A nona edição do festival aconteceu entre os dias 10 e 14 de outubro, no Batalha Centro de Cinema e na Casa Comum da Universidade do Porto. João Ferreira, diretor artístico do festival, falou com o JPN sobre a relevância do evento e do cinema queer.

A nona edição do Queer Porto terminou a 14 de outubro, com a consagração de “Kenya”, de Gisela Delgadillo, como o vencedor da competição oficial. O filme foi a escolha do júri e do público do festival.

“Tendo em conta os objetivos do festival de lançar o olhar para a compreensão da realidade dos indivíduos e das comunidades queer, ‘Kenya’, além de cumprir os objetivos, é um espelho social para a condição de trabalhadoras do sexo mexicanas que têm a rua como lugar de existência, mas também de resistência. Kenya aborda com cuidado a vida de mulheres trans. É um filme digno, sensível e pedagógico sendo capaz de nos mobilizar para a transformação”, justificou o júri.

O filme “Kenya” foi o vencedor da Competição Oficial da 9ª edição do Queer Porto. Foto: Queer Porto

Na competição oficial foi ainda entregue uma menção especial a “Carvão”, de Carolina Markowicz

Já o Prémio Casa Comum, dedicado a curtas-metragens nacionais de cinema queer, foi dado a “Entre a Luz e o Nada”, de Joana de Sousa.

Para o júri, a curta-metragem “foca-se numa diversidade de temas contemporâneos relevantes, tais como, vivências urbanas, questões de género, experiências psicotrópicas, saúde mental, família e sexualidade”, “num registo pop queer muito atual, didático e acessível.”

Desta secção, saiu também uma menção especial para a curta “Dildotectónica”, de Tomás Paula Marques, que também ganhou o prémio do público.

Cinema que “subverte”

João Ferreira, diretor artístico do festival, ressalva a importância do cinema programado pelo Queer Porto pelo “tipo de leitura” que oferece “não só sobre as realidades das comunidades e indivíduos queer, mas também pela forma como este cinema e toda a gente envolvida na criação destes objetos artísticos olham para o mundo”, afirmou em declarações ao JPN.

“Esta é uma visão que subverte muito a forma a que estamos habituados, uma forma muito heteronormativa que estamos muito educados a ver no jornalismo e mesmo nas produções culturais mais massivas. Daí a grande importância que este cinema tem”, completou.

O responsável pelo certame acredita que o cinema é um incentivo a um pensamento crítico sobre a cis-heteronormatividade e pode ajudar as novas gerações sentirem-se representadas, como de resto fez para todas as gerações: “o cinema tem uma capacidade muito grande de [ser] reflexo. Conseguimos rever-nos muito facilmente nas personagens. São corpos, são histórias, é a linguagem. É uma forma de arte muito completa e acessível. Mesmo que o cinema possa vir a ter outras formas, com outras influências, novas tecnologias, quero acreditar que sim, que vai continuar a ser de uma enorme importância existir este cinema.”

Sobre a aposta no formato de curtas-metragem no prémio que o festival dedica, no Porto, à produção nacional, João Ferreira considera que tem tornado mais “democrática” a participação, levando ao festival criação artística produzida fora dos grandes centros urbanos.

“Com as novas tecnologias, com muitos poucos meios consegue-se neste momento fazer uma curta-metragem com enorme qualidade. E isso tem levado muitos criadores fora de Lisboa e do Porto, a produzir filmes”, afirmou, destacando também o papel do cinema realizado nas escolas de cinema na exploração da temática queer.

“Sempre estivemos cá”

Rebeca Letras participou do documentário “Dildotectónica”, de Tomás Paula Marques, que questiona a dinâmica cis-heteronormativa presente na indústria de dildos, ao mesmo tempo que conta a história de Josefa, que, por ter relações sexuais com mulheres e usar dildos de cerâmica, foi perseguida pela Inquisição.

Rebeca Letras conversa com o JPN sobre cis-heteronormatividade no cinema e sobre “Dildotectónica”. Foto: Paulo Sérgio Nunes/JPN

Ao JPN, a atriz explica que o filme, que é parcialmente friccionado, inclui relatos de julgamentos ocorridos “um regime cis-heteronormativo do século XVI”. No fundo, resume, “são relatos de pessoas como nós, feitos com um julgamento moral muito grande”. “Acho que falar sobre a história é um ponto importante, porque que se tu analisas a história, percebes que não aparecemos agora, sempre estivemos cá”, remata.

Quanto à produção de cinema queer, Rebeca pensa que devem haver mais pessoas queer envolvidas no processo de produção dos filmes: “Acho que para quebrar, também é preciso as equipas se transformarem e que as pessoas queer ocupem os espaços de trabalho. Para isso, é preciso não serem sempre as mesmas pessoas a fazer as coisas. No caso específico deste filme, toda a gente da equipa é queer, não só a temática”, conta. “Continuam a participar nas equipas muitas pessoas hetero-cisnormativas, que são ótimas trabalhadoras, não é sobre isso, mas não é como se não houvesse pessoas queer a fazer a mesma coisa”, defende.

O festival e a identidade queer

A nona edição do Queer Porto contou com um foco claro na identidade queer, mas também abordou aspetos de interseccionalidade. Ao trazer filmes que abordavam a questão queer em contextos sociais, raciais, e culturais diferentes, foi traçado um panorama muito mais vasto de contextos nos quais as diferentes vivências e identidades queer lutam para ter espaço, principalmente na arte.

Mas foram as sessões especiais e Queer Focus que abordaram de forma mais explícita essa interseccionalidade. As sessões especiais trouxeram os filmes “Tudo o que Você Podia Ser”, “Music is My Boyfriend”, “Feminism WTF”, “bell hooks: Cultural Cristicism & Transformation”, seguido de uma conversa com Hannah Bastos e Hilda de Paulo, “Un Prince” e “Commitment to Life”. Já os filmes que fizeram parte da programação Queer Focus foram: “ALTAR. Cruzando Fronteras, Building Bridges” seguido de uma conversa com Paola Zaccaria e Isabeli Santiago, “Ana Mendieta: Fuego de Tierra” e “The Hearing”, seguido de uma conversa com Isabel Almeida Rodrigues.

Público reunido antes da sessão começar. Foto: Paulo Sérgio Nunes/JPN

Para além dessas sessões, houve também as sessões retrospetivas, que incluíam curtas-metragens e filmes que abordaram aspetos da cultura queer em épocas e sociedades em que essa discussão ainda não estava tão normalizada quanto hoje.

Contudo, as principais atrações foram a Competição Oficial e o Prémio Casa Comum.

As oito longas-metragens que concorreram na Competição Oficial foram “The Last Year of Darkness”, “A Hawk as Big as a Horse”, “Dos Estaciones”, “Kenya”, “Des garçons de province”, “Vicente Ruiz – A Tiempo Real”, “La Amiga de Mi Amiga” e “Carvão”.

Já as curtas que concorreram ao prémio Casa Comum foram “Mátria”, de Catarina Gonçalves, “Apontamentos de Curva_Correnteza”, de Flavia Regaldo, “Land Song”, de Inês Ariana Pereira, “Entre a Luz e o Nada”, de Joana de Sousa, “Dias de Cama”, de Tatiana Ramos, “A Minha Raiva é Underground”, de Francisca Antunes, “Tidy Bed”, de Danilo Bastos Godoy, e “Dildotectónica”, de Tomás Paula Marques.

A maior parte dos filmes passou no Batalha Centro de Cinema. Contudo, a Reitoria da Universidade do Porto também foi lugar de sessões da categoria Queer Focus e algumas conversas.

Editado por Filipa Silva