O que é que têm em comum populações da “África do Sul às Filipinas, e da Hungria à Jordânia”? Enquanto o SARS-CoV-2 é o centro das atenções, atentados aos direitos humanos proliferam nos vários continentes, “legitimados” pela excecionalidade vivida um pouco por todo o mundo. Nomear todos os casos não é viável, mas a Organização das Nações Unidas (ONU) destaca alguns.

Em Geneva, na segunda-feira (27), a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos advertiu os estados: as medidas extraordinárias, bem como o decreto do estado de emergência “não deviam ser uma arma usada pelos governos para esmagar dissidência, controlar a população ou perpetuar a estada no poder”.

“Disparar, prender ou abusar de alguém que tenha rompido o confinamento porque procura comida, desesperadamente” e “dificultar ou tornar perigosa a deslocação das mulheres a hospitais, para darem à luz” é “inaceitável e ilegal”, sublinha Michelle Bachelet. “Em alguns casos, há pessoas a morrer devido à aplicação inapropriada de medidas que, supostamente, foram impostas para as salvar”, alerta.

A ONU investiga denúncias contra autoridades e forças de segurança, por “homicídios, violações, ameaças de disparo de armas de fogo e corrupção”, segundo avançado por Georgette Gagnon, que dirige as operações no terreno. Citada pela ONU News, a responsável lista o emprego de “balas de borracha, gás lacrimogéneo, armas de água e chicotes”, para impôr o distanciamento nas filas de supermercados.

De acordo com o gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), até agora, já 80 países decretaram o estado de emergência. Quaisquer que sejam as restrições impostas, “o direito à vida, a proibição de tortura e outras formas de maus tratos e o direito a não ser detido arbitrariamente” são inderrogáveis. Além disso, é “fundamental” proteger “direitos económicos, sociais e culturais, assim como civis e políticos”.

O documento de apoio preparado pelo gabinete do ACNUDH designa os princípios “da legalidade, necessidade, proporção e não discriminação”, que devem ser acautelados pelos estados, aquando da tomada e aplicação dos poderes de emergência. As restrições são temporárias e devem ser levantadas logo que possível.

Todavia, na Hungria, o primeiro-ministro aprovou um conjunto de leis no quadro de combate à pandemia, que lhe conferem poderes extraordinários, por tempo ilimitado. Os poderes aprovados em sede parlamentar no final de março, permitem que Viktor Órban governe por decreto e com maioria absoluta, o facto gerou preocupações em Bruxelas.

Além das várias salvaguardas, o guia do ACNUDH nota que as obrigações do estado relacionadas com o “direito à alimentação, saúde, habitação, proteção social, água e saneamento, educação e a um padrão de vida adequado continuam em vigor, mesmo em situações de emergência”. Os estados devem apoiar os cidadãos, para que estes possam cumprir as medidas impostas.

No Brasil, mais de 13 milhões de pessoas vivem nas favelas sobrelotadas, impossibilitadas de seguirem as recomendações higiénicas e de desinfeção, de isolamento ou teletrabalho. Segundo o portal do Governo Federal brasileiro, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) já recebeu mais de 7 mil denúncias de violações de direitos humanos, relacionadas com o novo coronavírus. 

A “pandemia tem exposto questões estruturais”, como racismo e xenofobia – “que já existem em muitos países, há muito tempo” -, mas que se têm agravado. O “apontar o dedo” a várias pessoas de descendência asiática, estrangeiros ou migrantes preocupa o ACNUDH.

Abordagem severa e excessiva das forças de segurança

Os principais alvos são os “segmentos mais pobres e vulneráveis da população”. Apesar das autoridades só estarem legitimadas a recorrer à força quando “estritamente necessário” e à força letal se existir “risco de vida iminente”, várias têm sido as denúncias de incidentes contrários.

No Quénia, a polícia matou uma criança de 13 anos a tiro, que brincava na varanda, e não em casa. As autoridades têm controlado os telemóveis dos suspeitos de infeção por COVID-19, de forma a forçarem o isolamento obrigatório de 14 dias, segundo fonte oficial citada pela BBC. Além disso, 23 pessoas foram detidas por permanecerem num “abrigo” para jovens da comunidade LBGT, de acordo com a Human Rights Watch, citada no mesmo artigo.

Com a chegada da pandemia a Abyei, entre o Sudão e o Sudão do Sul, as tensões aumentam no território disputado, como reportou na terça-feira (28) Jean-Pierre Lacroix, subsecretário-geral da ONU para Operações de Paz. Os esforços do país para impedir a propagação da COVID-19 estão a atrasar a chegada de novas unidades da Polícia das Nações Unidas a Abyei à região fronteiriça.

