20 anos depois dos atentados de 11 de março de 2004, não houve, na Europa, um ataque tão mortal como aquele vivido em Madrid. Para assinalar os 20 anos da tragédia, o JPN ouviu os testemunhos dos madrilenos Luís Taboada e Alfonso Izquierdo, do correspondente da RTP na capital espanhola em 2004 e a opinião dos especialistas em Segurança e Relações Internacionais Diogo Noivo, António Horta Fernandes e Joana Araújo Lopes.

Os atentados de 11 de março de 2004, em Madrid, foram o ataque terrorista mais letal da história da Europa continental. Morreram 192 pessoas, e mais de 1.850 indivíduos ficaram feridos. Entre as 7h36 e as 7h40, dez bombas explodiram, quase em simultâneo, em quatro comboios que faziam a ligação entre Alcalá de Henares e a principal estação madrilena de Atocha.

No comboio que foi alvo do ataque na própria estação de Atocha morreram 34 pessoas. Na rua Téllez, onde passava outra viatura, 62 indivíduos perderam a vida. Outros 65 na estação de Poso e 14 na estação de Santa Eugénia. Mais tarde, confirmaram-se mais 16 óbitos, vítimas que não resistiram aos ferimentos dos ataques. A última pessoa a perder a vida, na sequência dos atentados, morreu em 2014, após 10 anos em coma.

Alfonso Izquierdo, de 57 anos, recorda que nesse dia fatídico “o país parou”. “Só falavam disso no noticiário, no supermercado, no trabalho… não havia outra preocupação”, recordou em entrevista ao JPN.

Mapa dos atentados de 11 de março de 2004 Foto: Wikimedia Commons

20 anos depois, a memória começa a perder-se e Luís Taboada confessa não se lembrar de muito. Enquanto as bombas explodiam no comboio, Luis ia de carro para o trabalho. Só quando chegou é que recebeu a notícia dos atentados. Alfonso Izquierdo soube da tragédia da mesma forma: todos os seus colegas comentavam o assunto quando chegou ao escritório, o que fez com que ligasse a rádio.

As notícias eram muito contraditórias porque não se sabia exatamente o que tinha acontecido, se havia mortos, qual era a magnitude…”, conta Alfonso. O madrileno viveu o atentado em “primeira mão” porque a namorada do seu colega de mesa estava num dos comboios – “estávamos todos muito preocupados com ela”, relembra. “Felizmente, não lhe aconteceu nada, embora tenha sido muito difícil recuperar”, conta Izquierdo. 

Cesário Borga, ex-correspondente da RTP em Madrid , conta que, nesse dia, se encontrava em Barcelona para a cobertura de um comício. Dada a proximidade das eleições legislativas no país, havia outra equipa portuguesa mobilizada em Madrid que acabou por chegar primeiro ao local. O jornalista acordou à hora do costume, 7h00 da manhã, e na rádio ouviu um alvoroço insólito. Mal se deu conta do que se passava na capital, foi, juntamente com o repórter de imagem, para o aeroporto. Lá contactou a equipa que já estava em Madrid de forma a guiá-los na confusão que se instalara na cidade: “disse-lhes como é que eles deviam ir, qual era a forma mais rápida de chegar a Atocha para não serem intercetados”. Quando chegou à capital foi para o local onde começavam a chegar as vítimas mortais. “Foi, de facto, um tempo de luto terrível”, lembra Cesário Borga.

O correspondente conta ainda que, pouco tempo depois dos ataques ,“começaram a haver manifestações em Madrid” a contestar a atitude do Governo, que tinha atribuído a culpa à ETA –  uma organização terrorista, nacionalista e de extrema-esquerda do País Basco. A população desconfiava do envolvimento da ETA nos atentados e o Presidente do Governo, José Maria Aznar, “desapareceu” a meio do dia e “deixou de fazer declarações”, explica o jornalista da RTP.

Manifestações na noite de 11 de março de 2004 Foto: Kippelboy / Wikimedia Commons

De quem era a culpa?

