Visitou à Índia pela segunda vez em 1992. Porquê voltar?
Estava à procura de mim próprio. Cheguei a Deli e acabei por ir para um mosteiro sufi, a escola filosófica mais mística do Islão. Passados uns dias, vieram ter comigo e disseram: “se estás aqui para aprender vamos-te dar um mestre”. Indicaram-me um engenheiro que sabia muito de filosofia. Eu disse que não, que queria outro, um velho que passava seis horas em Posição de Lótus com a cara coberta de moscas e não se mexia.
Esse mestre nunca me disse uma palavra de filosofia ou qualquer coisa. Dizia apenas para me sentar ao pé dele quando me apetecesse. E eu sentava-me, em Posição de Lótus, e mexia-me para afugentar as moscas. Ao fim de dois meses, uma mosca entrou no meu nariz e eu não tive comichão.
O que é que isso significou para si?
É preciso ter um vazio mental, descentrarmo-nos até o sistema nervoso periférico e central ficar fora de nós mesmos. Foi a única coisa que aprendi com ele.
Depois decidi ir ver o Taj Mahal outra vez. Saí da estação em Alwar, uma cidadezinha pequena, e lembrei-me que tinha sido por ali que tinha chegado a Sariska em ’85, à reserva de tigres. Esse foi um momento fundamental dessa viagem, algo que mudou a minha vida. Saí e vi um alemão. Perguntei-lhe de onde ele vinha e ele disse Sariska. “E como está Sariska?”, perguntei. Ele respondeu: “It is beautiful.” E eu repeti: “Yes, it is beautiful.” Fui para Sariska.
Tinha estado lá com 23 anos e nessa altura tinha visto um ecossistema com biodiversidade total, intacto.
Entrevista:
– Do Islão à tribo gurjar
– O antropólogo que procura sociedades felizes
– “Estive a morrer no Níger”
O que significa um ecossistema intacto?
É quando o curso da evolução natural não parou. Na altura, tinha chegado a uma aldeia, mas não tinha tomado consciência da sua importância. Em ’92 encontrei-a outra vez. Sentei-me ao pé dos velhos e disse-lhes que tinha estado ali em ’85, mas eles não se lembravam de mim. Comecei a andar com eles na floresta e a ganhar amigos.
Eles aceitaram-no bem?
Sim, eu era o primeiro branco que se tinha interessado por aquela aldeia. E eu tive sempre um bom passaporte: fui agricultor aqui. Quando eles me viam a pegar num cajado, percebiam que sabia trabalhar depressa com eles e como eles.
Aí eu tomei consciência que estava num sistema agrário, numa sociedade humana no meio de uma selva com tigres, leopardos e milhares de grandes herbívoros com a cobertura vegetal praticamente intacta. Eles estavam a viver como sempre se viveu e já não acontece em parte nenhuma. A tomada de consciência que tive foi: é possível uma sociedade agrária viver num ecossistema completamente intacto.
É, aliás, essa a tese que tem vindo a defender ao longo de todos estes anos…
Sabe, a ciência vive de intuição. Você tem uma intuição e depois pode ter de passar a vida toda a prová-la. E foi o que eu fiz. Voltei, concorri outra vez para o mestrado em Montpellier e fui aceite. A primeira coisa que fiz foi passar seis meses a estudar o estado do mundo. Compilei tudo sobre políticas de desenvolvimento sustentável. As definições deste conceito sempre me tinham parecido vagas.
O desenvolvimento sustentável implica que os ecossistemas se mantêm intactos. Quais ecossistemas? O que é um ecossistema durável em termos ecológicos? Se não tem a infra-estrutura intacta, então não é durável. Se nos ecossistemas continentais a estrutura funcional implica grandes massas de vegetação, herbívoros selvagens, macrofauna e macrocarnívoros, então só podemos falar de uma co-habitação equilibrada entre humanos e natureza quando uma cultura humana é capaz de viver conservando a estrutura funcional intacta, isto é, a cadeia trófica ou alimentar.
Uma sociedade realmente sustentável ou durável é aquela que é capaz de viver com lobos, leões, tigres, jaguares ou pumas. É uma conclusão um bocado bizarra, mas totalmente clara e irrebatível do ponto de vista científico. Foi esta a questão que eu pus aos meus professores na Universidade de Montpellier. Disse-lhes que queria ir estudar tigres para a Índia.
E foi para a Índia.
Fui para a Índia seis meses com a bolsa francesa de mestrado em ’94.
Aí começou a viver com os gurjar na aldeia de Haripura e a acompanhá-los em todas as actividades diárias.
De dia não fazíamos quase nada então ia pelas aldeias a fazer inquéritos. O guarda-nocturno da pensão falava inglês e hindi e vinha comigo fazer os inquéritos. Às noites saíamos para pastar os búfalos.
Como comunicava com os gurjar quando não estava com o intérprete?
Somos de culturas muito diferentes na maneira de pensar, de vestir, na moral, na história, mas há coisas universais na espécie humana: o olhar e o sorriso. O sorriso é universal e é comum a todos os primatas.
“Uma sociedade realmente sustentável é a que consegue viver com predadores”
Foi a sua primeira grande experiência a viver numa selva, rodeado de tigres. Chegou a sentir-se em perigo?
Sim, em ’94. Estávamos a sair de Haripura de noite. O pastor já se tinha adiantado na selva com o rebanho de búfalos e eu ia atrasado. Peguei no cajado, desci a correr, mas não o encontrei. Comecei a gritar, mas ninguém respondia. De repente vi à minha frente um vitelo de dois metros e meio. Parei e tive um dos maiores choques da minha vida. Vi que o vitelo tinha riscas. Era um tigre.
Tal como está nas minhas teses, e já e como diziam os cronistas ingleses na Índia, o tigre tem um efeito hipnótico no homem, tal como a cobra em frente a um passarinho. Perdi a força nos joelhos e fiquei sem voz. Quando recuperei, peguei num cajado e fiz o que me ensinaram (ouvir). Depois recuei e corri para casa. Depois durante três dias não disse a ninguém que tinha visto um tigre.
Estava em choque?
Sim, e falei com outras pessoas que também passaram por isto e tiveram essa reacção. Não se fala, é como se não existisse.
Qual é a importância deste trabalho?
Foi o primeiro trabalho pluridisciplinar sobre a relação homem-tigre e sobre a tribo gurjar. A minha tese era muito boa e entrei logo para o doutoramento e para a antropologia. Voltei à Índia em ’96 para aprofundar dados, mas tive de sair de lá a correr. Sabia demais sobre a caça furtiva.
De tigres?
Nos anos 90, no mercado negro internacional, o preço final de um tigre era 100 mil dólares. Hoje deve valer 200 mil dólares. Em ’94 ouvi um tiro na floresta e os gurjar são vegetarianos, não caçam. E em 2004 os tigres morreram todos. Agora quero voltar lá para saber o que realmente se passou.