Em entrevista ao JPN a partir do Canadá, o historiador britânico Ian Garner explica as conclusões que verteu para o livro "Geração Z: Entre a Juventude Fascista da Rússia", que chegou às bancas portuguesas a 26 de setembro, com a chancela da Casa das Letras. Além do que chama de "viragem patriótica" da juventude russa, Garner aborda também a guerra da Ucrânia, onde, diz, "a Rússia não definiu qual é o plano, porque o plano é a guerra."

As danças populares no TikTok, os memes no VK e os influencers de estilo ocidental mascaram a nostalgia soviética e a cultura de guerra financiada pelo Estado, transmitindo a mensagem clara de que é preciso promover a guerra, seja interna ou externa, para alcançar a paz.

No livro “Geração Z: Entre a Juventude Fascista da Rússia”, o historiador britânico Ian Garner explica-nos como é que os jovens russos se deixam seduzir pela retórica nacionalista incentivada pelo Kremlin.

JPN – A “Geração Z” é uma obra que reflete sobre a nova geração russa, que o Ian identifica como fortemente inclinada para o fascismo, alimentada pela propaganda do Kremlin acerca de uma nação saudosista das vitórias da Segunda Guerra Mundial. Em que se baseou para chegar a esta conclusão?

Ian Garner – Utilizei abordagens de História, de Ciências Políticas, da Antropologia. Num certo sentido, podemos pensar que este é um estudo antropológico. O que fiz foi mergulhar no mundo online dos jovens russos.

Como acontece com os jovens canadianos, [país] onde estou, ou com os jovens portugueses, a maior parte das nossas vidas sociais, a maior parte da nossa cultura é consumida online, através das redes sociais. Essa é a forma como interagimos uns com os outros e com o mundo, em particular desde 2020, durante a pandemia. Isso acelerou o processo. Além de tentar perceber a pesquisa histórica e político-científica, ver as sondagens de opinião, documentos históricos, as políticas do governo, ou as mudanças no sistema educativo introduzidas pelo Estado, o que queria mesmo era aprender sobre as pessoas comuns, o que elas pensam sobre o que está a acontecer, a forma como constroem os seus mundos, como os discutem.

Passei muito tempo em diferentes fóruns online na Rússia e cheguei a pessoas envolvidas em ambos os lados do que é ainda um debate na Rússia: um debate que não é falado a alta voz acerca do que significa ser russo. Falei com pessoas envolvidas nas mais profundas, negras e terríveis formas de fascismo, e há jovens que acreditam mesmo que não só é ok matar ucranianos na guerra da Ucrânia, como é também necessário. Mas também falei com muitas pessoas que acham que a retórica fascista que está a sair do centro político russo deixou-as completamente excluídas da sociedade, como jovens russos queer, minorias étnicas, pessoas de cor. Pessoas que não podem ser o tipo de pessoas que o Estado lhes diz que devem ser, porque o fascismo tem sempre uma visão clara de que um bom cidadão é alguém racialmente, religiosamente e etnicamente puro.

Há jovens que acreditam mesmo que não só é ok matar ucranianos na guerra da Ucrânia, como é também necessário.

JPN – Qual a importância deste tema para percebermos o futuro da Rússia?

Ian Garner – Eu tinha em mente escrever este livro talvez um ano da guerra começar. Mas quando a guerra rebentou, ou a invasão em massa começou, em fevereiro do ano passado, decidi que me ia dedicar a este livro. Escrevi muito rápido, trabalhei muito e terminei o projeto praticamente em setembro de 2022.

Serve tanto como resposta a eventos atuais, como descreve um amplo período histórico. E faço uma previsão no livro: acho que nós, no Ocidente, somos ingénuos ao assumir que os jovens russos vão inevitavelmente tornar-se mais liberais. Esta é uma grande esperança dos políticos do Ocidente: a geração mais velha – a geração de Putin – vai morrer e desaparecer e a geração mais jovem prevalecerá, uma geração mais exposta a diferentes culturas na Internet, e de alguma forma, em dez anos toda a gente estará sentada à volta de uma fogueira, a dar as mãos e a cantar todos juntos. Não tenho a certeza de que isso vá acontecer.