Todos os testemunhos contactados pelo JPN se lembram da confusão e sentimento de incerteza quanto à autoria do ataque. O madrileno Alfonso Izquierdo relembra que “os jornalistas queriam informar a população, mas não se sabia exatamente o que tinha acontecido.” “Todos queríamos respostas”, conta Alfonso.

A três dias das eleições para o Parlamento espanhol, com o PP em boas condições para voltar a ganhar contra o PSOE, José Maria Aznar, presidente do governo, culpou imediatamente a organização terrorista basca ETAEuskadi Ta Askatasuna – pelo sucedido. Contudo, as declarações que fez naquela manhã acabariam por se revelar a sentença do resultado que obteve nessas legislativas.

José María Aznar Foto: Flickr

Diogo Noivo, especialista em Relações Internacionais, admite que “num primeiríssimo momento, esta culpabilização fazia algum sentido porque desde 1968 que a ETA era a  principal ameaça terrorista em Espanha”. “A ETA tinha um historial de atentados e ameaças contra infraestruturas públicas, a ETA já tinha feito ações indiscriminadas, a ETA normalmente cometia atentados terroristas em vésperas de atos eleitorais”, enumera. Para além disso, acrescenta, “pouco tempo antes destes atentados, foi interceptada uma furgoneta da ETA com 500 quilos de explosivos pela Guardia Civil a caminho de Madrid.”

Todas as culpas pareciam recair sobre o grupo terrorista basco. O próprio “El País”, um dos mais respeitados jornais espanhóis, lançou uma capa onde culpava, deliberadamente, a ETA pelo “massacre em Madrid”. Para o ex-correspondente da RTP em Madrid, Cesário Borga, “aquele título foi como um tiro”.

O jornalista português diz que nunca ficou totalmente convicto da informação que circulava uma vez que, nessa manhã, ainda a caminho do aeroporto, tinha ouvido um depoimento de Arnaldo Otegi, do partido Eusko Alkartasuna (o braço político da ETA), no qual negava qualquer responsabilidade da ETA sobre o sucedido. “A ETA não põe bombas em comboios de trabalhadores, porque se diziam socialistas e aqueles comboios eram todos de trabalhadores”, observa Cesário Borga que diz ter posto sempre nas suas crónicas “um tom de dúvida” sobre aquela que parecia ser uma convicção das autoridades espanholas.

Mais tarde, ainda surpreso com a capa do “El País” no dia dos atentados, o correspondente português falou sobre o assunto com o então diretor do jornal: “Ele explicou-me que puseram aquele título porque o Presidente do Governo, neste caso, José Maria Aznar, lhe telefonou de manhã a dizer: ‘Não tenhas dúvidas! Foi a ETA!’. “O Governo controla os serviços secretos, tem os serviços de informação a trabalhar e tem muito mais informação do que qualquer diretor de um jornal. Por isso, quando o Presidente do Governo, independentemente de ser do PP ou do PSOE, diz isso, só se poderia acreditar”, defende. “Isto para mim sempre foi um enigma”, confessa Cesário Borga.

O madrileno Luis Taboada também duvidou das responsabilidades da ETA: “Achei muito estranho, porque as pessoas no comboio eram trabalhadores. A ETA já tinha manchado a sua imagem quando fez ataques e matou civis.” Para além disso, “o facto de ter havido um ataque jihadista, colocava em risco as eleições para o PP uma vez que, um ano antes, a Espanha tinha apoiado os Estados Unidos na invasão do Iraque”, na sequência do 11 de setembro. Foi na famosa Cimeira dos Açores, onde Durão Barroso e Aznar se colocaram ao lado de George Bush filho na intenção de invadir o país do Golfo Pérsico. Deste modo, culpar a ETA parecia benéfico em termos eleitorais.

Porém, à medida que as horas passavam, a verdade começou a tornar-se evidente. O atentado seria de natureza jihadista ou de terrorismo islamista.

