Há 46 anos, houve jornais que já não passaram pelo crivo do censor. Primeiro em Lisboa, depois no Porto, a liberdade chegou à imprensa, depois de quase meio século de censura.
Com o 25 de Abril de 1974 vieram jornadas de trabalho intensas, edições especiais, jornalistas estrangeiros, temas até então proibidos, mais mulheres nas redações. Tudo acompanhado de um grande entusiasmo.
O antigo jornalista e historiador Germano Silva, a docente e investigadora Helena Lima, e a escritora Manuela Espírito Santo contam ao JPN os efeitos desse dia que marca um antes e um depois na sociedade portuguesa.
“É hoje!”
No próprio dia do 25 de Abril, “houve jornais que não foram à comissão de Censura e já saíram sem condicionamento das notícias”, diz ao JPN Helena Lima, professora da Universidade do Porto que dedicou a tese de doutoramento à história dos jornais diários portuenses. O golpe que depunha o Estado Novo, depunha imediatamente “o condicionamento político, a repressão, a falha de publicação por não estar de acordo”.
Em 1974, existiam três jornais diários, no Porto: “O Comércio do Porto”, “O Primeiro de Janeiro” e o “Jornal de Notícias”. Estando “mais distantes do poder, a coisa demorou mais algum tempo a ser assimilada”, afirma Helena Lima. Não que os jornalistas portuenses fossem “mais lentos”, mas “era o procedimento normal”: “iam à Censura ao final da tarde do dia anterior, que era para o jornal ficar pronto à noite, para sair durante a madrugada, ou seja, antes do golpe”, esclarece a professora.
A edição especial do “Jornal de Notícias” e as edições dos jornais “O Comércio do Porto” e “O Primeiro de Janeiro”, no dia 26 de abril de 1974.
FONTE: Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra
Germano Silva, jornalista e historiador do Porto, estava na redação do “Jornal de Notícias”, na véspera da revolução. Recorda que a edição que saiu na madrugada de dia 25, ainda foi à censura. “Quando o contínuo chegou lá com as provas, veio-se embora e disse: ‘aquilo está fechado, não está lá ninguém’; os censores depois já não apareceram lá”, conta.
Naquela altura, os jornais fechavam muito tarde, depois das duas da manhã. “Por volta da meia-noite, saí com um colega, o Manuel António Pina, para comer umas iscas, ali na Praça da República. Ao passar junto ao quartel, vimos um movimento de tropas e o Manuel, que estava muito bem informado sobre o assunto, disse assim: ‘É hoje!’, recorda o também doutor honoris causa da Universidade do Porto.
Voltaram para a redação, para dar início a uma jornada que duraria “dois dias e duas noites seguidas, a fazer edições especiais”. Sintonizaram rádios, fizeram telefonemas para Lisboa, falaram com os amigos que sabiam estar ligados aos movimentos, porque “essas coisas são segredo, mas há sempre alguém que sabe”. Era preciso contar ao povo o que estava a acontecer. “O grosso da população não sabia: ‘é de direita? é de esquerda? é uma revolução para mais de um mês? ou é para mudar?’”, conta o jornalista.
A liberdade trouxe novos desafios às redações
“Passaram de uma situação em que tinham pouca informação a tratar, e muito institucional, para outra em que tinham muita informação e de caráter político”, indica Helena Lima. As redações tiveram que contratar mais pessoal: “um bocado como agora, com o COVID”, viam-se sem mãos a medir. “Trabalhavam de manhã à noite” e, muitas vezes, “havia duas edições do jornal, quando a agenda justificava”, esclarece a professora.
O volume de informação aumentou, mas cresceu também o entusiasmo por parte da comunidade jornalística. E “não era só a comunidade portuguesa”, lembra a professora. Houve vários jornalistas estrangeiros que vieram para Portugal, para poderem “viver a revolução in loco”.
Dentro das redações, havia pessoas fiéis e infiéis ao regime. “O que aconteceu depois do 25 de Abril, tanto em Lisboa, como no Porto, foi que as pessoas que eram fiéis à ditadura foram expulsas”, diz a professora. O “Jornal de Notícias” fugiu à regra: “não os expulsaram, mas também não lhes deram liberdade”.
