No piso térreo do Mercado do Bolhão, entre a banca de pão da D. Alzira e a pequena loja de flores de Rosa Maria, encontra-se a Bolhão Wine House, gerida por Hugo Silva. A loja, que se especializa na venda de vinhos do Porto e do Douro de produtores independentes, já foi outrora uma banca de flores, no tempo em que era a avó de Hugo quem a geria.
A avó cedeu a banca ao neto há cinco anos, quando a idade avançada já dificultava a rotina diária de trabalho. A partir daí, Hugo passou a estar à frente da banca e transformou-a na loja de vinhos de aspeto moderno que contraria a imagem envelhecida do Bolhão.
A passagem de banca de flores para Bolhão Wine House não foi, segundo Hugo Silva, tarefa fácil. A burocracia existente ainda coloca muitos entraves à realização de alterações nas lojas, pelo que qualquer tentativa de mudança é demorada e raramente permitida. “Nós conseguimos fazer a alteração da atividade, isto ao fim de muitas tentativas de conseguir a cedência do espaço, o que ainda não é possível fazer na Câmara. Esperamos que venha a ser possível. Não só para nós, mas para outros comerciantes de modo a possibilitar a entrada de novas áreas de negócio no mercado”, diz o comerciante.
Há cerca de dez anos que a Câmara não permite a cedência dos espaços das bancas e lojas, devido à possibilidade de existência de obras no mercado. “Antes era possível fazer a cedência e alterações, era usual novas pessoas virem para o mercado, existir a cedência entre pais e filhos, avós e netos, ou mesmo para empregados de longa duração”, relembra Hugo Silva. O resultado é a inexistência de pessoas novas no mercado, sendo que os jovens que trabalham no Bolhão acabam por ser apenas auxiliares.
“O Bolhão é como uma aldeia”
Hugo explica que a paixão pelo Bolhão é natural de quem lá trabalha, chegando mesmo a ser inevitável. No entanto, refere que a paixão dos lojistas não chega para manter o Bolhão vivo e para o dinamizar. Para Hugo, uma das maiores necessidades do mercado, atualmente, é a de possibilitar novas valências. “Dando um exemplo, os restaurantes têm que existir dentro dos mercados, para que, por exemplo, uma peixaria possa trabalhar diretamente com esse restaurante e para que o cliente que cá vem saiba o que está a comer. Acho que é uma das valências mais engraçadas que os mercados de frescos podem oferecer”.
“Há lojas vazias desnecessariamente”
A escassez de jovens a trabalhar no mercado deve-se, em parte, ao facto de a Câmara não permitir a cedência dos espaços. Alcino Sousa, presidente da Associação de Comerciantes do Bolhão, conta que há “casos de comerciantes que faleceram e que os filhos quiseram usufruir da loja mas a Câmara não autorizou. E continuam vazias”. “A cedência dos espaços não está proibida, porque não está escrito em lado nenhum, mas a Câmara já há muito tempo que não autoriza, já desde o tempo do Dr Fernando Pinto”, lembra Alcino Sousa. “A associação tenta interceder e resolver as coisas e, às vezes, resolve-se. No mandato deste presidente ainda não fizemos nenhum pedido, mas ao longo dos anos temos vindo a fazê-lo e as respostas são sempre negativas”, acrescenta.
Para além deste aspeto, Hugo destaca a falta de infraestruturas que permitam aos clientes frequentar o Bolhão. O resultado é que há muitas pessoas que apenas circulam pelo mercado, “entram numa porta e saem na outra”, sem terem a possibilidade de se sentar e “simplesmente estar no Bolhão. Apreciar a D. Alice a trabalhar ou a Rosa Maria a fazer um ramo ou a D. Alzira a vender o pão”.
Hugo Silva aponta o horário do Mercado – a abertura às 07h e o encerramento às 17h – como outra das maiores falhas do espaço. Na opinião de Hugo, o horário estipulado limita o público alvo, uma vez que dificulta o acesso ao local de pessoas que trabalham em horários fixos. “Se alguém quiser passar cá depois do horário de trabalho, e simplesmente estar no Bolhão, não consegue. Quer comprar fruta no Bolhão, não consegue, tem que ir ao supermercado. Todas estas pequenas coisas limitam o espaço e o desenvolvimento do mesmo”, explica.
