A peça estreia na próxima quinta-feira, na Sala Estúdio Perpétuo, e vai estar em cena até ao Dia Mundial do Teatro, 27 de Março. O JPN esteve à conversa com o encenador e autor do texto, Castro Guedes, e os atores da peça, Óscar Branco e Fernando André.

No ensaio geral de “Uma Noite de Solidão”, Óscar Branco e Fernando André contracenam. Foto: Carlota Nery/JPN

A companhia de teatro Seiva Trupe está de regresso com “Uma Noite de Solidão no Capim”. “É uma abordagem sem complexos à guerra colonial”, como afirma Castro Guedes, autor do texto e encenador da peça que estreia na próxima quinta-feira (7), na Sala Estúdio Perpétuo. Vai estar em cena até ao Dia Mundial do Teatro, 27 de março, para depois seguir em digressão pelo país.

O espaço é África, algures no meio do capim. O tempo é a célebre noite de 24 para 25 de Abril de 1974. E a ação é desencadeada por um acontecimento inesperado: o encontro de um africano, interpretado por Óscar Branco, e um caucasiano, por Fernando André, ambos em fato militar. Dois homens de ideias e lutas opostas confrontam-se sozinhos no meio do Capim.

O medo da morte e do próprio capim escuro onde se encontram leva-os à cooperação e ajuda mútua. E de uma suposta relação de conflito nasce uma amizade e empatia pelo outro. Os preconceitos morais e as barreiras sociais desaparecem nesta peça, que explora o acesso à humanidade do outro ainda que em lados opostos da guerra.

Nesta situação paradoxal assistimos a este encontro entre um africano que é soldado e integra o exército colonial português, e um caucasiano que é oficial de baixa patente (ou miliciano). Sozinhos no capim, depois de um sentimento inicial de medo e desconfiança, “compartilham cigarros. Compartilham até liamba, que se fumava muito na guerra. Compartilham as histórias das famílias, das terras de onde vieram, dos seus familiares. Compartilham cervejas e compartilham o espaço, as estrelas, os pássaros à noite, que em África são exuberantes”, explicou o encenador Castro Guedes ao JPN. É através “destas coisas simples da vida” que a amizade nasce, acrescentou.

No meio disto tudo, o medo diminui e a noção do absurdo da guerra só aumenta. Depois, surge um rádio. O rádio que relata o que se está a passar em Lisboa na noite de 24 para 25. Anuncia-se a liberdade. Se antes a guerra era por motivos não justificáveis, agora era claramente por uma causa perdida e passada. E, então, acontece o êxtase. Abraços. Talvez beijos de entusiasmo? O certo é que a intensidade de emoções tomará conta do palco.

Dois homens de lados opostos, se colocados no mesmo espaço, sozinhos e confrontados com a presença só um do outro, serão capazes de aceder à humanidade um do outro? Para Castro Guedes, sim. “O essencial é que um homem mais um homem não faz a guerra, faz a a amizade“, disse. Existem “belíssimas amizades” que se “sobrepõem a ideias”, exceto em casos extremos, como exemplifica com o fascismo, nazismo e estalinismo.

Castro Guedes, autor do texto e encenador de “Uma Noite de Solidão”, à conversa com o JPN. Foto: Carlota Nery/JPN

Ambos os soldados vão se conquistando, um ao outro e ao espaço, havendo eventualmente uma quebra da solidão, ainda que “a solidão da guerra” permaneça. E a coragem que advém desta situação não se manifesta no combate característico desta guerra, mas antes no “auxílio de uns aos outros”, afirma Castro Guedes. “É uma coragem de fraternidade, de amizade, de melhor conhecimento uns dos outros e da compreensão de que, como na filosofia Ubuntu, que defendiam Nelson Mandela e o Gandhi, eu sou tu porque tu és eu. Não existimos uns sem os outros”, acrescenta.

A peça que trouxe Óscar Branco novamente ao drama

Óscar Branco interpreta o soldado dos “flechas”, tribo caracterizada por ter pele clara, etnia que vem do sul de Angola. Foto: Carlota Nery/JPN

De origem angolana, Óscar Branco voltou ao drama para esta peça, após anos de envolvimento na comédia e no stand-up. Considerando-se um dos “pioneiros da coisa” ao lado de grandes nomes, como Bruno Nogueira e Nilton, admite ter sentido uma “uma saudade de fazer teatro”.

Mas porquê Óscar Branco? E não um ator negro a interpretar o soldado africano? O encenador explica que a personagem de origem africana vem de uma tribo, “os flechas”, que tem uma cor de pele muito clara.

