O cronista esteve na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos, numa entrevista conduzida por Maria João Costa. O escritor falou sobre a importância do leitor e a sobrevivência da palavra e antecipou o lançamento do seu próximo livro "Como Escrever?". O JPN acompanhou a sessão.

 

Maria João Costa entrevistou Miguel Esteves Cardoso. Foto: Carlota Nery/JPN

O escritor, cronista e crítico Miguel Esteves Cardoso encerrou este domingo (14) a 18.ª edição do LeV – Literatura em Viagem. Apesar de “dispensar apresentações”, como afirmou a jornalista Maria João Costa, que conduziu a entrevista, o escritor destacou-se no jornalismo, televisão, rádio, imprensa, música e pelas suas crónicas e contos. Obras como “A Causa das Coisas”, “A Vida Inteira” e “O Amor é Fodido”, são algumas das mais conhecidas do autor. Com um toque de comédia, sátira e ironia, Miguel Esteves Cardoso sempre analisou o que o rodeia com especial enfoque no povo português.

A Biblioteca Municipal Florbela Espanca encheu por completo para a entrevista de vida do cronista, conduzida por Maria João Costa. A importância do leitor, a sobrevivência da palavra, a política, a música em Manchester, o jornalismo foram alguns dos tópicos explorados. Tudo com um grande humor e leveza, porque como afirmou o próprio, “quanto mais pesado for o assunto, mais leve deves ser”.

Sonhava “desde pequenino viver da escrita” e conseguiu. Ajudou a fundar o jornal “O Independente” e criou a revista K. Atualmente, escreve crónicas diárias para o jornal “Público” e tem um programa de rádio na Antena 3 sobre a história da música. Sobre este último projeto, que partilha com a mulher, Maria João, o cronista revela um grande entusiasmo em relação aos 50 minutos de programa, no qual param para ouvir o outro sem se interromperem, o que para o escritor já não acontece na “vida real”.  “Já ninguém se ouve”, acrescentou.

O escritor relembrou o jornal “O Independente”, de que foi o primeiro diretor, como algo que “marcou totalmente o país” e a “forma de fazer jornalismo”. Para isso, diz, o jornalismo “tem de ser feito por pessoas muito novas”. “E têm que estar fartas. Têm de ter ódio”, para que se façam coisas “novas e frescas”, onde se coloque todo o “entusiasmo” que nasce da reivindicação, referiu.

Em tempos, participou ativamente na vida política, tendo sido um dos candidatos ao Parlamento Europeu em 1987 e em 1989.Era bem feito ter lá uma pessoa inteligente a ver o que eles fazem”, pensou. Chegou a ter 180 mil votos: “Realmente, foi muita gente que acreditou em mim”, afirmou durante a entrevista.

Sobre a dificuldade de escrever crónicas, Miguel Esteves Cardoso afirma que a árdua tarefa de escolher temas “tem de nascer da angústia” de todos os dias não saber o que escrever. “Tem que ser do zero” e “tem que ser escrita no próprio dia”, caso contrário, o leitor vai notar. “A minha prática diária tem que ser com a espuma dos dias”, acrescentou.

Para o cronista, há temas centrais que vivem na eternidade do tempo e, da mesma maneira que hoje são atuais, também o foram há mil anos e o vão ser no futuro. Coisas como o “ciúme”, o “amor”, a “saudade”, o “sentir-se velho”. Se em vez disso, algum dia Miguel Esteves Cardoso escrever sobre Trump, então, estará “muito mal”. “Tenho que escrever sobre o amor, a saudade e as árvores e a primavera”, contou durante a entrevista a Maria João Costa. 

O autor antecipou o lançamento do seu próximo livro, “Como Escrever?”. Este novo livro de Miguel Esteves Cardoso é uma tentativa de aproximação do leitor ao ato de escrita, sendo que o importante é “esvaziar a cabeça para ter ideias”. “Qualquer pessoa consegue escrever e este é o segredo que não querem que se saiba”, disse.

Apesar do que se possa achar do estado atual da literatura, “o livro continua a ser uma coisa muito apreciada”, e “nunca houve tanta gente a ler e a escrever”, segundo o escritor. A leitura tem de ser “um prazer, não funciona por obrigação”. É importante que as pessoas procurem e rejeitem porque, como lembra Miguel Esteves Cardoso, “há um livro para cada pessoa”, o que faz com que ninguém se tenha de prender a livros que são “uma seca”. 

Miguel Esteves Cardoso diz que está “com o vício da leitura”. Diz em tom de boa disposição que lê tudo, incluindo rótulos e anúncios. No entanto, hoje, faz algo que nos seus 20 anos não fazia. Diz ter sido algo que aprendeu com a idade: a capacidade de rejeitar aquilo que já não lhe interessa, seja em leituras ou amizades ou almoços em restaurantes novos que não lhe apetece experimentar.

Vê no futuro da leitura dos jornais, o mesmo que vê nos livros: “O hábito da leitura não se vai perder. Nunca, nunca, nunca.” “O leitor tem é que ser seduzido”, “uma pessoa tem que começar a ler e mergulhar imediatamente na primeira frase”, afirmou. Miguel Esteves Cardoso considera que a leitura tem de o fazer sentir “elétrico”. “Quero sentir que estou a roubar alguma coisa. Que estou ali e não devia, que não mereço aquilo”, acrescentou.

O escritor equipara a música à leitura, já que ambas devem caminhar no sentido da “descoberta”. “Se ouvir o mesmo álbum, não descubro nada”, o mesmo acontece com os clássicos da literatura. E há que ter a “coragem” de dizer “não gostei nada de Proust”, porque, às vezes, “coisas mais divertidas existem”, concluiu. Miguel Esteves Cardoso acredita que não se deve ficar preso a determinadas normas literárias ou musicais. 

Nem tampouco presos à “sacralização” do escritor, porque isso “afasta muito” o leitor do que foi escrito. Por exemplo, com Beckett, que é o escritor preferido de Miguel Esteves Cardoso. O cronista diz não compreender por que razão as pessoas haveriam de o ler como se estivessem na “missa”, quando na verdade, são livros muito “cómicos”. “O perigo do Beckett é que ele goza com tudo. Com a doença, com a velhice, com a comichão, com tudo. E é de rir”, referiu.

Enquanto lamenta a ascensão de movimentos extremistas, celebra a liberdade conquistada após o 25 de Abril. Miguel Esteves Cardoso considera que, durante uma ditadura, Portugal foi “mesmo estrangulado” e inundado de pobreza e falta de identidade. Ainda bem que os jovens de hoje “nasceram sem medo”, comentou.

Com uma visão franca e divertida, enfatizou a necessidade de renovação no jornalismo e na literatura. Pelo meio, destacou a resistência das palavras, mesmo diante dos desafios e adversidades. Porque, como ele mesmo disse, “as palavras são um milagre”, e é maravilhoso que resistam a “todos os maltratos”. “Há de o tempo passar e vamos todos morrer e as palavras aguentam-se”, concluiu.

Editado por Inês Pinto Pereira