Foto: Flickr

A culpabilização da ETA por parte do PP é, segundo o especialista Diogo Noivo, a grande causa que explica a derrota do Partido Popular de centro direita nas eleições. Contudo, “o PP não ficou sozinho na mentira e na manipulação”, diz o investigador em Relações Internacionais. O Partido Socialista Operário Espanhol, PSOE, “usou eleitoralmente os 192 cadáveres, para com isso ganhar votos e ganhar as eleições”, continua. Diogo Noivo considera esta manipulação o lado mais “lamentável” e “condenável, do ponto de vista ético e político”, por parte dos socialistas.

A especialista em terrorismo Joana Lopes Araújo afirma que durante este “período de grande confusão sobre os perpetradores do ataque,” foi reforçada a vigilância por parte das autoridades policiais, o que resultou na detenção de um total de 131 suspeitos com possíveis ligações à Al-Qaeda e a outros grupos islamistas. A investigadora acrescenta ainda que, “20 anos depois, a Espanha continua a ser um dos principais alvos de grupos terroristas como Daesh” e que “os sobreviventes ainda lidam com o trauma”, sendo um tópico muito sensível num país polarizado a nível político e social.

O luto, a contestação e a insegurança

A reação geral, espanhola e europeia, foi de choque e consternação: “Foi um ataque brutal, coordenado, sem precedentes na história europeia”, conta a investigadora de terrorismo, Joana Araújo Lopes.

Diogo Noivo revela que, apesar da sociedade espanhola estar relativamente habituada a atentados terroristas, a verdade é que este causou uma “consternação muito particular”, não só pela sua dimensão, mas por ter afetado trabalhadores que se deslocavam de manhã cedo para o trabalho e pela posterior politização da tragédia pelos dois grandes partidos espanhóis.

Joana Araújo Lopes recordou ao JPN que no dia seguinte ao atentado –  12 de março de 2004 – houve uma manifestação massiva da população contra o ataque. O povo espanhol estava de luto. Cesário Borga conta que depois da “grande convulsão” veio uma situação “muito complicada” – os funerais dos mortos, que duraram dias. O jornalista recorda “aquele luto todo”. Alfonso perdeu dois colegas da empresa nos atentados e confessa que isso o afetou muito. 

Homenagens às vítimas dos atentados de 11 de março Foto: Manuel González Olaechea y Franco/Wikimedia Commons

Izquierdo relembra que, durante muito tempo, teve medo de ir ao centro de Madrid, a locais movimentados e de utilizar os transportes públicos. Só com o aumento da segurança deixou de sentir receio: “víamos sempre polícia nas ruas, principalmente no comboio e no metro”. Luís Taboada admite que depois do ataque ficou “mais atento”, sentia-se inseguro. “Se alguém deixasse uma mala ou se visse alguém de ‘aparência muçulmana’ prestava uma atenção extra que antes não prestava”, conta o madrileno. Luís relata que sempre que via um indivíduo de barba e pele morena, com uma mochila só pensava: “espero que ele leve a mochila”.

A investigadora de terrorismo acrescentou que no rescaldo dos atentados, 59% dos espanhóis consideraram o terrorismo como uma das principais ameaças para a segurança interna do país. Todavia, Cesário Borga relata que uns dias depois do ataque fez uma reportagem dentro de um comboio que fazia o percurso para Atocha e que tudo decorria normalmente, como se nada se tivesse passado. O jornalista acredita que os anteriores ataques assíduos da ETA contribuíram para que os espanhóis já estivessem “habituados e preparados para situações complicadas como esta”.

O “catalisador” para a política anti-terrorismo

Estes atentados “têm um lugar, infelizmente, especial na história do terrorismo”, afirma Diogo Noivo, uma vez que as marcas que deixaram na nação espanhola e na Europa abriram o caminho para a mudança. 

