Quanto tempo demorou a escrever “A Sentinela”?

Dois anos e meio.

Envolveu um grande trabalho de investigação?

Sim. Eu tinha que fazer pesquisa especialmente em duas áreas. A personagem principal, que é o narrador do livro, o Henrique Monroe, tem uma condição que se chama transtorno dissociativo de identidade e, para criar uma personagem credível e fiel aos sintomas, tive de fazer muita pesquisa e ler vários livros sobre casos reais. A segunda área de pesquisa envolvia o trabalho de um polícia. Eu não tinha a menor ideia de como era o trabalho de um polícia da Polícia Judiciária. Em Portugal, em 2012, reuni-me com dois polícias, um no Porto, o inspetor chefe daqui, e em Lisboa, com o chefe de secção de homicídios, para eu formar uma ideia de como eles iriam investigar um homicídio, como acontece no livro.

E a ideia que tinha do dia-a-dia de um polícia é muito diferente do que encontrou?

Sim, porque a minha ideia sobre o trabalho de um polícia vem da televisão, programas que vi em criança, como o Colombo, o Manix… E, hoje em dia, de programas como o CSI Las Vegas e dos filmes. Mas comecei a pensar que o trabalho destes polícias ficcionais teria muito pouco a ver com a realidade e isso foi confirmado mais tarde. Na televisão, por exemplo, eles trabalham um caso e conseguem resolver e investigar tudo num prazo de 24 a 48 horas, e isso não é assim na realidade. Um polícia pode ter muitos casos ao mesmo tempo e solucionar alguns pode demorar uma vida inteira. E depois precisava de saber os pormenores, por exemplo, quando os polícias chegam a uma casa onde alguém foi morto, se usam luvas, batas… Como é que eles fazem, quem é que é responsável por retirar as impressões digitais, por recolher evidências…

O livro

O livro passa-se num Portugal muito real, manchado pela corrupção e pela imoralidade. É o reflexo do que vê à sua volta?

Sim. Quando escrevo um romance ponho-me na pele do narrador. Escrevi este livro do ponto de vista de Henrique Monroe e ele trabalha para a polícia e vê coisas terríveis, e investiga casos muito violentos. E o caso que ele está a investigar, no livro, o homicídio de um abastado construtor civil, obriga Monroe a reconhecer, pela primeira vez, que estamos a enfrentar uma crise moral muito profunda. Em parte, porque as pessoas nunca, ou quase nunca, são responsabilizadas pelos seus crimes, sejam físicos, como violação, ou de “colarinho branco”. Monroe depara-se então com um grande dilema, porque ele não quer continuar com a polícia se isso implicar defender uma ordem corrupta.

O Henrique Monroe é um símbolo de que nem tudo está perdido? De que ainda há pessoas boas e morais?

Sim, sim! Para mim, este está muito longe de ser um romance deprimente e pessimista. O Monroe, a sua esposa, os seus filhos, Ernie, e certos colegas, como Luci, são pessoas maravilhosas. São personagens que vão lutar para conseguir um país melhor. Para mim, é um romance com muita esperança. Monroe é uma pessoa que nunca vai ser vencida. Ele vai continuar a lutar apesar das probabilidades estarem contra ele.

O Richard Zimler é conhecido pelos seus romances históricos. É muito diferente escrever sobre o passado e escrever sobre o presente? A nível da investigação, inclusive.

Por um lado sim, por outro lado não. Sim, porque quanto mais distante temporal e geograficamente, mais difícil é para mim conseguir ter uma visão clara. Ou seja… A Grécia antiga de há 2.500 anos seria bastante difícil de pesquisar. Difícil no sentido de conseguir formar uma imagem clara e ter todos os pormenores certos. Lisboa de 1960 não seria tão difícil, porque foi só há 50 ou 60 anos e Lisboa eu já conheço. Mas, tendo dito isto, não é tão diferente como as pessoas às vezes pensam, porque o objetivo é conseguir criar uma história credível e ter todos os pormenores certos. Por isso, o processo não é assim tão diferente.

Tem um gosto particular por dar voz a personagens vulneráveis?

Sim, sinto uma certa solidariedade e são personagens francamente mais interessantes. Para cativar a atenção do leitor tenho criar personagens complexas, com defeitos e qualidades, desejos e sonhos. De certa forma somos todos vulneráveis, mas explorar pessoas que estão dispostas a mostrar essa vulnerabilidade e fragilidade é muito interessante.

Outra característica comum é que, apesar de vulneráveis, são personagens muito resilientes.

Para mim, escrever um romance deprimente não faria sentido. Não é o meu objetivo deprimir as pessoas. Eu penso que é mais interessante falar de pessoas que têm grandes problemas, que enfrentam obstáculos, mas que lutam para vencer. Se calhar não vão vencer, mas pelo menos estão a lutar. Acho que isso é muito mais cativante, muito mais humano. Todos nós passamos por fases difíceis e todos nós lutamos para ultrapassar essas situações, isto faz parte da nossa realidade.

Assume-se como um porta-voz das minorias?

