A Worldcoin é uma criptomoeda recente que já conta com 300 mil registos em Portugal. O JPN entrevistou alguns utilizadores e especialistas para compreender o impacto da nova moeda digital.

São três e meia da tarde de uma segunda-feira e há uma fila longa no shopping Via Catarina, no Porto, apontada ao quiosque da Worldcoin. Dezenas de pessoas estão à espera para proceder a um registo biométrico previamente marcado na aplicação “World App”.

André Cuint é um dos utilizadores em espera. Ao JPN, contou que teve conhecimento da aplicação no ano passado através de um amigo e que esperou “para ver o que acontecia na aplicação do [amigo] para depois a instalar”. “Se acontecer de lucrar alguma coisa, tudo bem, senão, tranquilo. Não tenho medo, porque a identificação das pessoas o Governo já a tem”, afirmou.

Sobre a contrapartida financeira dada pela empresa para o registo da íris dos utilizadores registados, André Cuint admite que acha “estranho”, porque não há dinheiro “gratuito”. Para o jovem, “alguma coisa” a empresa “deve ter para benefício”, mas imagina que tal se enquadre na “evolução da inteligência artificial”.

Também Paulo Soares, de 28 anos, se inscreveu para fazer o registo biométrico. As razões que o motivaram estão relacionadas  com o facto de estar desempregado e de ter tido conhecimento de que havia pessoas a ganhar “entre 75 e 150 euros”. “Vou começar a trabalhar, mas agora [o dinheiro] faz-me falta”, disse ao JPN. Paulo Soares diz ter receios em relação ao método de registo da Worldcoin: “é muito estranho darem dinheiro de borla. Não confio a 100%”, admitiu. Ainda assim, decidiu arriscar.

Vítor Silva, de 47 anos, conheceu a aplicação através “de um sobrinho”, mas admite ainda não saber muito sobre o processo associado à instalação da aplicação. “Ele disse-me que recebo dinheiro com isso”, afirmou, dizendo que não tem receio de que usem os seus dados para outros fins.

“Disseram-me que ganhava 10 [cripto]moedas com o registo. A moeda está a subir a cada dia. Neste momento, já recebemos 91 euros”, referiu Rúben Silva, de 30 anos. O facto de um dos criadores do ChatGPT estar também ligado à criação da moeda digital Worldcoin deixou-o menos preocupado, com a certeza de que se trata apenas de “evolução tecnológica”.

O que é a Worldcoin?

A Worldcoin é um tipo de criptomoeda, sendo que um dos cofundadores é Sam Altman, fundador da OpenAI e criador do ChatGPT. A particularidade desta nova moeda digital é que, para ter acesso à mesma, é necessário partilhar os respetivos dados biométricos. Segundo o site oficial da Worldcoin, o objetivo da moeda é “proporcionar o acesso universal à economia global, independentemente do país ou da origem, estabelecendo um lugar para todos beneficiarmos da era da Inteligência Artificial (IA) “. A finalidade da empresa é conceber a maior rede financeira e de identidade humana do mundo a nível digital.

Para proceder ao registo na aplicação “World App”, cada utilizador deve fazer uma marcação prévia para o fazer num dos 22 quiosques da Worldcoin espalhados por todo o país. Nessa marcação, cada pessoa escolhe a loja que fica mais próxima da sua localização e seleciona a data e o horário pretendidos.

Pedro Trincão Marques é Gestor de Operações da Worldcoin a nível europeu. D.R.

Já nos quiosques, o utilizador deve olhar fixamente para uma das esferas ou dispositivos metálicos, intitulados de Orbs, que efetuam uma validação da condição humana do utilizador. Em entrevista ao JPN, Pedro Marques, gestor de operações da Worldcoin a nível europeu, explicou que esta análise ocorre com “base nas características da cara e na temperatura do corpo, por exemplo“, através das quais, a Orb “consegue perceber se aquilo que está à sua frente é um ser humano vivo ou não”. Pedro Marques adianta ainda que não é possível autenticar as pessoas através de fotografias.

O passo seguinte consiste em fotografar mais duas vezes e de uma forma mais completa a íris. Essas fotografias são depois decompostas e transformadas num código numérico, chamado “código da íris”. As imagens, segundo o gestor, são imediatamente apagadas por defeito: “Não guardamos nenhuma imagem das pessoas, isso não acontece”, reforçou.

