A cultura continua a ser um tema negligenciado pelos políticos durante as suas campanhas. A ex-ministra da Cultura e docente da FLUP, Isabel de Pires Lima, considera preocupante a ideia "de que a cultura é uma coisa de que se trata quando já está tudo tratado".

A cultura continua a ser um tema deixado de fora dos debates políticos Foto: Matheus Viana/Pexels

Na campanha para as legislativas de 10 de março pouco se falou de Cultura. Isabel Pires de Lima, professora universitária e ex-ministra da pasta, considera que essa “falta” resulta de um entendimento que ignora a cultura como uma área “transversal”, que se deve cruzar com as políticas de outros ministérios.

A ausência da cultura dos debates políticos não surpreendeu, assim, a antiga governante, com quem o JPN falou antes do dia das eleições: “Preocupa-me que ainda persista a ideia de que a cultura é uma coisa de que se trata quando já está tudo tratado. O que é obviamente falso, porque a cultura está todos os dias a interferir com todas as nossas práticas sociais, políticas e económicas, inclusivamente, mas não me surpreende”.

O investimento na cultura, considera, tem potencial para incentivar “muitíssimos investimentos” noutras áreas, tais como a educação, os negócios estrangeiros e as políticas de inclusão, por exemplo, que “são hoje centrais nas sociedades europeias e super necessárias na sociedade portuguesa”. Para a catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), esta falha está a colocar em causa “a preservação da própria identidade portuguesa e a memória coletiva”. Isto porque, se não se discute o tema, os cidadãos também “não vão ser sensibilizados” e, por conseguinte, vão acabar por perder o interesse.

No que toca aos aspetos que necessitam de uma solução prioritária, a ex-ministra da Cultura (2005-2008) destaca os apoios à produção artística contemporânea, com um “mercado que alimente” as diferentes vertentes, e onde se possa apostar na sobrevivência comercial dessas áreas, através do apoio dado aos públicos.

Reforçar o Ministério da Cultura é imperativo, considera. No entanto, há que salientar que o Ministério da Cultura teve também reforços orçamentais nos últimos governos. Isabel Pires de Lima esclareceu ao JPN o seu ponto de vista: “De facto, houve um aumento do orçamento, designadamente para as políticas de património, e, sobretudo, para a produção contemporânea. Mas esse reforço orçamental continua a ser algo de muito pouco significativo, porque o orçamento do Ministério da Cultura é baixíssimo, pequeníssimo”.

Um outro parâmetro criticado pela professora é a incapacidade, por parte do governo, de reforçar o orçamento para a televisão pública, que Pires de Lima afirma ser “um instrumento da maior necessidade na sociedade contemporânea”, uma vez que “presta um serviço público que nenhuma das outras cadeias televisivas presta”. Ressalta ainda que é necessário investir nas novas tecnologias, visto que “estamos a assistir à emergência de novas plataformas e da digitalização na comunicação”. “O orçamento para a RTP continua a ser baixíssimo e não é atualizado há imensos anos”, reforça Isabel Pires de Lima.

Isabel Pires de Lima foi ministra da Cultura de José Sócrates, mas em 2011, já depois de ter deixado as funções, criticou o então primeiro-ministro por não ter cumprido o objetivo de atingir 1% do orçamento para a Cultura. Apesar de ao longo dos anos mais recentes o orçamento do setor ter aumentado, a verdade é que nunca se atingiu 1%. Quanto a isto, a catedrática da FLUP tem esperança de que algum dia se chegue a concretizar, tendo noção que, para que tal seja possível, “é preciso, durante as campanhas eleitorais, sensibilizar para a necessidade do reforço orçamental na Cultura, porque, senão, a própria população não reclama”. Aliado a isso, é preciso também promover “a curiosidade intelectual na população mais jovem”, papel que deve ser realizado pelas escolas.

Tradicionalmente, nos governos do PS, a Cultura tem estatuto de ministério enquanto nos governos PSD é uma Secretaria de Estado,  muitas vezes sob a alçada direta do primeiro-ministro. Na perspetiva de Isabel Pires de Lima, se isso acontecer neste próximo governo, significaria um retrocesso: “É muito diferente estar um secretário de Estado ou estar um ministro sentado à mesa do orçamento. A capacidade de negociação de um ministro não se compara com a capacidade de negociação de um secretário de Estado na esfera política, por muito bom que ele possa ser”, considera.

Neste gráfico é possível perceber a diferença entre os valores para a cultura inscritos nos Orçamentos de Estado (em milhões de euros). Ao analisar os dados, note-se que nos governo do PSD, liderados nestes anos por Pedro Passos Coelho, a Cultura estava inserida no ministério da Governação e Cultura, o que justifica o desfasamento de valores face aos primeiros anos da Governação PS, cujos os dados se iniciam em 2016, a cultura existia como um só ministério.

Em matéria de programas eleitorais, a ex-ministra socialista destaca uma novidade do programa do PS, que considera ser bastante positiva para o setor. Esta incide no facto da cultura não aparecer associada “a políticas de lazer, de desporto e educativas, mas sim ligada a políticas sociais”, onde também estão a saúde e a segurança social. É “uma nova compreensão do que são as políticas culturais, pelo menos ao nível macro e ao nível da inserção dentro de uma lógica governamental”.

Editado por Filipa Silva