Em outubro de 2012, um dos quadros do pintor norte-americano Mark Rothko foi vandalizado no Tate Modern, a galeria de arte contemporânea do museu Tate, em Londres. Rachel Barker foi uma das conservadoras de arte à frente da recuperação de “Black on Maroon” durante 18 meses. Esta semana está no Porto a dar um workshop de dois dias no Museu da Misericórdia do Porto.
Em 2014, o quadro de Rothko voltou às paredes do Tate e com ele veio também o arrependimento do artista que vandalizou o quadro. Vladimir Umanets condenado a dois anos de prisão, tinha após o crime reclamado o sentido do ato, afirmando que “a arte permite colocar uma nova mensagem”. Após o cumprimento da sentença, Umanets pediu desculpa.
O JPN falou com a conservadora, que trabalha desde 1999 no Tate e cuja área de especialização é a pintura moderna e contemporânea.
Na pintura, que é área de intervenção da Rachel, quão importante é o trabalho de um conservador?
É muito importante para as obras dos artistas sobreviverem no futuro. Especialmente, se tiveremos em conta que muitos artistas utilizam materiais efémeros e temporais. Se é suposto os trabalhos artísticos sobreviverem até 100 anos ou mais, tem de haver treino de conservadores especializados. O trabalho de um conservador é muito importante na preservação da herança cultural, sejam aqueles que estão a trabalhar em museus ou ao abrigo de certas instituições. Claro está, que eu vou defender o meu trabalho e a minha experiência enquanto conservadora (ri-se).
Quando a Rachel viajou para Beirute, para intervir em várias obras da pintora Saloua Raouda Choucair, disse que era necessário criar uma relação de envolvimento com o artista. Porque que é que é necessário?
É muito necessário especialmente se o artista não usar materiais tão convencionais. Temos de tentar recriar as técnicas que o artista utilizou numa determinada obra. É muito importante fazer uma pesquisa intensiva, antes sequer de tocar nas obras, para conhecermos a obra por completo. Se um conservador fizer intervenções químicas num objeto, é relevante conhecer a natureza física da obra em que está a trabalhar.
Entrevistar o artista seria o primeiro passo do protocolo, mas caso o artista já tenha morrido – como o Mark Rotho –, o ideal é fazer uma recolha de literatura, de tudo o que já foi escrito sobre aquela pessoa. Tem-se mesmo de entrar na mente do artista para conseguir um tratamento de conservação adequado e ético.
Quando o artista está vivo é fácil agradar e corresponder às suas expectativas?
Não, não é. Mas eu deixo claro ao artista de que estou ali para “gravar” informações, de forma a que os investigadores no futuro possam compreender totalmente o trabalho. Por vezes, os artistas perguntam aos conservadores se podem mudar certos aspetos. Perguntam, por exemplo, passados 50 anos: “E se eu tivesse pintado aquela pessoa com um chapéu…Posso pintar agora?”. Obviamente, eu tenho de dizer que não. Se o artista acrescentasse alguma coisa num quadro feito há 50 anos, aquela obra tornar-se-ia um quadro diferente. Os artistas têm uma enorme dificuldade em entender isso, porque é o trabalho deles, no entanto agora está na posse de uma instituição pública. O nosso trabalho é conservar os objetos dentro dos mesmos parâmetros, com os quais foram adquiridos.
Há alguns riscos na conservação dos quadros? É possível danificá-los ainda mais, quando a intenção era “salvá-los”?
É uma quantidade tão grande de pesquisa, ainda antes de tocar no objeto, que as hipóteses de danificar alguma coisa são mínimas. Os conservadores de arte criam muitos exemplos da obra original e testámos aí todo o tipo de técnicas, ou seja, poucos testes são efetuados no autêntico. É muito raro, um conservador de arte estragar uma pintura. Se alguma vez acontecer, será uma área muito mínima que pode facilmente ser recuperada.
A conservação de arte pode ser um trabalho quase científico, de tão metódico que é. Há lugar para a emoção neste tipo de trabalhos?