Suspeito que, à medida que as autoridades russas percebam melhor como manipular teorias da conspiração na Internet, acabem por reforçar um maior movimento em direção ao neofascismo emergente na Rússia.

E podemos ver isso nas nossas próprias culturas. Podemos ver isso no Ocidente. Os EUA estão a oito quilómetros de onde eu estou agora, e podemos ver isso nos EUA. Podemos ver uma grande parte de jovens americanos a serem atraídos por teorias da conspiração muitos estranhas e extremistas na Internet. Quando isso é financiado pelo Estado, como na Rússia, com milhares de milhões de dólares de fundos, com todo o mecanismo do sistema educativo, com televisão estatal, com todas as ferramentas online, isso cria algo que nunca tivemos. E, portanto, acho – embora possa estar errado e ficarei muito feliz por estar errado – que devemos assumir que isto vai acontecer, prepararmo-nos para que isto aconteça, e se estivermos enganados, ótimo, boas notícias. Mas simplesmente assumir que vai correr bem, isso é um erro.

Esta é a grande esperança dos políticos do Ocidente: a geração mais velha – a geração de Putin – vai morrer e desaparecer e a geração mais jovem prevalecerá. Não tenho a certeza de que isso vá acontecer.

JPN – Estudou no St. Petersburg State Conservatory e viveu na Rússia. Como descreve a sua experiência no país?

Ian Garner – Eu vivi na Rússia a meio dos anos 2000. Era um homem jovem na altura, diria que politicamente ingénuo. Um rapaz comum de 21 anos com uma educação decente, mas não muito sintonizado com a forma como funciona um sistema autoritário, como funciona a propaganda, como os media são importantes. Vivi uma boa experiência em São Petersburgo.

Livro foi editado pela Casa das Letras, em Portugal. Chegou às bancas a 26 de setembro.

JPN – De que forma esta foi importante para a sua compreensão de como era a Rússia na década de 2000 e no que se tornou depois de 2010?

Ian Garner – A minha experiência foi típica para muitos jovens na Rússia naquela altura. São Petersburgo parecia estar a rebentar com oportunidades, esperança, vida e cultura. A cultura russa estava a reencontrar o seu caminho depois dos desastres dos anos 90, quando ninguém sabia bem o que significava ser um membro da comunidade. Havia novas bandas a aparecer, novos movimentos musicais e artistas do Ocidente faziam tours nas grandes cidades russas.

Os jovens russos tiveram dinheiro pela primeira vez para irem de férias ou estudar para o estrangeiro, para comprar computadores, telemóveis. Os ornamentos de uma boa e confortável vida consumista ocidental. Se alguém fosse homossexual, por exemplo, podia encontrar oportunidades para viver como uma pessoa homossexual em São Petersburgo nos anos 2000. Não que a Rússia fosse um sítio excelente para se estar, mas ainda não existia uma atmosfera furiosamente homofóbica. Era possível estar confortável na rua a viver o tipo de vida que se queria. Mas, ao mesmo tempo, eu e muitas outras pessoas, não olhávamos ao que o Estado estava a fazer realmente.

É daí que chegam as histórias sobre a apatia dos millenial russos. A apatia é baseada no contrato social que o governo oferece: “aqui estão as coisas boas, férias no estrangeiro, vidas confortáveis. Em troca, não fazer perguntas acerca do que o Kremlin está a fazer. Não olhar para o parlamento, não questionar a corrupção, apenas ficar com as coisas boas e permanecer calados.” E foi isso que as pessoas fizeram. Mas tudo isso mudou depois de 2010.