Pedro Marques esclareceu ao JPN que este sistema é “completamente anónimo e que salvaguarda a privacidade das pessoas” e permite perceber, ao mesmo tempo, se a pessoa já se encontra ou não registada, sendo esse o grande objetivo do registo biométrico, segundo afirma: impedir que a mesma pessoa se registe duas vezes. “A pessoa entra na rede da Worldcoin e é emitido o seu WorldID”, explicou.

Terminado o registo, o utilizador recebe 10 tokens que, atualmente, correspondem a cerca de 80 euros, podendo haver variações do preço da moeda por estar dependente “da forma como o mercado a valoriza”. Posteriormente, de duas em duas semanas, recebe três moedas.

Segundo Pedro Marques, o projeto entrou em fase de experimentação em 2021. Nessa altura, foram feitos vários testes em diferentes partes do mundo para perceber qual a adesão por parte do público. Portugal foi um dos primeiros locais escolhidos para fazer esses testes.

O gestor de operações acrescenta ainda que “desde a conceção do projeto”, a empresa tem colaborado com os reguladores e com as entidades governamentais.

Atualmente, cerca de 300 mil pessoas em Portugal já se registaram na “World App”. A nível mundial, os países onde a Worldcoin já está presente são Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Quénia, Nigéria, Argentina e Coreia do Sul. Ao todo, os dados de registo apontam, globalmente, para 700 mil utilizadores.

Problemas associados à moeda digital

Rolando Martins faz parte do Departamento de Ciências dos Computadores da FCUP e do Centro de Cibersegurança e Privacidade.

Ao JPN, Rolando Martins, professor assistente no departamento de Ciências de Computadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e investigador sénior no Centro de Cibersegurança e Privacidade, explicou que o maior problema associado à autenticação na “World App”, através dos dados biométricos, é que as pessoas que o fazem “nunca mais vão poder usar de uma maneira confiável os dados de biometria para autenticação”.

Apesar das garantias de segurança dadas pela empresa, o investigador levanta preocupações. “Há um problema qualquer e eles até podem dizer que a plataforma é muito segura. Eu não sei, porque não consegui ter acesso a como é que eles fazem as coisas. Ninguém teve acesso“, disse. A segurança das blockchains, tecnologia usada para armazenar os dados dos utilizadores, é baseada no princípio da imutabilidade dos dados, onde as informações adicionadas são permanentes e nunca podem ser alteradas ou removidas, explicou.

No entanto, para o catedrático, isso levanta sérias dúvidas sobre a integridade e a segurança dos dados armazenados na plataforma sendo que, “porventura, daqui a uns anos vamos ter os dados da nossa biometria expostos”, garantiu.

Impressão digital versus leitura biométrica

A leitura biométrica não é algo novo. No entanto, o professor universitário explica que esta difere da leitura dos dados realizada através da entrada no telemóvel. “Somos nós próprios que fazemos a recolha e os telemóveis têm um componente seguro que guarda esta informação. Nem nós conseguimos aceder [às informações] da biometria”, disse.

A impressão digital era considerada como o método mais preciso de reconhecimento de cada indivíduo. O método biométrico é “uma ou duas ordens de precisão acima da impressão digital”, acrescentou Rolando Martins. Inicialmente, havia uma exigência por parte dos fornecedores para que os sensores de impressão digital tivessem o máximo de precisão possível de modo a identificar uma pessoa de forma única, mas a General Data Protection Regulation (GDPR) seguiu um rumo diferente. O “entendimento a que se chegou é que não deveríamos ter todos os dados biométricos recolhidos”, revelou o professor. “Em vez de termos uma precisão máxima, baixamos a precisão e, em vez de recolhermos 10 pontos, vamos recolher cinco. Em vez de haver um match de um para um, vão ter um match de um para vários”, sublinhou.

Em entrevista ao JPN, o professor falou ainda sobre a posição de Portugal em relação aos dados biométricos. “Em Portugal, estamos bastante à frente nisso. Já temos, por exemplo, o cartão de cidadão que já não é só um elemento identificativo. Conseguimos fazer assinaturas digitais e comprovar uma série de coisas”, afirmou. O investigador salientou o ambiente controlado em que essa recolha de dados acontece, como isso a distingue da recolha feita aquando da autenticação na aplicação da moeda digital: “Temos de ir a uma loja de cidadão, a uma conservatória, para conseguirmos fazer aquilo. Já tem regras deontológicas. Já há uma hierarquia e é público“.

