Começou a dançar aos 17 anos. Como descobriu a dança?

Eu descubro a dança, ainda antes do 25 de abril, fundamentalmente através do desporto. Eu fiz natação, fiz ginástica. E a seguir ao 25 de Abril começo a descobrir a dança porque o meu corpo já estava de alguma forma sintonizado com o movimento e com a música. Naquela altura houve vários fenómenos de moda, também: o filme “Hair” e uma série televisiva sobre um escola, que era o “Fame”. E, no fundo, estas coisas influenciam muitos os jovens. E a minha vontade de dançar instalou-se progressivamente.

Disse uma vez numa entrevista: “Não fui eu que escolhi a dança, foi a dança que me escolheu a mim.” Porque é que diz isso?

Porque na realidade a força do corpo e do movimento é uma evidência. Eu, na altura, ainda comecei a estudar arquitetura mas percebi que o corpo me chamava. Não havia outra profissão a fazer. Eu ainda hoje sou um grande estudioso de arquitetura, gosto muito de arquitetura – é o meu grande hobbie, as minhas obras têm sempre um elemento de arquitetura de palco e de cena. Mas, de facto, o corpo naquela altura para um jovem era uma evidência e a dança sobrepôs-se a tudo.

“Há uma conotação muito grande com a homossexualidade e isto há 40 anos atrás era gigantesco”


Não começou pelo ballet clássico, ao contrário da maioria dos bailarinos. Disse que isso o fez seguir um percurso transversal e lento. Porque é que começar pelo ballet facilita o percurso como bailarino?

A técnica clássica é uma técnica muito efetiva em termos de preparação do corpo para o movimento, para a dança em geral. E é de facto, digamos, a nossa herança. A nossa cultura de base acaba por ser muito a dança clássica. Mas quando um rapaz, sobretudo um rapaz, começa a dançar tarde, para já tem de ultrapassar uma série de estereótipos sociais e é normal que comece pelo desporto. Há uma conotação muito grande com a homossexualidade e isto há 40 anos atrás era gigantesco. No fundo, a minha aproximação à dança começa pelo sapateado, pela dança jazz, pelo facto de eu quase querer ser negro, querer mudar a cor da minha pele. Eu gostava de dançar como os africanos dançam. Isto é um processo muito naïf, de algum modo, mas não tem nada a ver com o classicismo. Anos mais tarde nós percebemos que quando enveredamos por esta profissão, temos de fazer ballet clássico e muito ballet clássico, e no meu caso, eu fui aluno dos cursos de bailado da fundação Gulbenkian e fiz muito ballet e isso foi muito importante para me dar uma solidez muito grande. Mas no início aquilo que é o gatilho, aquilo que dispara a nossa paixão, é a música, é o movimento.

Sente-se tão bailarino como há 30 anos atrás?

Não, de modo nenhum. Para já, estou 30 anos mais velho. Sinto-me coreógrafo e gosto de estar atrás do palco e não na frente do palco. A minha carreira foi muito boa mas foi muito curta, foi muito teórica porque eu rapidamente percebi que queria mesmo estar atrás do palco. Sinto-me muito bem na minha posição de coreógrafo, escondido atrás das peças.

E não sente saudades de subir ao palco?

Às vezes sinto e provavelmente fá-lo-ei. Devo dizer-lhe que é muito bom, muito agradável, mas eu não tenho uma necessidade de me exprimir como intérprete como outros intérpretes que eu conheço têm. Eu sempre passei um pouco ao lado disso.

Um bom coreógrafo exige um bom bailarino?

Não, não exige mas ajuda muito. Eu acho que um bom coreógrafo tem de ter aquilo que eu chamo de cultura coreográfica, que é uma base larga de pirâmide que te permite chegar bem alto. Quanto mais larga é a base mais alto é o cume, como nós sabemos. Essa cultura coreográfica passa por muitas coisas e não só por dançar bem, mas passa também por saber dançar muito bem. Portanto se tiveres tido uma carreira de dança longa e durante a tua vida como bailarino cruzares mestres e grandes coreógrafos isso dá-te um músculo muito grande para poderes seguir em frente noutra área, como na coreografia. Mas não é necessário.

E como coreógrafo, para si o que é mais importante: o bailarino fazê-lo tecnicamente correto ou com a sensação correta?