A opção da Câmara do Porto em manter o Bolhão fiel àquilo que é ser um mercado de frescos é um dos pontos com que Hugo Silva concorda. O jovem refere o Mercado Bom Sucesso como um exemplo da forma como alterações excessivas podem desvirtuar um espaço e extinguir a tradição. Para evitar uma situação idêntica, Hugo sugere, para o Bolhão, uma manutenção da estrutura, simplesmente renovando o espaço. “Se existir abertura, de certeza que novas pessoas vão entrar no mercado. Muitas das pessoas que cá estão irão alterar o tipo de negócio, alargar as áreas de atividade que o mercado oferece neste momento. Não vão ter qualquer problema em ter muita gente cá, tanto clientes como pessoas a querer cá trabalhar. Agora é… esperar pelo novo futuro”.
O filho da patroa
Se no caso de Hugo Silva a continuidade foi possível pela renovação, já noutros casos prevalece o negócio da família, mas nas mãos de uma nova geração. Os poucos jovens que trabalham no mercado são, por regra, filhos ou netos dos comerciantes. São aqueles que cresceram no Bolhão, que em crianças corriam por entre as bancas do mercado, e que agora trabalham lado a lado com os pais e avós.
No Café D.ª Gina encontramos Nuno Fernandes, o filho da patroa, que tem 26 anos. Nuno frequenta o mercado desde os seis anos – praticamente desde que “saía da escola e vinha para o café”. Aos 17 anos começou a trabalhar para ajudar a mãe. Prosseguiu com os estudos (tem um curso superior em Design), mas decidiu continuar atrás do balcão do café da mãe.
As razões são várias, explica. “Enquanto me divertir a estar aqui, cá ficarei. Além disso, dá bem para o que eu quero. E estou aqui como filho da patroa – recebo, ninguém manda em mim, faço o que quero”, graceja. Mas, mais do que a liberdade que trabalhar no negócio da família lhe oferece, Nuno tira prazer no que faz. Diz que “trabalhar no Bolhão é um espetáculo”. “O que tem de melhor é a união que há entre as pessoas”, salienta. A familiaridade entre os comerciantes é visível pelo à vontade com que conversam entre si – todos se conhecem e tratam-se pelos primeiros nomes. A maior parte trabalha aqui há décadas e muitos conhecem Nuno desde criança. “Já aconteceu a minha mãe ficar doente e pessoas de cafés próximos virem cá ajudar-me. A concorrência!”, conta Nuno.
Porém, Nuno Fernandes é o primeiro a reconhecer que o seu é um caso raro e que nem todos partilham a sua perspetiva. “Ninguém quer vir para aqui. De filhos e sobrinhos, quase ninguém vem para aqui. Para pessoas da minha geração e mais novas, vir para aqui é…não se sentem bem. Uma coisa é trabalhar num shopping onde se vê pessoas novas. Aqui só se vê velhada”, explica. “Há pessoas com filhos mais ou menos da minha idade que nunca vêm para aqui. Ambicionam coisas diferentes”, acrescenta.
Nuno conta que existem jovens interessados em trabalhar no Bolhão, mas que estes não apreciam a tradição do mercado. “Vêm cá muitos jovens, com a mania que são pintores, que querem abrir galerias e coisas assim. E vêm porque sabem que mais cedo ou mais tarde vão haver obras. Não vêm pelas pessoas que cá estão agora, pelo tradicional. E, de qualquer maneira, a Câmara não deixa abrirem novas lojas dessas”, diz.
Nuno Fernandes planeia continuar a trabalhar no Café D.ª Gina, pelo menos num futuro próximo. Quanto ao futuro do mercado, não se compromete com previsões. “Promessas e promessas é o que não falta. Se vão fazer alguma coisa… não sei”.