Rolando Martins mostrou-se ainda preocupado em relação à centralização desses dados nas mãos de empresas privadas. “Em nenhuma parte de Portugal e da União Europeia, se discutiu que todo o controlo sobre a biometria, e mesmo a descrição de cidadão dos vários países, seja feita por uma empresa privada”, disse. O professor atenta que, se houver uma fuga da informação no sistema, tudo vai ficar exposto.

A Worldcoin está presente em Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Quênia, Nigéria, Argentina e Coreia do Sul. Foto: Margarida Rodrigues/JPN

O que são criptomoedas?

Segundo Fábio Duarte, professor auxiliar da Faculdade de Economia do Porto (FEP), as criptomoedas podem ser entendidas como formas de moeda digital que usam a criptografia para garantir transações seguras e controlar a criação de novas unidades de transação.

O mercado das criptomoedas funciona como um “ecossistema digital onde diversas moedas digitais são compradas, vendidas e negociadas através de plataformas online (Exchanges)”, explicou. O registo das transações e a manutenção da integridade da rede são asseguradas por “mineradores que são recompensados com novas unidades de criptomoedas pela validação das transações e processamento da informação”.

São os utilizadores que geram e armazenam as suas próprias criptomoedas, naquilo que são chamadas carteiras digitais (ou wallets, em inglês).

Relativamente à volatilidade das criptomoedas, Fábio Duarte explicou que pode ser justificada por fatores comuns ao mercado tradicional, tais como “a regulação, a liquidez do mercado, eventos legais, sociais e/ou macroeconómicos” e a especulação, à qual o mercado se tem vindo a revelar altamente suscetível.

O docente admite que existem “riscos associados à utilização das criptomoedas, nomeadamente na forma de ativos de investimento”. Contudo, devido à falta de conhecimento sobre a regulamentação e de confiança por parte dos utilizadores, o “recurso às criptomoedas nas suas variadas funções” tem sido mais escasso, restringindo, assim, o desenvolvimento do mercado.

Apesar de fazer parte da família das moedas digitais, existe ainda pouca informação sobre a Worldcoin e o seu funcionamento. Após o registo dos dados biométricos, tal como Fábio Duarte esclareceu ao JPN, “este projeto de criptomoeda” pode ser usado como “moeda digital para pagamento de bens e serviços, trocado por moeda tradicional, negociado nos mercados de criptomoedas, ou usado na forma de cripto ativo”.

A Worldcoin não foi ainda autorizada nos Estados Unidos, assim como noutras regiões do mundo, o que, segundo Fábio Duarte, “pode ser entendido enquanto sinal sobre a capacidade deste projeto para alcançar os seus objetivos”. Diferente do que acontece com a Bitcoin, “o projeto de governação económico e social da Worldcoin ‘parece’ querer envolver toda a sociedade e os seus agentes tradicionais, incluindo autoridades de poder central”.

Não obstante, o catedrático da Faculdade de Economia sublinhou a importância do acompanhamento dos alertas publicados pelo “Financial Times” e, em Portugal, pela Deco Proteste, relacionados com questões éticas, de segurança e do impacto do valor desta moeda e da sua utilização: “O modelo de governança socioeconómico da Worldcoin, que parece revestido de muitas particularidades, vem por isso lançar mais dúvidas sobre estes temas e reforçar a necessidade de envolver a comunidade académica no seu estudo”.

Suspensão da Worldcoin em Espanha

No dia 6 de março, a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) anunciou a suspensão do uso da Worldcoin em Espanha. Caso a empresa não o faça, vai ter de pagar uma multa de mais de 20 milhões de euros. O JPN tentou contactar a Agência Espanhola de Proteção de Dados, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) está a realizar uma investigação à Worldcoin. Ao JPN, a CNPD disse não querer prestar declarações sobre a Worldcoin, já que a investigação ainda está a decorrer. Num comunicado, a CNPD aconselhou os cidadãos a “ponderarem muito bem a cedência dos seus dados biométricos” e a fazer uma leitura prévia e cuidadosa da “informação relativa ao tratamento de dados pessoais disponibilizada no website do projeto“.

Editado por Inês Pinto Pereira