Até à data, a principal ameaça terrorista em Espanha era o terrorismo nacionalista de extrema esquerda da ETA, e, portanto, prestava-se pouca atenção ao terrorismo jihadista. Ainda que Espanha tivesse algum passado com este terrorismo, desde o final dos anos 80, segundo o especialista em Relações Internacionais, só com os atentados de 11 de março as autoridades notaram a falta de recursos especializados para este tipo de terrorismo. O ataque de Atocha foi, por isso, “uma espécie de acordar para uma realidade que vinha a desenvolver-se muito lentamente, mas de forma efetiva”, esclarece António Horta Fernandes, especialista em Defesa e Segurança e professor da Universidade Nova de Lisboa.

É inegável a comparação que se pode estabelecer entre este ataque e o 11 de setembro nos Estados Unidos: ambos são atentados contra civis em grande escala, da autoria da Al-Qaeda. Por este motivo, desde 2001 que a União Europeia já vinha a adotar uma estratégia de combate ao terrorismo, mas só semanas depois do ataque em Madrid, é que adota sete objetivos estratégicos mais específicos e cria o cargo de Coordenador Europeu da Luta Contra o Terrorismo. 

Como explica António Horta Fernandes, apesar de ser, antes de mais, um problema de segurança interna, de cada país, “via-se que era um problema global”. “Os ataques aconteceram em Espanha, mas podiam ter acontecido noutro sítio qualquer da Europa”, afirma o especialista. A investigadora Joana Araújo Lopes, reforça que “nenhum país é imune a um ataque terrorista” e a sua difícil previsão é “uma realidade muito dura para quem trabalha em contraterrorismo”, porque “o risco está sempre presente”

Os atentados levaram a um “reforço gigantesco de segurança e de atenção ao terrorismo, não do ponto de vista da guerra, mas do ponto de vista policial e da defesa das comunidades”. 

No que toca à prevenção de futuros ataques terroristas, o especialista da Universidade Nova de Lisboa explica que as operações são sempre feitas “nos bastidores” e pouco se sabe sobre elas. No campo financeiro, supervisionam-se algumas transferências mais suspeitas que possam estar a “alimentar o apoio financeiro ao terrorismo”, vigiam-se plataformas como a dark web, etc… Ainda assim, tanto Joana Araújo Lopes como António Horta Fernandes sublinham o papel decisivo da cooperação internacional e dos serviços de informação dos vários países uma vez que “o terrorismo de natureza islâmica é transfronteiriço e, por isso, o seu combate também o deve ser.”

Do outro lado da fronteira

Madrid está a 600 quilómetros da capital portuguesa. Espanha é o único país que partilha fronteiras com Portugal e por isso, “aquilo que lá acontece em matéria de segurança suscita preocupação e algumas atenções” em território luso, conta Diogo Noivo. 

Contudo, em Portugal, a ameaça terrorista é avaliada com base na evolução das principais tendências a nível europeu e internacional. Em 2004, na altura dos atentados, não existia uma grande comunidade muçulmana a viver em território português e a que havia, segundo António Horta Fernandes, estava “muito mais circunscrita à comunidade islâmica de Lisboa – comunidades integradas, sobretudo provenientes ou com raízes na África Oriental, em Moçambique, e isso dava algum descanso às autoridades portuguesas”. 

Ainda assim, a tragédia espanhola obrigou a revisão dos protocolos, à procura de informações cruzadas sobre os cidadãos de origem muçulmana, que frequentavam o espaço comunitário e que pudessem ter ligações com radicalismos. O atentado no país vizinho trouxe também, segundo o especialista, um olhar de “desconfiança” sobre os imigrantes muçulmanos.

Foto: Flickr

20 anos depois, a 11 de março, celebra-se o Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo em honra de todas as vítimas dos atentados. Apesar de todo o processo judicial estar finalizado e de os responsáveis terem sido punidos, o 11 de março não ficou esquecido na memória dos espanhóis. Segundo a investigadora Joana Araújo Lopes, a data “ainda é um fator disruptivo para a sociedade espanhola” pela memória e trauma das vítimas.

Editado por Filipa Silva