Este ano, o Dia Mundial da Terra, assinalado esta quarta-feira (22), celebra-se com o ar mais puro, mas não há quem julgue que a boa notícia veio para ficar. Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas, diz ao JPN que os cientistas estimam, até à data, uma redução de 5% das emissões de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera à escala global, comparativamente a 2019, mas a neutralidade carbónica continua distante. O geofísico explica o impacto da pandemia no clima e como a relação humana com o ambiente também contribuiu para a crise pandémica.

O professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) aponta que ainda não há estimativas da redução das emissões em Portugal, mas que “é provável que seja algo comparável a esse valor [5%], talvez um pouco mais”. Apesar de considerar que “ainda é cedo” para prever os valores portugueses, o especialista aponta os dados registados no mês de março na China – muito inferiores aos dos anos anteriores. Assim, embora veja as reduções das emissões com “uma incerteza considerável”, Filipe Duarte Santos garante que “vai haver uma redução significativa” ao nível global.

Traça, então, uma comparação de grande escala com “todas as crises passadas desde 1900”, concluindo que estamos perante “algo significativo”. “A redução das transmissões de dióxido de carbono devido à COVID-19 vai ser superior à redução que houve na crise da pandemia da gripe espanhola, na I Guerra Mundial, na II Guerra Mundial e também na crise financeira e económica de 2008/09”, prevê Filipe Duarte Santos.

Mesmo assim, garante o professor, estamos perante “um efeito muitíssimo pequeno” sobre o clima. Filipe Duarte Santos começa por explicar que “aquilo que determina a alteração do clima são as concentrações na atmosfera dos gases com efeito de estufa”. Estes gases são transmitidos pela combustão do carvão, do petróleo e do gás natural. O especialista reflete que “há 500 anos, a concentração do dióxido de carbono era muito mais baixa no mundo do que é atualmente – cerca de 45% mais baixa” e que aumentou “desde a revolução industrial” com a descoberta e exploração dos combustíveis fósseis.

Filipe Duarte Santos assegura que “a única maneira que temos de controlar as alterações climáticas é diminuir esta concentração”. Neste sentido, acrescenta que “em lugar de reduzir as emissões em 5%, era necessário reduzir todos os anos 6%, para conseguir cumprir o Acordo de Paris”. Intitula-o de “um desafio enorme”, mas admite que “só assim é que a certa altura se chega a emissões praticamente nulas”. Ou seja, à neutralidade carbónica, um dos objetivos da União Europeia para 2050.

A economia e o ambiente têm de recuperar em conjunto

Assim, o professor alerta que a “redução de 5% não vem resolver o problema porque, previsivelmente, com a recuperação económica, vai haver um aumento novamente das emissões em 2021 e depois em 2022, e por aí fora”. Ou seja, o cumprimento do Acordo de Paris continua comprometido: “As metas do Acordo de Paris não estão a ser cumpridas pelo facto de termos a pandemia”, ressalva.

A razão está nos hábitos de consumo perpetuados “desde 1970” e que vão ser retomados em breve. “Estamos com este problema porque 80% das fontes primárias de energia a nível global são combustíveis fósseis, são carvão, petróleo e gás natural”. Filipe Duarte Santos relembra que “apesar de todas as negociações, apesar de tudo o que se fez”, “não há qualquer espécie de sinal” de mudança na dependência humana dos combustíveis fósseis. No mundo, estas fontes representam 80% do consumo e em Portugal “mais de 70%” – valores que pouco oscilaram em meio século.

Para remediar a dependência dos combustíveis fósseis, o catedrático da FCUL apela a uma “transição energética”, baseada no investimento em energias renováveis. Embora compreenda que “agora a prioridade é relançar a economia”, realça a necessidade desta recuperação económica ser “o mais compatível possível com os objetivos de desenvolvimento sustentável, entre os quais está a ação climática”.

No entanto, esta preocupação é, como as emissões, de carácter global, e Filipe Duarte Santos não vê garantias. “Penso que na União Europeia haverá um esforço nesse sentido e em particular por causa do pacto ecológico verde, mas noutras regiões do mundo, como nos Estados Unidos, não há qualquer sinal de que se vá dar, com o governo atual, em virtude desta crise, maior importância às questões ambientais”, compara.

A responsabilidade é coletiva, mas depende “da clarividência das pessoas, da capacidade dos meios de comunicação social de informarem quais são as consequências de seguir um caminho ou o outro, e de quão motivados os cidadãos estão para o desenvolvimento sustentável”, alerta o especialista. Diz ser um “desafio gigante” mas “possível” de concretizar com “uma grande vontade política dos cidadãos”. “Não são os governos que vão resolver o problema, são os cidadãos fazendo pressão sobre os governos e sobre o sistema energético que nós temos a nível mundial”, conclui.

A destruição da biosfera está relacionada com a transmissão de vírus de animais para humanos

O geofísico diz ser “muito difícil prever” se a crise que se vive vai virar as atenções para a necessidade de energias limpas e mudar os hábitos de consumo individuais; e alerta para a “fragilidade do sistema civilizacional”. “Ninguém previu o que se passou, e a rapidez com que se passou. E ninguém sabe ainda quanto tempo é que vamos levar até atingir a normalidade”, reflete sobre o panorama atual.

Contudo, esclarece que o vírus é uma zoonose [provém de um animal] e que está cientificamente provado que “as zoonoses no mundo são cada vez mais frequentes: é o caso do Ébola, do HIV, do SARS“. São resultado de uma série de comportamentos nocivos. “Acontece porque a Humanidade está a destruir a integridade da biosfera: as florestas estão a ser destruídas; o contacto com os animais selvagens é muito maior”, explica.

Filipe Duarte Santos oferece dois exemplos do consumo inconsciente de animais selvagens. “Em África, há cada vez mais pessoas, muitas delas com fome, que comem animais selvagens e isso tem um risco muito grande. Na China existe um mercado de animais vivos que teve a sua origem no período da Grande Marcha. Numa situação de grande pobreza e depois de anos de colonialismo e imperialismo ocidental, os chineses, sem terem mais alimentos, comiam animais selvagens e isso tornou-se um hábito. E, portanto, continua a acontecer com consequências gravíssimas como todos estamos a ver”, conta.

Acredita que a crise atual mostra o quanto a Humanidade depende do ambiente e que a sua subvalorização e degradação têm consequências graves. “Penso que muitas pessoas notaram que nas cidades a atmosfera está muito menos poluída. Isso nota-se por exemplo em Lisboa: agora, passear na Avenida da Liberdade é um prazer, mas no passado não era, havia poluição muito significativa. Há outros casos mais graves na Europa, e sobretudo na Ásia – na Índia e na China, onde a poluição atmosférica causa centenas de mortes por ano“, confirma o especialista.

“Esta crise veio mostrar que podemos ter outra relação com o ambiente. E diz-se: ‘ah mas estamos numa crise económica profunda’. Bom, mas então devemos caminhar no sentido de termos uma melhor relação com o ambiente, mas termos uma economia a funcionar – e é exatamente isso que é o desenvolvimento sustentável”, conclui.