JPN – Dividindo a história contemporânea russa em três períodos, e identificando-os como a era pré-colapso da URSS, a era Ieltsin, e a governação de Putin, quais são as principais diferenças na educação dos russos nesses três momentos?

Ia Garner – Alexei Yurchak explica que, durante os anos 80, havia várias pessoas que, de alguma forma, sabiam que a União Soviética estava a colapsar, já não acreditavam realmente na ideologia comunista, e estavam a absorver tudo o que pudessem da cultura ocidental. Gravavam cassetes de vídeo, importavam calças do ocidente, ouviam bandas rock, iam a concertos e exposições. E, ao mesmo tempo, iam ao mercado local, ao clube de juventude soviético, faziam parte dos rituais da sociedade soviética e ninguém realmente acreditava que a União Soviética ia acabar. E isso criou um período muito traumático para os russos, quando a União Soviética colapsou relativamente rápido nos anos 90.

O PIB per capita do país colapsou, o desemprego e o alcoolismo subiram, a esperança média de vida desceu e, embaraço dos embaraços, o país atravessou uma crise financeira em 1998. Os russos ficaram genuinamente pobres. Se olharmos para o sistema educativo nos anos 90, este reflete o que estava a acontecer no país. Caos total. Os professores começaram a abandonar a profissão, muitas crianças ficaram sem-abrigo, não havia livros, não havia edifícios para estudar e os que havia estavam geralmente a ruir. Era uma altura horrível para se ser estudante, e faltava o poder ou a vontade de ou puxar o país em direção a um sistema educativo mais liberal, ou empurrá-lo novamente para um sistema educativo nacionalista. Havia elementos no governo russo que puxavam em ambas as direções, mas não existia nenhum movimento claro. A educação, tal como tudo, estava a colapsar.

Depois, nos anos 2000, aparece Putin e promete um grande novo mundo para os russos, e escolhe o caminho nacionalista. Imediata e firmemente. Então, começamos a ver um sistema de educação muito mais nacionalista, baseado no amor à nação, no amor à Igreja Ortodoxa, no respeito pela História, em particular respeito pela História Militar, e acima de tudo, na Segunda Guerra Mundial. E isso acelerou em 2012.

JPN – Quais foram as mudanças mais significativas na forma de pensar dos jovens russos nos últimos 20 anos?

Ian Garner – Diria que muitos millenials russos não têm um sentido muito claro de identidade nacional. Claro que encontramos nacionalistas extremos, como encontramos pessoas muito liberais apesar do que acontece hoje e que se opõem firmemente ao Estado – algumas até poderão ter apoiado Alexei Navalny. 

Mas quando olhamos para a geração mais jovem, aqueles que atingiram a maioridade após 2012, vimos que acontece uma viragem subtil, que às vezes é chamada de viragem patriótica. Quando Putin se assustou com os protestos internos, depois dos protestos de Navalny e outros relacionados, assustou-se com a primavera árabe em particular e pensou que a revolução chegaria também a Moscovo. Havia paranoia genuína no Kremlin, naquela altura. Então, acontece esta reviravolta súbita e, para acrescentar, aconteceu a crise financeira global e o fluxo de bens de consumo de repente parou, porque a economia russa é tão dependente de petróleo e recursos naturais que quando o preço do petróleo sobe ou desce, a Rússia sofre.

Assim, ao contrário da estranha coexistência entre o reforço do sistema autoritário e o dia a dia bastante aberto como aconteceu nos anos 2000, do qual os millenials beneficiaram, agora vemos o governo a fechar as portas a formas alternativas à identidade russa. E a mensagem, bastante clara através da cultura popular, do sistema educativo e na televisão do Estado, é a de que se alguém quer ser um bom cidadão russo, então, deve ser russo cristão ortodoxo. Deve ser heterossexual. Tem de concordar que a Rússia está rodeada de inimigos e de que é preciso promover a guerra para alcançar a salvação. E é preciso ser proativo, é preciso procurar os inimigos que estão a tentar derrubar a Rússia por dentro. Não há outra forma de estar.

