O conceito de Housing First teve início nos Estados Unidos da América e expressa a crença numa ordem de prioridades: para tirar alguém na rua é preciso dar-lhe “casa primeiro”, evitando que as pessoas em situação de sem-abrigo passem uma vida inteira a usufruir de soluções temporárias para no final, se tudo correr bem, conseguirem um teto fixo. Já na Europa, a Finlândia foi o primeiro país a adotar este tipo de abordagem, o que inspirou Portugal a fazer o mesmo: começou, assim, no ano de 2013 no bairro da Mouraria, em Lisboa, o sonho de tirar todos os sem-abrigo da rua. Com resultados tão positivos e uma taxa de sucesso acima dos 90%, o projeto ganhou asas e, atualmente, abrange toda a cidade de Lisboa.

Housing First chegou depois a Leiria pela mão de Lisete Cordeiro, diretora-geral da InPulsar, uma associação que contribui para a inclusão social e económica de populações vulneráveis. Miguel Xavier, presidente desta associação, explica que “tudo começou como um sonho, porque esta questão de atribuir uma casa a alguém era uma ideia complexa.” Sensibilizado o poder autárquico, foi possível implementar a “Morada Certa”, nome escolhido para o projeto nesta cidade.

Com início em janeiro deste ano, a iniciativa conta com uma taxa de sucesso de 100%, uma vez que nenhum dos quatro sem-abrigo já ajudados voltou para a rua: “estamos a falar de pessoas que viviam há mais de 30 anos na rua, e vivem agora na sua própria casa, com a sua cozinha, o seu quarto, a sua casa de banho, com tudo o que um ser humano deve ter.” Para Miguel Xavier, é “desumano” que em pleno século XXI a luta pelos direitos dos sem-abrigo ainda tenha de ser uma realidade, quando há cerca de 70 anos, o direito à habitação foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Historicamente, is centros de acolhimento são a solução mais comum, porém, na maioria dos casos, constituem uma não-solução; isto porque “as pessoas vão para os centros de acolhimento e depois para a rua, e da rua para os centros de acolhimento, o que acaba por ser um ciclo vicioso”, afirma o presidente da InPulsar. “Em termos económicos, pode parecer que é uma ideia mais económica, mas se pensarmos à escala, não é.”, conclui.

O método de funcionamento do “Morada Certa” distingue-se por identificar os sem-abrigo, dando especial atenção aos que se encontram numa situação crónica (ou seja, vivem há mais anos na rua), e conceder-lhes uma casa individual, sempre com o objetivo de estes não regressarem à rua. Dos 19 identificados, quatro já têm um lar ao qual podem “chamar seu.” Miguel esboça um sorriso de orgulho na instituição em que trabalha ao informar que são “o primeiro projeto a ser financiado por uma entidade privada”. Numa área onde o financiamento, tanto público como privado, é crucial, é fácil sentir frustração por ainda não terem sido reunidos os recursos suficientes para dar uma casa a todos os sem-abrigo leirienses. No entanto, a associação não descansa até conseguir fazê-lo: “o nosso desejo é que estas 15 pessoas passem o Natal nas suas casas.”

A dignidade humana está no topo das exigências desta equipa, que trabalha de modo a evitar a criação de “guetos”. Os beneficiários vivem em apartamentos “perfeitamente normais, em zonas urbanas”, pois a ideia é integrá-los na sociedade, onde os estereótipos em relação aos sem-abrigo é um problema estrutural: “existe aquela velha frase, que é ‘os sem-abrigo querem estar na rua’. Eu pergunto se alguém, no seu perfeito juízo, quer estar na rua. Claro que não! Acho que só um tonto é que pode dizer que estas pessoas não merecem esta resposta. Se calhar, temos muitos tontos na nossa sociedade”, desabafa em entrevista ao JPN.

Os membros da InPulsar defendem que estar na rua nunca se trata de uma escolha consciente. Trabalham há tanto tempo com grupos sociais marginalizados pela sociedade que sabem que, regra geral, os problemas psicológicos estão por detrás desta situação. Batem-lhes à porta histórias de vida trágicas, marcadas pelo sofrimento, mas os casos de sucesso ditam-lhes que o sofrimento pode ser um ponto de partida, não o destino. Jorge Cardinali é, segundo Miguel Xavier, o perfeito exemplo disto. Depois de meses consecutivos a viver num carro com os dois filhos e de perder a sua felicidade para a heroína, Cardinali faz, atualmente, parte dos quadros da InPulsar. 

“Fazer com que estas pessoas voltem a sonhar e a ter uma nova perspetiva da vida é, no fundo, o nosso grande objetivo. Não há ninguém que mereça viver na rua, não há ninguém que mereça viver sem comida, não há criança que mereça não poder ir à escola. Queremos que as pessoas voltem a acreditar nelas próprias, que é possível ter uma vida feliz, ter objetivos, que é possível ter uma vida digna.” – É esta motivação que leva Miguel Xavier a levantar-se todos os dias, com energia e entusiasmo, para o trabalho. Sabe que está a fazer a diferença, e isso basta-lhe. Chega até a dizer que é um “prazer imenso.” O que lhe dão em troca são os sorrisos partilhados: de um lado, o sorriso de Miguel, por saber que deu o seu melhor para ajudar quem mais precisava; e do outro, o sorriso daqueles que, graças à Housing First, vivem uma vida que vale a pena viver.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online