Março é o mês da consciencialização para o mieloma múltiplo, um cancro raro e o segundo cancro de sangue mais comum no mundo.
Zélia Mota tem 50 anos. Em 2000, foi-lhe diagnosticado mieloma múltiplo, um cancro da medula óssea que atinge maioritariamente pessoas idosas e que não tem cura. Foi “um caso raro para uma pessoa tão jovem, de 33 anos”, contou Zélia ao JPN. Depois de seis ciclos de quimioterapia e dois autotransplantes, a fase atual é de vigilância.
Depois de 17 anos a conviver com o mieloma, Zélia admite que os encontros de sexta-feira com as amigas que têm o mesmo diagnóstico, a fotografia e o yoga são onde encontra o equilíbrio que precisa para o dia-a-dia.
Zélia faz parte da Associação Portuguesa de Leucemias e Linfomas (APLL), uma associação que presta apoio a doentes e familiares no âmbito das doenças malignas de sangue.
“A maior parte das doenças do sangue não são conhecidas”, considera Isabel Barbosa, Presidente da APLL. A investigadora refere que é preciso uma maior divulgação porque “apesar das pessoas saberem o que é uma leucemia, não sabem o que é um linfoma ou o que é um mieloma múltiplo. A população está a envelhecer e, portanto, o número de doenças hematológicas vai aumentar”, acrescenta.
“É preciso educar e é preciso dar conhecimento às pessoas”
No sentido de divulgar os vários tipos de doenças malignas do sangue, ajudar os novos doentes e respetivos familiares, a APLL lançou o livro “Somos todos heróis” (Oficina do Livro).
A obra que junta mais de 50 testemunhos escritos por pessoas que ultrapassaram doenças como mieloma múltiplo, leucemias e linfomas, já tinha sido lançada em 2016. A recolha de testemunhos demorou pelos menos dois anos.
Porém, neste mês de consciencialização para o mieloma múltiplo, a associação decidiu fazer uma nova sessão de lançamento que se realizou na sexta-feita na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos. “É preciso educar e é preciso dar conhecimento às pessoas”, sublinha a presidente da APLL.
“Eu diria que o livro é para o público, porque toda a gente conhece alguém, infelizmente, que tem uma doença de sangue. Toda a gente conhece alguém que tem uma leucemia ou um linfoma”, afirma Isabel Barbosa.
A obra contém ainda um guia de autoajuda elaborado por uma doente e contribuições de psicólogos da área da oncologia, no sentido de apresentar também a perspetiva de quem presta apoio em situações de combate a este tipo de doenças.
Ana Ribeiro, psicóloga na APLL, explica que como profissional tem que se abstrair um pouco da doença e tentar ajudar ao máximo o doente. “As doenças às vezes também trazem coisas positivas como por exemplo dar um novo significado à vida”, acrescenta.
Ana Ribeiro disse ao JPN que a partilha de experiências é uma das coisas mais importantes para o doente: “pode ver que não é o único a passar pela doença, que há mais pessoas naquela situação e que pode contar com outras pessoas que já passaram exatamente pelo mesmo”, explica.
Fugir à “apologia do sofrimento”
Nesta segunda sessão de divulgação, a obra foi apresentada por três pessoas cujos testemunhos estão presentes no livro.
“Onde existe o perigo, cresce o que vem salvar”. Foi com esta frase do poema “Patmos” de Friedrich Holderlin que Danyel Guerra começou a contar a sua experiência, um poema que o acompanhou durante todo o processo enquanto doente. Recebeu o diagnóstico em 2004 de uma leucemia linfoblástica.
Recusa os “estereótipos dos relatos de doenças gravíssimas como são as doenças cancerígenas”, referindo que o testemunho “foge àqueles códigos estafados da apologia do sofrimento”. Danyel não se considera um sobrevivente, mas um resistente, referindo que viver é um ato de resistência quotidiana.
“Eu nunca me senti o herói e não sou um herói. Se quisermos sou um anti-herói, porque tenho que assumir, não foram muitas vezes, mas tive medo”. Danyel explica que o herói “é aquele que com grande desapego do seu eu é capaz de fazer uma ponte de solidariedade, de altruísmo, de auxílio, de salvação, de socorro a quem sofre. Os heróis foram aqueles que me trataram tanto no Hospital Santos Silva, como no IPO do Porto”.
O autor quis elogiar o Sistema Nacional de Saúde e sublinhar os constrangimentos que este muitas vezes enfrenta. “O orçamento do Estado não concede à saúde a fração que ela merece neste país”, afirmou.
Em conversa com o JPN, Danyel Guerra referiu que a interação entre doentes e ex-doentes não deve ser sobrestimada e que cada um, juntamente com os médicos, enfermeiros e parceiros, acaba por definir a melhor forma de se guiar por todo o processo. Acrescentou que “em termos de trabalho multidisciplinar e pluridisciplinar é importante a contribuição dos psicólogos, mas o grande psicológico somos nós”.
Bárbara Machado tem 29 anos e foi diagnosticada com um Linfoma não-Hodgkin quando tinha 22. Decidiu participar na iniciativa porque considera que os doentes têm sempre a tendência para comparar a realidade que vivem com outras pessoas na mesma situação.
“Desde que eu arranjei um doente que tinha tido o mesmo problema que eu, que me passou o testemunho dele, que já estava com uma vida perfeitamente normal, já tinha doença em remissão, acho que as coisas mudaram para mim. Acho que foi uma das formas que eu passei a acreditar que era possível”, referiu Bárbara.
“Eu de herói não me senti nada”, admite a autora. Bárbara sublinhou a importância que todo o staff médico teve e que lhe permitiu ultrapassar a doença. “Somos todos heróis, o doente e todo o backoffice por trás, seja o familiar, seja o profissional”, acrescenta.
Bárbara falou com o JPN e explicou que o “cancro é muito conhecido, mas depois começamos a tratá-los pelo nome próprio – linfomas, leucemias, mielomas – e há muita gente que desconhece e não associa isto a doenças oncológicas”. Nesse sentido, a autora acredita que o livro pode ajudar doentes a encontrarem pontos comuns e a perceberem que outras pessoas conseguiram vencer a patologia.
Em 2000, Carina Carvalho foi diagnosticada também com um Linfoma não-Hodgkin. “Que bom que pelo menos não é cancro”, foi o que pensou quando recebeu o diagnóstico, admitindo que na altura não sabia o que era um linfoma. Desta forma, Carina, cujo testemunho faz parte da obra, referiu-se ao desconhecimento que existe em relação às doenças de sangue.
Carina admite que na fase inicial da doença não procurou ninguém que tivesse passado pela mesma situação, porém, “na fase de recuperação procuramos saber o que é que as pessoas fazem, o que é que comem, que tipo de exercícios fazem, que filmes veem”, conta.
Os três autores presentes quiseram transmitir uma mensagem de esperança, insistindo na necessidade do otimismo, da paciência e da coragem.
Em Portugal, são identificados 300 a 400 casos de mieloma múltiplo por ano, de acordo com a APLL.
Artigo editado por Filipa Silva