Eu fico extremamente emocionada e ligada aos “meus” objetos. Eles tornam-se meus, são como se fossem meus filhos. Eu passo imenso tempo com estes objetos e torno-me bastante íntima das obras. Entro na mente do artista e compreendo a sua mão, a sua abordagem e a sua sabedoria. Portanto, acaba-se por se formar uma relação emocional com os objetos. Eu fico muito triste quando termina o meu trabalho de conservação.
Ao trabalhar na intervenção do quadro de Mark Rothko durante dois anos, quando ele saiu do estúdio, eu senti que a obra estava de volta ao mundo cruel, onde está novamente vulnerável. Quando está ao meu cuidado (no estúdio) está seguro, confortável e protegido por mim. Depois volta às paredes do museu, que é onde deve estar, deve ser visto e sentido pelo público. Eu retiro uma grande felicidade desses momentos — quando vejo um quadro a ser apreciado. No entanto, eu sinto que o objeto é meu, portanto é difícil vê-los sair.
O trabalho de uma conservador de arte é isolado ou é de equipa?
No Tate, eu trabalho com uma equipa de vários especialistas, muito capacitados. Sou uma de nove conservadores a trabalhar na área da pintura. Alguns de nós são especializados em conservação histórica, outros já estão mais ligados à conservação contemporânea. Toda a gente no departamento de pintura tem conhecimentos muito especializados, ainda antes de entrar no Tate já os tinham. O que é muito bom tendo em conta que o Tate é considerado uma das melhores instituições na conservação.
Quando um quadro como “Black on Maroon”, de Mark Rothko, é danificado e vandalizado, como é que uma conservador de arte se sente?
Horrificado e triste. Mas ao mesmo tempo, desafiado. Quando isso aconteceu, eu sabia que estava treinada e preparada para fazer o trabalho e foi um enorme privilégio passar tanto tempo com uma pintura de Mark Rothko. Obviamente, eu desejava que o vandalismo nunca tivesse acontecido. É muito triste a situação e o quadro ficará permanentemente danificado, embora eu tenha “escondido” o estrago, da melhor forma que eu podia. Agora, aquele quadro pode ser apreciado por todos, como deve ser.
Porém, a tinta que foi utilizada no graffitti penetrou toda as camadas da pintura e foi até à parte de trás da tela. Ainda é possível ver esta tinta através de certas fontes de luz. Muitas pessoas perguntaram-me: “Sente-se confortável a remover este graffitti? Não sente que agora já faz parte da história do quadro?”. Eu acredito firmemente que aquela tinta é como uma ferida. Aquele quadro faz parte de uma série de nove quadros. Danificar um único quadro daquele grupo é uma rutura naquilo que Rothko estava a tentar criar.
A Rachel sentiu uma grande responsabilidade quando assumiu a recuperação do trabalho de Mark Rothko?
Eu senti uma grande pressão e senti-a dentro da profissão. Há conservadores nos Estados Unidos que restauraram imensos quadros e claro, eles estavam atentos ao que eu iria fazer. “O que será que a rapariga inglesa irá fazer com esta bela pintura norte-americana?”. No entanto, um colóquio de especialistas que sabem tudo sobre Rothko aconteceu no Tate e eles acabaram por ser um guia no meu trabalho. Eu sempre me senti segura. Tive a oportunidade de debater este quadro com pessoas que sabiam muito sobre o artista. Muito mais do que eu.
Além deste trabalho, que outros marcaram a sua carreira?
Eu acho que o trabalho mais desafiante no qual participei foi um da Agnes Martin. É um quadro belo de 1965, intitulado “Morning” (“Manhã”). Eu sou uma fã incondicional do trabalho dela. Foi a tarefa mais gratificante de sempre, a de restaurar um quadro belíssimo. Embora eu tenha apreciado o trabalho de Rothko, foi um desafio muito diferente. Olhar e apreciar um quadro de Agnes Martin durante seis meses foi um momento alto da minha carreira.