“Foi uma grande conquista, do ponto de vista jornalístico”, garante Germano Silva. Antes, “não podíamos falar dos suicídios, drogas, essas realidades que andavam aí”. Em 1969, estava no norte de Moçambique, a cobrir a guerra colonial: “eu escrevia o que entendia e tinha duas censuras – a oficial e a militar, que também interveio; era uma frustração muito grande”.
Dá-se o 25 de Abril e, de um momento para o outro, passa a ser possível escrever livremente, mas com responsabilidade. “Nós sabíamos que liberdade não era libertinagem. Não podíamos ultrapassar as regras do civismo, da boa educação, dos princípios democráticos, e os jornalistas adaptaram-se com facilidade”, reconhece.
O regozijo da “rapaziada irreverente”
“As pessoas não eram fiéis à ditadura e isto era uma coisa natural no jornalismo”, admite Helena Lima. Principalmente em jornais como “O Primeiro de Janeiro” e o “Jornal de Notícias”, que tinham contratado uma “rapaziada irreverente”, no início dos anos 70. “Os jornais eram muito pouco obedientes ao regime, dentro daquilo que podiam”, acrescenta.
A Revolução dos Cravos e a liberdade alcançada significaram uma “satisfação profissional muito grande”: os jornalistas podiam, enfim, “andar a correr de um lado para o outro e fazer muita coisa”, descreve a professora.
A agitação política no país foi grande, sobretudo até ao 25 de Novembro de 1975, com o fim do chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC). “A radicalização política faz-se sentir mais nuns jornais do que noutros, mas tanto em Lisboa, como no Porto”, esclarece Helena Lima.
Uma década até ao primeiro congresso
Manuela Espírito Santo, membro da direção da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), lembra que “havia muito poucas escritoras e jornalistas”. Depois da revolução, a associação adaptou-se aos “novos tempos” e assistiu à chegada de mais mulheres, inclusive aos lugares de chefia.
Ao escrever a história da AJHLP, Manuela Espírito Santo diz ter-se cruzado com um “telegrama, enviado pela direção da associação à Junta de Salvação Nacional, a saudar pela tomada de poder”. Nos primeiros anos da ditadura, algumas associações foram fechadas, mas a AJHLP escapou, porque “tinha sido criada ao abrigo de um decreto que não cabia neste que saiu em 1933”. Desde o início, “a associação esteve sempre na linha da frente, a defender os direitos da classe”, acrescenta.
O 1º Congresso dos Jornalistas Portugueses, sob o lema «Liberdade de Expressão, expressão da Liberdade», deu-se quase uma década depois da revolução. Entre 19 e 22 de 1983, debateu-se o exercício do jornalismo português, falou-se de “direito à informação” e “liberdade de informar” e declarou-se o “repúdio por todas as formas de censura”.
Além de uma análise aos problemas da classe, as conclusões do encontro espelhavam “o princípio de uma reflexão alargada”, que só então podia iniciar-se. “Os jornalistas portugueses souberam encontrar um espaço de diálogo entre si, um terreno sólido que podem pisar confiantes, na caminhada por uma profissão mais digna, mais respeitada, mais útil para o povo que servem”, lê-se na página do Sindicato.
“Festival Popular do 25 de Abril”, organizado pela FAPIR, no Porto, em 1977.
FONTE: Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra
No pós 25 de Abril, viveram-se “dias inesquecíveis”, em que “as pessoas não se perderam em análises e discussões sobre ‘o conceito mais concreto de liberdade’”, lê-se num documento da Frente de Artistas Populares e Intelectuais Revolucionários (FAPIR), de 1977.
O panorama mediático alterou-se profundamento ao longo dos últimos 46 anos. Dos três jornais portuenses de 1974, só o Jornal de Notícias resiste. A 11 de março de 1975, com a nacionalização da banca e dos seguros, a quase totalidade da imprensa nacional ficou nas mãos do Estado, ainda que sem intenção. No final da década de 80, o setor segue um novo e diferente movimento de concentração dos media.
Apesar de todas as diferenças, há quase meio século que a comunicação social portuguesa conhece a liberdade de pensamento e expressão. Germano Silva não tem dúvidas: “o maior benefício do 25 de Abril foi termos conquistado a liberdade”, não só para os jornalistas e escritores, mas para todo o povo português.
Artigo editado por Filipa Silva