Foi assim que se viu a primeira guerra desta era ser começada na Crimeia, contra a Ucrânia, em 2014. Ou se é um bom russo, ou não. E a última coisa que se quer ser é ucraniano e fascista. Porque a Rússia é antifascista, logo quem se opõe à Rússia tem de ser, por definição, fascista. Portanto pode ser um judeu fascista ou um homossexual fascista. Nada disto faz sentido, exceto quando se considera isto em termos de “o meu grupo vs o outro grupo”. 

A mensagem, bastante clara através da cultura popular, do sistema educativo e na televisão do Estado, é a de que se alguém quer ser um bom cidadão russo, então, deve ser russo cristão ortodoxo. Deve ser heterossexual. Tem de concordar que a Rússia está rodeada de inimigos e de que é preciso promover a guerra para alcançar a salvação.

Vladimir Putin chegou a primeiro-ministro em 1999 e nunca mais abandonou o poder. Foi presidente da Rússia entre 2000 e 2008, primeiro-ministro de 2008 a 2012, e de novo presidente da Rússia de 2012 até ao corrente. Foto: Kremlin.ru CC BY 4.0

JPN – Como é que os jovens se deixaram “seduzir” pela narrativa do presidente russo?

O governo tem vindo a seguir todas as formas para alcançar os jovens nos últimos 20 anos e Putin, apesar de parecer um homem velho, caminhar como um homem velho e falar como um homem velho, sempre foi o rosto da juventude, o rosto da mudança na Rússia.

Quando se compara Putin, quando chegou ao poder, com Boris Yeltsin, Yeltsin era um homem muito velho, alcoólico e um embaraço. Putin refletia uma vida limpa, exercício, idas ao ginásio. Fazia judo, era um homem forte. Tanto fisicamente, como em termos de políticas. Tentaram explorar isto por muito, muito tempo. Nos anos 2000, houve várias tentativas de criar grupos juvenis que não fossem aborrecidos como os da era soviética. Era suposto serem divertidos, bem patrocinados, havia t-shirts, música pop, memes, uma cultura um pouco trash.

Tudo isto puxa este sistema autoritário para o século XXI. Primeiro, o governo destrói e fragmenta, diz que “se não estás connosco, estás contra nós. Vamos quebrar-te, cabe-te a ti lutar internamente para tentar ser como nós. Se não estás connosco, estás em perigo, vives em algum lugar onde és um inimigo da tua comunidade, um inimigo do teu povo”. Isto cria uma fragmentação psicológica em que as pessoas não sabem como construir a sua identidade.

Vemos na História, quando olhamos para estudos da era soviética nos anos 30, por exemplo, em que o Estado dizia “vocês são más pessoas, são anti-estalinistas, espiões”, e seria de pensar que as pessoas odiariam o Estado. Mas quando as pessoas estão fragmentadas, reformam a sua identidade. Procuram uma forma de pertencer a um grupo, de pertencer a uma sociedade harmoniosa e estável. Então, quando veem estes adoráveis grupos juvenis, com marcas bonitas, vídeos no Instagram e no TikTok, crianças a dançar e a brincar juntas e felizes, correm em direção a esse mundo, onde as coisas parecem seguras, onde podem ser protegidas e fazer parte de um grupo.

Putin, apesar de parecer um homem velho, caminhar como um homem velho e falar como um homem velho, ele sempre foi o rosto da juventude, o rosto da mudança na Rússia.

JPN – Quais entende serem as principais características sociais dos jovens russos alimentados pela propaganda do estado?

Ian Garner – Penso que discutimos alguns destes marcos identitários, sobre como ser um bom russo, retidão e agressão em guerra. Mas o que eu acho realmente interessante é que, ao mesmo tempo, estes jovens estão a viver o que, à superfície, parecem vidas semelhantes às nossas.