Detenções são “último recurso”

O guia lançado alerta que “privar as pessoas da sua liberdade” deve ser um “último recurso”. Há estados que definem de forma “vaga” e “pouco explícita” aquilo que é considerado ofensa e a consecutiva aplicação de penas. As várias detenções (por não se cumprir o confinamento, por exemplo), conduzem ao congestionamento das prisões.

As penas devem ser “proporcionais” às ofensas cometidas e ter em consideração “circunstâncias individuais”, nomeadamente impactos específicos do género, situações de desemprego, ou outros privados de rendimento pelas medidas de emergência.

Segundo reportado pela ONU News, há um mês, já 17 mil pessoas teriam sido presas, na África do Sul, por incumprimento das restrições impostas. Na Jordânia, estima-se que a média diária chegue às 800 detenções.

Nas Filipinas, a “resposta altamente militarizada” das autoridades levou à detenção de 120 mil pessoas, por violarem o recolher obrigatório. No Sri Lanka, os números ultrapassam os 26 mil. Na América Latina, em El Salvador, há também registos de abuso de força em San Salvador.

Pessoas presas são alinhadas durante uma operação das forças de segurança na prisão de Izalco, em San Salvador. FONTE: Gabinete de Imprensa da Presidência de El Salvador, via Associated Press (AP).

Recusa de acolhimento e regresso forçado

Vários têm sido os incidentes de repatriamentos forçados, ou em que o asilo é negado aos migrantes. Nos Estados Unidos – apesar de o gabinete do ACNUDH destacar preocupações semelhantes em contexto europeu -, a vários migrantes no terreno foi recusado asilo, a fim de prevenir a disseminação do novo coronavírus. 

Cerca de 500 pessoas dos campos de refugiados do Bangladesh, que tentavam chegar à Malásia, foram abandonadas à fome e aos maus tratos, durante dois meses no mar. Negado o desembarque na Malásia, os cerca 400 sobreviventes acabaram por ser resgatados pela guarda-costeira do Bangladesh, há duas semanas. 

Cerca de 860 mil refugiados Rohingya permanecem no maior campo de refugiados do mundo, em Bazar de Cox, no Bangladesh. As pessoas temem que a chegada das chuvas de monção venha agravar a situação, já que o bloqueio imposto pelo governo não permite que sejam tomadas todas as medidas de prevenção. Michelle Bachelet antevê uma “tragédia humana de proporções terríveis”, caso não sejam tomadas medidas para socorrer os refugiados Rohingya.

No início de março, o primeiro-ministro grego suspendeu os pedidos de asilo, contrariando a legislação europeia e a Convenção de Genebra -, depois de a Turquia ter aberto as fronteiras. Milhares de pessoas que tentaram chegar à Grécia ficaram retidas na fronteira, em Evros. O governo grego reforçou o controlo fronteiriço e registaram-se práticas de violência da polícia grega, contra os migrantes.

Livre acesso à informação (verdadeira)

A “informação falsa sobre a COVID-19 representa um enorme risco para as pessoas”, pelo que combatê-la torna-se ainda mais importante. Michelle Bachelet sublinha que “minar direitos como a liberdade de expressão pode causar danos incalculáveis nos esforços para conter a COVID-19 e os seus efeitos colaterais sócio-económicos”. 

Algumas das medidas podem ser usadas “para amordaçar os media e deter críticos e oponentes”, alerta a alta comissária e ex-presidente do Chile. É o caso da China: o gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos tem recebido “relatórios de censura ‘off e online’” e de “intimidação, captura e aparente detenção de vozes dissidentes, como médicos e jornalistas”

O governo da Etiópia cortou o acesso à internet e redes telefónicas durante três meses em Oromia ocidental, onde decorria uma operação de insurgência contra o poder instituído. A rede de internet e as linhas telefónicas já foram restabelecidas, a 31 de março, depois de vários grupos terem feito pressão junto do governo. Mas até então milhões de pessoas ficaram sem acesso a informação em plena pandemia da COVID-19.

Há mais de uma semana, o presidente dos EUA sugeriu que a investigação científica em curso, na busca de uma solução para a COVID-19, explorasse os efeitos no corpo quer da irradiação com luz ultravioleta quer ainda do uso de desinfetantes. A sugestão de Donald Trump foi prontamente contestada pela comunidade médica e científica, que alertou para os perigos de qualquer comportamento deste género.

Se há países que tomam medidas racionais, exclusivamente para responder à pandemia, também existem “casos preocupantes, onde os governos parecem usar a COVID-19 como um disfarce para violar direitos humanos, restringir liberdades fundamentais e subverter a aplicação da lei”, afirma Michelle Bachelet.

A alta comissária apela a uma “supervisão dos poderes de emergência”, essencial no quadro democrático e legal. É preciso que haja um “escrutínio legislativo adequado”, para garantir que a “emergência de saúde pública” não caminha para um “desastre dos direitos humanos”, como já acontece em vários pontos do planeta.

Artigo editado por Filipa Silva