Para o ator e comediante, a primeira vocação exige a criação de uma persona. Aqui, surge como um soldado africano que integra o exército colonial português e vem de uma tribo denominada por “flechas”. Estes “flechas” foram abandonados e, “no meio do entusiasmo do 25 de Abril, esqueceram-se de os trazer, sabendo que eles iriam ser linchados, chacinados. E foram… Foram milhares de flechas”, referiu em declarações ao JPN.

A guerra passa-se em África, mas podia ser no Vietname, refere o ator. Imagine-se que se sentavam frente a frente e são obrigados a “explicarem-se uns aos outros, a merda que foram fazendo todos. Acho que isto resolveria alguns problemas do mundo”, analisou.

Sobre o estado atual e o futuro da humanidade, o ator diz que “vamos bater com a cabeça na parede e, depois, os sobreviventes terão que repensar a coisa”. “Estamos completamente cegos por ideologias”, sobretudo, numa altura em que, como afirma Óscar Branco, “explode a extrema-direita por todo lado, o racismo e a morte”.

Procurar a “solidão da guerra”

Fernando André interpreta soldado caucasiano. Foto: Carlota Nery/JPN

Fernando André é o soldado caucasiano. Para o ator, a identificação com a personagem fez-se muito através do “processo de pesquisa”. Na tentativa de se sentir capaz de experimentar uma “solidão interior”, a “solidão da guerra”, o ator teve de se relacionar com sentimentos que nunca antes experimentou ou conheceu, e por isso, fez um exercício de “imaginação”, por identificação e suposição do que seria viver como soldado de guerra, perdido no capim.

O ator contracena em palco com Óscar Branco e é a primeira vez que interpreta um texto “mais literário”, “mais intelectual”, o que para ele foi “um desafio”. Além disso, reconhece que foi um texto que o ajudou a “quebrar muito estigmas” que tinha. “O preconceito todos temos, mesmo que digamos que não somos pessoas preconceituosas”, acrescentou.

“Quebrou-me muito, fez-me olhar para eles [povo africano] de outra maneira. Principalmente, para os combatentes, porque nunca tiveram acompanhamento e realmente há histórias com imagens horríveis: matar os ‘pretos’ e pô-los em barricas com sal, cortar braços, matar as próprias crianças e os filhos dos patrões onde trabalhavam. Estamos noutro tempo, mas a verdade é que também nós nunca estivemos nesse lado e não viemos de uma guerra onde vemos o pessoal a ser tratado como porcos, a salgar depois de mortos”, refere Fernando André.

Num cruzamento entre a “arte” e a “inserção social”, o ator considera que o teatro deve passar “uma mensagem” onde se possa “realmente fazer alguma coisa”, enquanto manifesto de progresso e reflexão.

Com a aproximação das celebrações do 25 de Abril, Fernando André alerta para a relevância que deveria ser dada ao debate sobre o tratamento que é dado aos retornados, ou aos que não retornaram e ficaram abandonados, “como o caso dos flechas, que na altura eram portugueses, porque ainda não tinham a independência e lutavam ao nosso lado”.

O “luto” que Portugal “ainda não fez”

Texto de apresentação da peça. Foto: Carlota Nery/JPN Foto: Carlota Nery/ JPN

“Uma Noite de Solidão no Capim” caminha no sentido do “luto” que “Portugal ainda não fez”. O encenador Castro Guedes menciona, por exemplo, a atitude dos americanos perante a guerra do Vietname, que se manifesta fortemente nas artes e cultura, o que se entende por consciencialização de um passado que não se remedeia mais. O ator Óscar Branco também acrescenta que existem “filmes fantásticos, peças de teatro fantásticas sobre o Vietname”. “Eles curaram-no… Nós não. Escondemo-nos sempre. Ainda há tensões, é violento”, sintetiza.

Já os portugueses, “em relação à guerra colonial, não sei bem porquê, talvez por características do povo, talvez por ter sido resultado de um acontecimento que também fez mudar o próprio regime, continuamos a ter dificuldade em falar sobre isso”, acrescentou.

“Uma Noite de Solidão no Capim” promete um desenvolvimento de uma relação improvável, ao mesmo tempo que sentimentos tão diferentes e intensos vão tomando conta do palco. Numa peça, onde do medo nasce a empatia e onde os tiros cessam para dar lugar aos cravos.

Depois da estreia no Porto, a peça segue, em abril, para Santa Maria da Feira e, depois, para Freamunde. Em maio, chega às Caldas da Rainha e, em setembro, a Vila Praia de Âncora. O bilhete tem um custo de 15 euros.

Editado por Inês Pinto Pereira