Apesar de já estar aposentado desde 2009, a última lição de José Ferreira Lemos, licenciado e doutorado em Engenharia Civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), só acontece agora. A “culpa” é do próprio, que se esforçou por “fugir” da cerimónia desde o final do ano lectivo passado, por entender que não reunia as “condições” necessárias para dar tal aula. Aceite o convite, é, no entanto, “com muito gosto” que o professor e investigador na área da Hidráulica e Recursos Hídricos partilha quinta-feira o que aprendeu e ensinou na faculdade portuense, de onde leva “as melhores recordações”.

A sua aula tem por título “O que aprendi. O que ensinei. No que me empenhei”. O que aprendeu nestas décadas, tanto como aluno, como, mais tarde, parte integrante da Faculdade de Engenharia?

O que aprendi… Aprendi muito na faculdade, particularmente com as questões ligadas ao significado físico dos principais operadores. Aprendi, também, a lidar com os alunos e com os professores. Aprendi a saber as minhas limitações, mas a saber melhor as limitações dos outros, conselho que me foi dado pelo meu pai.

Acho que também tentei sempre ter um companheiro humanista, entre colegas e engenheiros. Tentei sempre saber estar na minha profissão de docente universitário, onde tinha centenas de alunos e colegas com quem conviver todos os dias.

“Aprendi a saber as minhas limitações, mas a saber melhor as limitações dos outros”

Em relação às minhas aulas, eu tentei sempre dar o sentido físico das coisas e não despejar matéria após matéria para os alunos pouco apreenderem. O que dava, dava em quantidade substancial, mas sempre acompanhado da aplicação destes conceitos.

O que mais gostou de ensinar?

As cadeiras que dei ligadas a aproveitamentos hidráulicos, hidráulica e a geotecnia.

Está ligado a diversos projectos e sempre foi assim ao longo da sua vida…

Foi. Mas houve uma fase da minha vida, nos últimos anos, em que a idade já começava a pesar e me dediquei mais à promoção internacional da faculdade [FEUP]. Mas participei em projectos muito interessantes, como o da barragem de Crestuma, fundações para aero-geradores, estruturas especiais como a encosta do Palácio, apesar de pouca gente gostar daquela estrutura de betão que está na Rua da Restauração. Também participei no Nó de Francos, Nó da Boavista, no acesso à Ponte do Freixo, no túnel que desemboca no Museu de Soares dos Reis…isto só na nossa cidade. Fora do Porto, participei em inúmeros estudos de aproveitamentos hidroeléctricos, de vias de comunicação…

Algum projecto mais complicado que recorde?

O projecto mais complicado que fiz foi logo o primeiro, porque de início sabemos muito pouco. Foi a barragem de Crestuma, quando eu estava praticamente a concluir o meu doutoramento. Era uma obra muito singular, porque a barragem de Crestuma é, em grande parte, fundada em areia e eu tive de estudar muito e recorrer a pessoas mais experientes para conseguir “levar a carta a Garcia”.

Tem algum projecto que acarinhe de forma especial?

Fundamentalmente, para além da barragem de Crestuma, a ponte a sul de Mirandela e uma barragem que ajudei a construir em Espanha, simplesmente porque foram projectos bem sucedidos.

É actualmente membro da Comissão de Segurança de Barragens. Qual é o estado das barragens portuguesas e dos nossos recursos hídricos?

“O ordenamento dos recursos hídricos melhorou muito”

O estado das barragens portuguesas, tirando alguns casos mais singulares, é bom. Elas estão é a ficar velhas (risos), porque ultimamente não se tem feito barragens. Agora com este plano nacional que o Governo tem implementado é que se tem voltado, digamos, “à carga”.

Em relação aos recursos hídricos, penso que, com a criação da ASAE e as administrações regionais hidrográficas, de que conheço melhor a do Norte, o ordenamento dos recursos hídricos melhorou muito. Há pessoas de muita categoria à frente dessas organizações, que têm conseguido sustentabilidade para os recursos hídricos. Mas eu sou um homem de estruturas hidráulicas, não sou bem só de recursos hídricos. Gosto de pôr qualquer coisa no rio, não gosto de olhar só para o rio. (risos)

De que forma é que avalia o estado da engenharia civil em Portugal, tanto a nível da investigação, como a um nível mais prático?

Em relação à investigação, estamos a seguir exactamente o que os outros estão a seguir. Não haverá já um grande conjunto de campos para explorar, porque a engenharia civil não é uma engenharia de ponta, está antes ligada a várias engenharias de ponta. Agora, o ensino da engenharia civil é muito bom nas principais escolas do país, que estão acreditadas pela Ordem [dos Engenheiros].

Então a engenharia civil em Portugal recomenda-se?

Repare que a engenharia civil em Portugal já tem uma tradição muito antiga. Nós fomos considerados juntamente com os nossos colegas espanhóis, italianos e americanos, dos melhores engenheiros civis do Mundo. Já há muitos anos.

E continuamos a ser bem “cotados” internacionalmente…

Continuamos. Só andamos um pouco saudosos de grandes engenheiros, mas esta “gente nova”, dominando processos informáticos complexos, também ajuda muito na elaboração dos projectos. Há uns que concebem, outros que fazem as coisas… se calhar agora até estamos melhor.

Aposentou-se do ensino em 2009. Que sabor tem esta última aula para si?

“Andei a fugir a esta última aula”

A minha última aula já vai atrasada, porque me aposentei no dia 31 de Julho do ano passado, quando terminou o ano lectivo. Esforcei-me sempre por não dar a minha última aula, porque para a dar, na minha opinião, tem de se reunir três condições. A primeira é ser “de carreira” e eu sou. A segunda é ser professor catedrático… eu sou. A terceira é ter 70 anos… eu não tenho (risos). Andei a fugir a esta última aula em Janeiro, Fevereiro, Março… e em Maio já não escapei, porque parece que as pessoas estão a “meter” reforma cada vez mais cedo e a desculpa dos 70 anos não era uma desculpa com peso. Sendo assim, vou dar a minha última aula amanhã, com muito gosto.

É um regresso desejado às origens?

É, eu dou aulas desde 1970, nunca tive nenhuma dispensa de serviço, nunca tive nenhuma licença sabática, gostei sempre muito de dar as minhas aulas. Também, como tive uma actividade profissional muito rica, transmiti aos alunos certas situações que vivia e tenho a certeza que dava umas aulas muito agradáveis.

Que memórias é que leva da sua relação de tantos anos com a Faculdade de Engenharia?

Nesta relação de quase quarenta anos, dos quais treze e meio passados na comissão coordenadora, que é um conjunto de pessoas que governam a faculdade, levo as melhores das recordações. Sempre fui cumulado de gentilezas por todos os colegas de todos os cursos, pelo nosso pessoal do departamento, pelos alunos…

E agora, o que se segue?

Eu agora, além de ter uma vida mais tranquila, vou envelhecer, desculpem-me a redundância, tranquilamente. Vou continuar com os meus estudos e projectos, agora em outras latitudes, particularmente em Angola, porque aqui há pouco trabalho. Além disso, continuo com os meus estudos aqui em Portugal e ligado à promoção empresarial de energias renováveis.