São 11h e no Bairro da Biquinha, no Porto, o barulho soa a obras. As mulheres entretêm-se em casa e os homens conversam na rua. As crianças brincam umas com as outras. O Bairro da Biquinha tem muitos habitantes e muitos deles são ciganos. As casas têm as janelas carregadas de roupa a secar e os ciganos que nelas espreitam parecem reservados.

Ana Monteiro é uma das que espreita à janela e aceita falar com o JPN, que decidiu ir conhecer a comunidade na semana em que se comemora o Dia Internacional do Cigano. Ana tem 15 anos e casou-se há pouco. “Foi uma opção minha. Gostava dele. É normal as pessoas ciganas casarem-se cedo”, conta. “Agora vivo na casa dos meus sogros, mas viemos passar uns dias com os meus pais”, continua.

Atrás de Ana veio a mãe, com Lisandro ao colo, um dos quatro filhos que teve. Maria do Céu tem 44 anos e apoiou a filha a casar-se. “Foi ela que escolheu de acordo com a vontade dela”. “Dantes, eram os pais que escolhiam os maridos, agora já não. Agora veio uma lei nova”, Maria do Céu.

A filha, Ana, deixou de estudar porque o marido não a deixa ir para a escola. Mas também não andava lá com muita vontade. Apesar de já estar casada, ainda não quer ter filhos e é a mãe que a vai alimentando, porque eles “não fazem nada”. “Que remédio! Dar-lhes ao menos um prato de comer. Não a vou mandar embora de casa”, lamenta.

“Venham comigo”

As crianças juntam-se à conversa e um dos rapazes leva-nos a sua casa. “É um luxo ser cigano. Eu tenho orgulho de ser cigana”, diz Maria da Conceição Salazar, a mãe, apanhada de surpresa.

Aos 48 anos, anda pelas portas a vender. “Não dá muito, mas vai-se andando”. O objetivo é sustentar os quatro filhos e permitir-lhes que estudem. Afinal, não quer que eles sejam como ela, que não sabe ler nem escrever. “Sou otária”, brinca. “É bom as crianças saberem ler e escrever, para dar valor àquilo que andam a fazer na escola”. Portugal é dos países onde os ciganos mais vão à escola, um cenário que não condiz com a realidade europeia.

O luto

Sempre que uma pessoa de etnia cigana morre, a comunidade adapta a sua rotina a algumas regras. “Quando alguém morre, não se ouve música nem se vê televisão”. Mas não é só. “Durante uns tempos não se pode comer carne. É só peixe. Nem se pode andar a discutir, falar mal, nem brincar nem rir. É uma coisa que já vem de trás”, explica José Carlos Monteiro, sobre a atitude de respeito que mostram quando alguém veste preto.

Susana Salazar é nora de Maria da Conceição há oito anos. Casou-se com 15 e vive do rendimento mínimo. Como a sogra e o resto da família, tem orgulho da etnia em que se insere. Segue a conversa da sogra com atenção e diz que a raça branca “tem de dar oportunidade aos ciganos para que eles possam fazer coisas”.

No rés-do-chão do prédio, onde as obras preparam uma calçada nova, está José Carlos Monteiro. Uns apontam-lhe o dedo como “o da lei” e ele ri-se e retribui o gesto. “É bom ser cigano?”, perguntamos. “Por um lado é, por outro não”, responde.

“A lei dos ciganos”

As pessoas de etnia cigana seguem “regras” que são passadas de geração em geração e nem elas sabem quem as definiu. “Temos que respeitar os mais velhos para os mais velhos respeitarem os mais novos”, diz Maria do Céu. “Já vem de trás, dos ciganos mais velhos”, conta José Carlos. “Mas vai mudando. Antes, as ciganas não podiam casar com alguém sem ser cigano, agora já podem. Nós respeitamo-nos uns aos outros”, continua.

Mas há coisas que ainda parecem absurdas aos olhos da sociedade e de José Carlos. “Eu andei na escola e a minha mulher na mesma. Não a proíbo nem a ela nem às minhas filhas, mas há muitos ciganos que, quando as filhas chegam aos 16 anos, as tiram da escola, porque têm medo que elas fujam”, explica.

Mas o que preocupa os ciganos? “A virgindade das mulheres”, diz José Carlos. “Se não forem virgens quando se casam, há problemas. Isso motiva tiros e tudo”, refere. “Antes de casarem, falamos sempre com as nossas filhas. Perguntamos se se têm portado bem ou dormido com alguém. A minha filha já tem 13 anos e vou-lhe dizendo como é a nossa lei”.