“Não é o que fazes, mas como fazes o que fazes”

Para mim o mais importante é ele ser habitado… Eu dou-me ao luxo de os meus bailarinos terem tudo, mas eu não olho para a técnica, já não olho, porque para mim a técnica é um dado adquirido. Para mim não há discussão se ele é bom tecnicamente para mim. Mas aquilo que eu olho e acho que a maioria dos coreógrafos interessantes procuram é o que está para lá da técnica, que é a interpretação. Não é o que fazes, mas como fazes o que fazes. É esse ideia do como. A técnica é algo de demonstrativo, tem pouco interesse e do ponto de vista estético é muito limitado. Aquilo que interessa é o movimento habitado, é o movimento habitado por uma emoção e por uma maturidade.

Acha que estudar fora é uma condição essencial para que um bailarino português consiga construir uma carreira sólida?

Não, mas ajuda. Eu acho que há muitos bailarinos interessantes em Portugal que saíram pouco de Portugal e são bons bailarinos. Mas eu acho que os grandes intérpretes ou a maioria dos intérpretes que marcaram a sua geração tiveram realmente carreiras internacionais. Eu acho que não é necessário, mas é um bom princípio quando se dança passar um tempo fora e depois voltar. Acho que é muito bom voltar.

Já estudou e trabalhou no estrangeiro. As diferenças entre a dança lá fora e a dança cá dentro, em Portugal, sentem-se?

Sim, claro que se sente. No estrangeiro trabalha-se com muito rigor, com um profissionalismo muito grande. Mas eu acho que em Portugal também já se trabalha com grande profissionalismo, sobretudo na cena contemporânea. Nós, hoje em dia, estamos a passar um momento muito bom, com grandes coreógrafos e alguns bons intérpretes e devo-lhe dizer que não ficamos atrás de nenhum projeto europeu. Portanto, estamos a passar um bom momento na dança contemporânea portuguesa.

Vê-se dança em Portugal?

Vê-se cada vez mais dança em Portugal. Vê-se cada vez mais dança em Portugal, vê-se novos coreógrafos, coreógrafos emergentes, há uma grande vitalidade na dança portuguesa. Há talvez um certo desequilíbrio português porque há mais criadores de qualidade do que intérpretes de qualidade. Mas isso é algo que pode mudar há qualquer altura.

Qualquer pessoa sente a dança. Isso faz da dança uma linguagem muito especial.

O público português está suficientemente preparado para ver um espetáculo de dança?

Todo o público está preparado para ver um espetáculo de dança porque a dança percepciona-se não só de uma forma cognitiva, entendendo, do ponto de vista intelectual, mas percepciona-se de uma forma sensorial e que é não cognitiva. Qualquer pessoa sente a dança. Isso faz da dança uma linguagem muito especial. Se por um lado é difícil de descodificar por outro lado ela é tão autêntica, é quase um sexto sentido. Ela comunica-se de corpo a corpo. É democrática com forma de cultura e não dar arte.

A dança não é para elites?

Eu acho que não é, de modo nenhum, para elites. A dança é para todos. Agora se me perguntar se hoje em dia na cultura nós lutamos por cada espectador, nós lutamos. Hoje em dia é preciso quase ir buscar as pessoas a casa. Entre a internet, as solicitações de ficar em casa, nós temos de lutar muito.

Qual o futuro da dança em Portugal?

É bom, se eu imaginar o que vai ser baseado no que é hoje é bom. Nós temos, aquilo que eu chamaria, uma terceira geração de dança contemporânea fortíssima em Portugal. Claro que há uma primeira geração, mas que já foi uma geração longínqua; há uma segunda geração que teve dificuldades em afirmar-se; e depois há uma terceira geração que se afirma e que começa com coreógrafos como Tânia Carvalho, por exemplo, hoje em dia Vítor Roriz, Sofia Dias, Marlene Freitas. E por aí novíssimos hoje em dia como o Jonas e o Lander Patrick, com o Marco Ferreira. Vemos tantos que, hoje em dia, estão a dar os primeiros passos, aquilo que eu chamaria os novíssimos, João Martins, Luís Guerra. Temos um meio muito vasto, prolífico, e que está hoje muito presente nos circuitos europeus.