetáculo deste género e que perguntas vão fazer”.

Para além de Mário Moutinho, Beatriz Baptista, Eloy Monteiro, Ivo Bastos, Filomena Gigante, Rodrigo Santos e Valdemar Santos interpretam “O 25 de Abril nunca aconteceu”, que tem audiodescrição e tradução em língua gestual portuguesa. Os bilhetes têm um custo de dez euros e há cinco sessões por semana, desde 11 até 27 de abril. Quartas-feiras às 15h00; quintas e sábados às 19h00, sextas-feiras às 21h00 e domingos às 16h00.

A peça, que dura 1h10, é produzida pela companhia Palmilha Dentada em parceria com o Centro Cultural de Carregal do Sal, Município de Lagoa e pelo Teatro São João.

Editado por Filipa Silva