Quando se observam vídeos do TikTok, produzidos essencialmente por jovens russos fascistas membros de grupos paramilitares, esteticamente são muito semelhantes aos vídeos que qualquer adolescente ocidental produziria. Eles fazem as mesmas danças, os mesmos memes. Usam os mesmos clips de música hip-hop americana no fundo. E, no entanto, o conteúdo é bastante diferente. Há poucas semanas vi um vídeo muito interessante de uma adolescente a fazer uma dança no TikTok, no uniforme do Exército da Juventude e, enquanto dança, aponta para a esquerda ou para a direita para escolher e mostrar à sua audiência qual a sua opção. E as opções eram América ou Rússia, ela escolhia a Rússia. Ucrânia ou Rússia? Ela escolhia a Rússia. A foto de um soldado ou a foto de uma pessoa genérica? Ela escolhia o soldado. Portanto é a mesma dança, é divertida, apelativa. E, no entanto, o que é que eu escolho? Escolho o país, escolho o Estado, escolho o exército, escolho a guerra.

Quando se observam vídeos do TikTok, produzidos essencialmente por jovens russos fascistas membros de grupos paramilitares, esteticamente são muito semelhantes aos vídeos que qualquer adolescente ocidental produziria. Eles fazem as mesmas danças, os mesmos memes. Usam os mesmos clips de música hip-hop americana no fundo.

JPN – Durante a administração de Trump na Casa Branca, existiu alguma proximidade entre os líderes dos EUA e a Rússia, e na Europa vemos a ascensão de vários partidos da Identidade e Democracia com alegadas ligações ao partido Rússia Unida. A afirmação do discurso fascista no Ocidente contribuiu para a auto validação do discurso fascista dos jovens russos de movimentos de extrema-direita?

Ian Garner – Absolutamente. A resposta é sim. E penso que, quando se trata de propaganda, movimentos políticos e de compreender a sua identidade, cada vez mais precisamos de olhar para além das fronteiras nacionais e compreender como a Internet cria movimentos transnacionais. Sempre que uma figura importante da extrema-direita americana, ou um influencer ou blogger americano publica algo positivo sobre a Rússia, ou algo negativo sobre a Ucrânia, esse material é frequentemente cortado e partilhado, e torna-se viral nas redes sociais russas. E isso prova aos russos, supostamente, que eles estão certos, não estão sozinhos. Que o mundo está realmente contra eles, e há pessoas na América que veem a verdade, que entendem que os russos estão realmente corretos, que a maior parte da América os odeia, que as suas teorias da conspiração e as suas narrativas sobre o mundo são reais.

Se recuássemos cerca de 40 anos no tempo, até à Guerra Fria, este seria o tipo de propaganda com que o Estado soviético teria sonhado. Qualquer estado totalitário do século XX teria sonhado. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve alguma propaganda ocidental, alguns ocidentais que foram à Alemanha nazi e falaram com os alemães, mas o processo foi lento. Agora, alguém pode publicar material hoje e, mais cedo ou mais tarde, poderá ser visto por milhões de russos. E isso é uma ferramenta transnacional fenomenal, poderosa, e algo que só será mais poderoso nos próximos anos. À medida que coisas como a inteligência artificial e o deep fake crescem, podemos criar mundos inteiramente falsos, mundos que parecem reais, e as pessoas podem viver em mundos extremamente falsos.

Alexey Navalny durante uma manifestação em 2012 em São Petersburgo. Atualmente, o opositor de Putin está preso a cumprir uma sentença de nove anos. Em agosto, conheceu uma nova sentença: mais 19 anos de prisão. Foto: Анна Плотникова // Anna Plotnikova/Wikimedia Commons

JPN – O povo russo tem sido historicamente desgastado por governações danosas e imperialistas, desde os tempos czaristas, passando pela URSS e terminando na dupla Putin-Medvedev. Com Alexei Navalny preso, e uma oposição que, nas suas palavras, se tem mostrado tão abatida como nunca, vê alguma esperança política democrática no futuro próximo para pessoas como Anna Veduta, Alla Chinkinda e Ilya Fedotov-Fedorov?

