A proposta de um novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) chegou esta terça-feira às mãos dos reitores das universidades portuguesas e é clara num aspeto: o Governo quer acabar com as fundações nas universidades. Em alternativa, a tutela fala da criação de um novo modelo de autonomia reforçada.

1. A alteração ao RJIES

“O RJIES é uma lei com profundas implicações na vida académica e científica”, lê-se no site da FRENPOF, que elaborou uma comparação da lei em vigor com a atual proposta do Governo – para ver aqui.

“As instituições de ensino superior universitário públicas de natureza fundacional convertem-se automaticamente em instituições com autonomia reforçada” (…) e “dispõem de nove meses para adequarem os seus estatutos ao novo regime”, lê-se no artigo 177.º da proposta de lei apresentada aos reitores. “Os contratos-programa plurianuais celebrados com as três instituições de ensino superior universitário públicas de natureza fundacional caducam (…)”.

Esta mudança, caso a proposta seja aprovada, terá várias implicações na gestão das instituições, principalmente a nível financeiro. “O regime, até agora privado, passa a ser público”, diz Marques dos Santos, reitor da Universidade do Porto (UP), que desde há quatro anos goza do regime fundacional e usa um sistema de contabilidade orientado pelas regras dos privados. “É uma complicação enorme, voltamos à pré-história”, afirma.

A Universidade perde ainda “a capacidade de endividamento autorizada pelo Conselho de Curadores” e o próprio Conselho. “É uma perda muito grande. [Os Curadores] têm sido muito importantes no governo da Universidade”, garante o reitor da UP. Para além disso, “o novo regime, embora permita a contratação através da ‘lei privada’ de recursos humanos, só pode ser em situações próprias, o que não acontecia no regime fundacional”, explica.

Como se não bastasse, este novo regime cria ainda um “imbróglio jurídico” que Marques dos Santos confessa não saber resolver. “No documento lê-se: ‘regime de autonomia reforçada sem alteração do regime jurídico geral’ – mas o que é que isto quer dizer? Ninguém sabe o que isto é, esse regime não existe na nossa jurisdição! Fundação existe, sabe-se o que é, quais são as características…”, sublinha Marques dos Santos.

“Tratam as universidades como instituições públicas e não pode ser”

“O regime que eles propõem, não serve” e “não tem sentido nenhum”, garante. “Tratam as universidades como instituições públicas e não pode ser. Nós estamos em competição internacional, as outras instituições estão meramente a fazer um serviço interno”. “Se o Governo quer boas universidades para desenvolver e prestigiar o país além fronteiras, tem de olhar para elas de modo diferente”, conclui.

“Se o Governo quer boas universidades para prestigiar o país, tem de olhar para elas de modo diferente”

Além disso, garante o reitor, este regime “estava a funcionar bem”. Tanto, que o Minho já o tinha pedido, Lisboa ia pedir e muitos mais se seguiriam. É reconhecidamente mais vantajoso, em termos de autonomia de gestão”, explica. “As três universidades nestas circunstâncias são as que apresentam maior eficiência e melhores índices de crescimento. A Universidade do Porto nunca esteve tão bem em termos de indicadores”, assegura.

Caso não queiram adoptar o novo regime, resta às universidades uma única opção: voltar ao “regime de autonomia comum”, como é agora denominado, de que gozam as restantes 11 universidades públicas. Para tomar essa decisão, dispõem de apenas três meses. Para Marques dos Santos, “essa questão nem se chega a pôr”. “Se a universidade o quiser fazer, o problema é da universidade, já que é o Conselho Geral a quem cabe a decisão”, mas “isso era ficar ainda pior e voltar ao básico”, sustenta.

Às restantes instituições, no referido “regime de autonomia comum”, é dada a oportunidade de adoptarem o modelo de regime de autonomia reforçada. Para isso, basta conseguirem mais de 50% em receitas próprias, ter mais de 75% do corpo docente doutorado e um estudo que comprove as vantagens do regime num prazo de cinco anos.

Crato falou em alterações “cirúrgicas” e autonomia “reforçada”

2. Outras questões

Regra de Equilíbrio Orçamental: “Obriga os organismos da Administração Pública a transitar no final de cada ano com depósitos bancários de valor superior ao do final do ano anterior”, explicou Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, ao Diário Económico. “Sem ela, as universidades teriam mais liberdade para gerir o orçamento sem o risco de perder as verbas que não gastassem até ao final do ano”.
Isenção da aplicação do código dos contratos públicos: Sempre que a instituição ultrapasse o montante previsto para projetos de investigação, tem de pedir autorização ao Ministério das Finanças para uma nova despesa e, até conseguir, os projectos ficam em ‘stand by’. Esta foi uma medida pós-Troika com “maior complexidade por causa de Bruxelas”, mas que “devia ser ponderada”, uma vez que Portugal aplicou o código mais rigidamente do que foi exigido, explica Marques dos Santos. “Portugal, como sempre, é mais papista do que o Papa”, diz.
A adesão “voluntária” ao sistema nacional de compras públicas: Só devem recorrer à agência nacional de compras caso seja “mais vantajoso”. Só assim as instituições passariam a conseguir “gerir de forma mais eficiente e económica” as despesas com serviços.

Esta é a primeira revisão à lei criada em 2007 por Mariano Gago, cuja novidade era precisamente o regime fundacional, que chega aos reitores com nove meses de atraso face ao estabelecido por Nuno Crato. Na altura, o ministro da Educação teria dito também que as alterações seriam “cirúrgicas” e que a autonomia das universidades sairia “reforçada”. Não foi o que aconteceu e Marques dos Santos não percebe porquê: “O que se devia fazer era reforçar a autonomia que o regime fundacional já permitia”, diz.

No entanto, esta abolição das fundações não é o único ponto que “encolhe a autonomia das universidades”. A questão da regra de equilíbrio orçamental, o pedido de isenção da aplicação do código dos contratos públicos e a adesão “voluntária” ao sistema nacional de compras públicas são outros dos temas que os reitores queriam ver contemplados na proposta (ver caixa 2).

O Conselho de Reitores (CRUP), também contactado pelo JPN, não quis fazer ainda qualquer comentário. A proposta vai ser analisada, o CRUP vai reunir e, entretanto, emitirá um parecer que deverá contemplar todas estas questões. A data limite é 31 de julho. Depois disso, o documento irá ser submetido a aprovação em Conselho de Ministros e enviado para o Parlamento. Marques dos Santos está confiante de que “haverá bom senso”.