“Estou com a minha mulher há 14 anos. Ela anda como quiser, eu confio nela e ela em mim”, continua. “Ela tem carta de condução e se quiser sair sozinha, sai”. Mas as relações entre homens e mulheres não são a única preocupação de José Carlos. “Acho mau quando se mata um cigano e tem que se vingar noutro. Se eu matar alguém, a família dessa pessoa tem de matar outra da minha família, nem que seja quem não matou. É a lei”, partilha, com algum desânimo.

A lei cigana não obriga uma ligação muito forte ao culto. Mas ela existe. “Nós vamos ao culto, às vezes, temos Igrejas. O culto é só de ciganos e acreditamos em Deus”, diz Susana Salazar. Maria do Céu conta as preces por que roga. “Pedimos a Deus à nossa maneira. Pedimos a Deus para ajudar a nossa família, que nos dê sossego, alegria e o pãozinho de cada dia”.

Se antigamente as saias compridas faziam parte das indumentárias das mulheres ciganas, hoje as coisas mudaram. “Eu fui habituada a uma maneira, a minha filha já foi a outra. Eu usava saias compridas, a minha já usa mais curtas. Agora já vestem saias, mini-saias, caviada. Eu apoio”, diz Maria do Céu.

A convivência entre moradores e raças

“Aqui os ciganos convivem com as pessoas da sua raça muito bem. E os meus filhos têm amigos na escola, como nós temos amigos de raça branca”, diz Maria da Conceição. “Às vezes, a tua raça ainda é pior que a nossa”, diz-nos.

“As pessoas têm medo de entrar cá no bairro, mas as pessoas que moram aqui não fazem mal a ninguém. Não há racistas aqui”, refere Ana Monteiro. Mas, às vezes, as discussões entre ciganos e pessoas de raça branca surgem. “Por causa dos meninos, do barulho e da confusão. Falamos muito alto, gritamos muito”, acrescenta. “Ou também por não deixarem as mulheres à vontade”, refere José Carlos. Maria da Conceição convive bem com toda a gente, mas deixa o recado com voz firme: “Quem me tratar mal, eu não me fico. Não me fico a ninguém”.

As feiras para ajudar a pagar as contas

“A escola, a nós, não nos interessa. O meu filho tem o 12.º e está em casa. Tantos estudos para nada”, diz Maria da Conceição sobre a situação do filho. As famílias que o JPN contactou são beneficiárias do subsídios do Estado.

Mas as feiras que fazem em diversos pontos do país também vão dando algum dinheiro para cobrir as despesas das famílias, por norma, numerosas. Maria do Céu faz duas ou três por semana. “As feiras estão muito mal. Costumo ir para Custóias, Senhora da Hora, Famalicão e Espinho. Não dá nada. Já deu muito”, expõe.

“Há de tudo”, partilha Maria do Céu. Há sete anos trocou os contentores pelo Bairro da Biquinha. “Estamos melhor aqui. Temos melhores condições. Temos os nossos quartos, as nossas casas de banho. Lá, quando chovia era uma miséria”.

Susana está desempregada. Só estudou até ao sexto ano. “Para quê ter os estudos todos?”, questiona, respondendo logo de seguida: “Não há emprego para os ciganos. Se houvesse uma oportunidade para irmos trabalhar valia a pena, assim não. Eu tenho ido a entrevistas e tudo e nunca fico. Porquê? Por ser cigana. Revolta-me um bocado”. Mas a vontade é de trabalhar. “Claro. Eu deixava de receber o rendimento mínimo e ia logo trabalhar, nem que fosse para limpar escadas”.

José Carlos também já passou pela experiência. “Já fui a muitas entrevistas de trabalho e nunca me quiseram por ser cigano”.

O casamento cigano

Susana Salazar casou-se com 15 anos. “Vai fazer oito anos que estou casada. Os ciganos casam-se cedo. Eu sou feliz”, conta. Mas, em muitos dos casos, este dia especial marca o início de uma vida a dois onde a mulher é sujeita à vontade do marido. “O casamento mudou tudo. Temos de cuidar da casa, dos filhos, do marido”, continua.

Ainda assim, um casamento cigano é “à grande”. Susana teve direito a uma festa de dois dias, onde houve espaço para “dançar, música, comida e bebida. Dança-se e canta-se o dia e noite toda”, diz a sogra. “São grandes. São dois dias de festa, tem muita música para dançarmos. É uma alegria”, conta Susana, que também teve sorte com o marido, que a deixa fazer o que quer. Já Ana teve menos sorte. “Os pais não tinham dinheiro para fazer. Foi uma festa pequenina”, diz a mãe, Maria do Céu.

E a vida muda logo. “Quem manda nela agora é o marido”, revela Maria do Céu, explicando Ana o que se alterou. “Não podemos sair, não podemos andar como andávamos antes, não podemos falar com certas pessoas”. Mas nem todos os homens são assim para as esposas. “Na minha casa mando eu. Quando não está ele mando eu, quando não estou eu, manda ele”, diz Maria da Conceição.