Ian Garner – Não sou alguém que acredita que não existem russos liberais nem russos democratas que levem a sério a democracia na Rússia. O problema que a maioria dos russos tem é que o Estado tem uma maquinaria muito grande e complicada para quebrar as pessoas e oferecer-lhes segurança. Pequenas bolhas que pertencem em harmonia. A oposição democrática não tem isso, e na verdade não se pode realmente falar sobre uma oposição democrática na Rússia.

É possível falar sobre democratas isolados. Nenhum deles tem uma narrativa que atraia as pessoas e lhes ofereça a sensação de segurança e proteção. Em parte, porque o Estado argumentou de forma tão eficaz que a própria democracia é anti-russa e, como sabemos, qualquer coisa anti-russa é má, satânica e fascista. É muito difícil para estas pessoas construir um movimento significativo e produzir qualquer coisa que agrade a um grande número de russos que são, na melhor das hipóteses, desconfiados da democracia e, na pior das hipóteses, hostis à democracia.

No entanto, o que admiro muito em pessoas como Alla Chinkinda e Anna Veduta é o seu senso de otimismo. Elas não vão parar. Algumas pessoas com quem conversei estão a assumir riscos fenomenais para fazer a coisa certa. Olhemos para Navalny: podemos não concordar com tudo sobre a política de Navalny, mas ele arriscou a própria vida. Vejamos Vladimir Kara-Murza: ele sabe exatamente o que está a fazer, vai ficar preso por muito tempo, e está a sofrer terrivelmente na prisão. Isso não significa que temos de tornar heróis ou homenagear todos os russos, ou mesmo todos os democratas russos. Existem sim pontos de partida, mas temos de encontrar formas de apoiar esses pontos de partida e fornecer-lhes narrativas fortes que atraiam os russos. Mas não será fácil.

O problema que a maioria dos russos tem é que o Estado tem uma maquinaria muito grande e complicada para quebrar as pessoas e oferecer-lhes segurança.

JPN – Existem organizações na Rússia que ajudem ou protejam estas pessoas?

Ian Garner – Eu diria que hoje existem muito poucas organizações significativas.

JPN – O primeiro mandato de Putin ficou marcado pelo conflito no Cáucaso. Na última década, o regime atacou a Geórgia e anexou a Crimeia. Que paralelismos podemos traçar entre o conflito na Ucrânia e outros conflitos alimentados pelo Kremlin?

Ian Garner – O paralelo mais importante para o qual chamo a atenção no livro é a ideia de que a Rússia tem de travar a guerra para fazer a paz. Esta tem sido constantemente a mensagem de Putin desde o primeiro dia da sua presidência. De que algo está errado na Rússia, mas a culpa não é da Rússia. Mesmo se atacarmos alguém, se formos violentos contra alguém, seja uma guerra contra os nossos vizinhos, ou uma guerra contra as pessoas internamente. A guerra contra a Chechénia veio acompanhada de muitas sanções estatais silenciosas e de racismo violento na década de 2000.

Depois, vimos o que foi descrito como uma guerra contra a comunidade queer na década de 2010. A Rússia não adotou apenas políticas homofóbicas, o Estado disse: “estamos a ser invadidos por pessoas queer”. Esta é a linguagem da guerra. Consistentemente, a ressurreição da ideia de que temos de travar a guerra. E o problema que temos aqui é que sabemos que iniciar a guerra não iria resolver problemas económicos e culturais profundos da Rússia e nem resolver a fragmentação da sociedade, em parte porque o Estado continua deliberadamente a fragmentar ainda mais a sociedade. Portanto, uma vez terminada a guerra de hoje, a menos que alguma coisa mude enormemente na Rússia, terá de haver outra guerra. Ou é uma guerra interna ou é uma guerra externa, quem sabe, mas o jogo da culpa continuará a ser jogado.