Não estou confortável com a palavra porta-voz, porque eu não quero representar ninguém. Eu diria que as pessoas mais frágeis e as minorias deviam ter o direito de falar por si próprias. Aliás, toda a gente numa sociedade devia poder falar, e ser ouvido. Mas eu sei que isto não é a realidade. Normalmente, as pessoas quanto mais diferentes ou quanto mais desvalorizadas [são], menos voz têm. Por isso, essas pessoas precisam de alguém como eu, que consiga contar a sua história – contar a história dos judeus perseguidos em Portugal no século XVI, contar a história dos hindus convertidos à força em Goa ou contar a história dos palestinianos desterrados. Eu adoro fazer isso, é um desafio muito grande. Tenho uma personalidade um bocado subversiva e perversa, porque dá-me prazer explorar temas que os outros preferem esquecer ou branquear.

Diria que, ao mesmo tempo que os seus livros servem para entreter quem os lê, têm sempre uma vertente educativa e preocupada com a denúncia de problemas que muitos preferem confortavelmente ignorar?

Sim, claro. O papel da literatura não é deixar o leitor confortável, não é satisfazer os preconceitos dos leitores. É desafiar o leitor, é fazê-lo evoluir. Eu acho que qualquer leitor inteligente e sensível aprecia isso. Quer ser desafiado, quer um combate com o escritor, quer medir forças. Quem não quer evoluir é uma pessoa muito pouco interessante e provavelmente não será um dos meus leitores.

A crise de valores em Portugal

A crise de valores que vivemos está num limite máximo, ou acha que ainda pode piorar?

Eu não sou vidente! Gostaria de pensar que vai melhorar. Eu sei que há muitas pessoas frustradas e zangadas com esta situação. A questão é se vamos conseguir mudar Portugal e criar um sistema de filtragem que funcione melhor. Do meu ponto de vista, o sistema de filtragem em Portugal está avariado. Em vez de rejeitar as pessoas mais egoístas, corruptas, agressivas e incompetentes, o aparelho político e económico promove essa gente. E devia ser ao contrário, evidentemente.

Os seus livros nunca são casuais, são sempre um veiculo de vivências pessoais ou realidades que lhe são próximas. Por exemplo, dar voz a Erik, a Angel, a Monroe exorcizam preocupações suas?

Conscientemente não. Um escritor faz muita coisa sem saber a sua intenção. Escrever um romance é só, em parte, sobre intencionalidade. Mas, provavelmente, os temas escolhem-me a mim, porque, de uma certa forma, eu quero explorá-los, quero saber mais sobre um certo assunto. Por exemplo, problemas de identidade, como Henrique Monroe tem neste livro, ou quero explorar como é que o passado influencia o nosso presente, como a infância de Monroe o influenciou. Como o que nós aprendemos muda a nossa perspetiva do passado, o que acontece também neste livro.

O transtorno dissociativo de identidade ou múltipla personalidade tem vindo a ser tratado de forma bastante sensacionalista e libertina. Tentou fugir a esse tratamento?

Absolutamente. Primeiro, porque não queria escrever um romance absurdo, ridículo e melodramático. Segundo, porque queria ser fiel à condição. É uma condição real, as pessoas sofrem com isso. Quem sou eu para distorcer ou aproveitar-me de uma doença mental para criar um romance sensacionalista? Não queria fazer isso de maneira alguma. Eu queria criar uma personagem que refletisse bem as dificuldades e também as vantagens de ter um alter-ego.

“Muitos dos meus romances custariam muito dinheiro a filmar”

Acha que há uma recusa em reconhecer doenças mentais como doenças reais, tão reais como cancro, por exemplo?

Eu penso que sim. Muita gente preferiria esquecer as doenças mentais ou minimizar os seus efeitos. E temos uma certa flexibilidade de linguagem de que eu não gosto, quer dizer, chamamos a essas pessoas “loucas” ou “malucas” muito facilmente, quando, na realidade, as doenças mentais são coisas muito sérias e que podem pôr fim a uma vida. As pessoas com esquizofrenia, por exemplo, sofrem imenso. É real, é uma condição real! Nunca brincaria com uma coisa dessas.

De toda a sua obra só teve um conto adaptado a uma curta-metragem. Era uma coisa que gostaria de ver acontecer, ter um romance adaptado ao cinema?

Adorava. Seria ótimo! O problema é que muitos dos meus romances custariam muito dinheiro a filmar. Por exemplo, já me disseram que o “Último Cabalista de Lisboa” custaria 40 milhões de euros a fazer. “Os Anagramas de Varsóvia” custaria 10 ou 15 milhões, para recriar Varsóvia dos anos 40. Este filme é mais viável. É atual e não custaria quase nada a filmar. Dei o livro a um produtor que conheço e estou à espera da reação dele. Eu já lancei o desafio. O único problema deste livro é que tem um protagonista muito complexo e invulgar, e pede um ator de muita qualidade. Teria que representar não só Henrique, mas também o seu alter-ego, sem parecer ridículo. Não poderia ser porque é muito velho, mas Anthony Hopkins, por exemplo, tem esse talento. Ou Daniel Day Lewis, talvez.