A Rússia não definiu qual é o plano, porque o plano é a guerra.

JPN – Num cenário em que a operação especial de conquistar Kiev em três dias resultasse, qual seria o próximo passo do governo russo?

Ian Garner – É uma pergunta difícil de responder, porque o que é que realmente significa vencer? A Rússia não definiu qual é o plano, porque o plano é a guerra. E já disseram várias vezes: “Queremos derrubar o governo. Queremos desnazificar a Ucrânia. Queremos apenas tomar o leste da Ucrânia”. Dimitri Medveded disse a certa altura do ano passado: “Queremos ir até Portugal. Vamos conquistar toda a Europa”. Falaram em invadir partes do Cazaquistão, falaram em retomar partes da Moldávia. Supõe-se que, sem um objetivo de guerra claro, o objetivo é a guerra. E, portanto, não sabemos para onde vai a guerra, porque a ideia é que tem de haver algum tipo de guerra.

JPN – No livro menciona agressões a jornalistas como Dmitri Muratov, editor-chefe do Novaya Gazeta. Qual é o papel que os jornalistas podem ter no contexto em que se encontram?

Ian Garner – Acho que os jornalistas russos, em particular, têm um papel extremamente importante a desempenhar. Porque o problema que temos quando tentamos alcançar os russos que apoiam amplamente a mensagem do Estado – será muito difícil alcançar a multidão ultrancionalista, então, vamos esquecê-los – os russos intermédios, que desconfiam do Ocidente, que geralmente concordam com o que o governo está a fazer, que pensam: “eu não quero matar todos os ucranianos, mas com certeza há muitos nazis na Ucrânia”. Vamos pensar em como alcançá-los.

Se o serviço russo da BBC publicar uma verificação de factos, se o serviço russo da BBC se opuser à guerra, é muito mais provável que essas pessoas leiam o mundo, ou leiam essas notícias, com este sentido de “o meu grupo versus o outro grupo”. E vão dizer: “isto é um disparate, porque a BBC está a publicá-lo”. Ou pode ser a Deutsche Welle, ou pode ser um jornal português, pode ser do Canadá, da América. Qualquer pessoa de fora. Seria uma reação generalizada: levantar o dedo médio, dizer: “eu não vou ouvir, isso é tudo mentira”. Mas os jornalistas russos podem parecer vir da Rússia. Quer sejam ou não, não importa, porque podem ser jornalistas a viver no estrangeiro, mas falam com uma autenticidade e uma genuinidade que ninguém do estrangeiro tem. Portanto, temos de apoiar o jornalismo russo. O jornalismo russo na Europa. Há tantos bons jornalistas russos que deixaram o país nos últimos 15 a 20 anos, que estão a viver no estrangeiro, alguns dos quais fazem um trabalho excelente. Esse será um caminho fundamental para mudar a mentalidade das pessoas nos próximos anos.

Suspeito que o jornalismo na Rússia esteja a morrer.

JPN – Acredita que a próxima geração de jornalistas russos encontrará a coragem necessária para enfrentar o regime ou o medo instituído já será tão grande que essas personalidades serão cada vez menos?

Ian Garner – Bem, nunca se pode prever o futuro, mas suspeito que o jornalismo na Rússia esteja a morrer. O Estado está a oferecer carreiras fáceis nos meios de comunicação social a pessoas interessadas em crescer e trabalhar na televisão, através do seu controlo de todos os meios de comunicação social na Rússia. E sempre haverá pessoas corajosas, em qualquer cultura, em qualquer país do mundo, não importa quão totalitário, quão perigoso seja, que se tornaram jornalistas e escrevem sobre e se opõem ao Estado e dizem a verdade sobre o que está a acontecer, mas eu penso que se olharmos para o futuro na Rússia, daqui a cinco ou dez anos, haverá muito poucos, de facto.

Editado por Filipa Silva