O movimento da sociedade civil do Príncipe que critica o estado de paralisia da Ilha, que potencia a escassez e elevados custos dos bens de primeira necessidade, reuniu-se com o Presidente do Governo da Região Autónoma, Filipe Nascimento, no dia 18 de fevereiro. A reunião contemplou a entrega de duas cartas abertas de protestos ao governador da ilha, e outras três cartas endereçadas às autoridades do Estado santomense, nomeadamente, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, e o primeiro-ministro.

As deficitárias condições de circulação, aliadas ao elevado custo das ligações entre a região autónoma e São Tomé, são, igualmente, apontadas como as principais razões da onda de revolta que se tem feito sentir. Para além dos acidentes sucessivos – em 2017, a embarcação Ferro-Ferro desapareceu com pelo menos 12 passageiros e tripulantes e, em 2019, faleceram oito pessoas e desapareceram outras nove, quando o navio Amfrititi naufragou durante a travessia – uma passagem de barco, cuja viagem demora entre seis e oito horas, tem um valor cinco vezes superior ao salário mínimo nacional e uma viagem de avião custa cerca de 6.000 dobras (239 euros). 

Outro caso, apontado pela iniciativa, centra-se no preço do combustível. No Príncipe, segundo a oposição regional, no mercado paralelo, um litro de gasolina custa 30 dobras (1,20 euros), enquanto que, na ilha do Príncipe, a gasolina custa 100 dobras (3,99 euros) por litro. Nós não somos colónia de São Tomé. Somos parte integrante de São Tomé”, vincou António Carvalho, porta-voz da Sociedade civil do Príncipe, em declarações à Téla-Nón

A falta de resposta do governo central e a não satisfação das reivindicações, foram o mote para os protestos nas ruas, de dia 27 de fevereiro. Gustavo Plácido dos Santos, do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS) e especialista em países de língua oficial portuguesa (PALOP), em entrevista ao JPN, não espera grandes consequências: “Apesar de poder haver convulsões sociais, o facto de o MLSTP ter o apoio de três partidos no Parlamento, que já por si próprios têm uma base eleitoral muito sólida, e também tendo em conta que a oposição está dividida e não tem muita força, em termos políticos, o protesto não vai ter muito impacto

No centro da discórdia encontram-se também questões relacionadas com o Comando Regional da Polícia Nacional, ao qual é apontada a falta de efetivos para garantir a proteção da população e dos seus bens, bem como, o défice de condições do Hospital Regional do Príncipe. Pedem-se condições que possibilitem um atendimento eficiente aos utentes, mais equipamentos e formação e atualização dos quadros da saúde no Príncipe. 

A problemática do custo de vida ganha uma dimensão maior em tempos de pandemia, fase de estagnação das exportações e, principalmente, do setor do turismo, a principal receita económica e fonte de emprego da região. Gustavo Plácido lembra que “o Príncipe vive a quase 100% do turismo” e as próprias infraestruturas no Príncipe são feitas para o Turismo.

Se já em São Tomé a indústria é incipiente, no Príncipe muito mais. O Príncipe sempre foi uma ilha pobre e estas tensõestêm estado anestesiadas devido ao turismo, que apesar de tudo alimenta muita gente”.  Mais ainda, deixou de existir uma subvenção do preço de bens essenciais, importados a partir de São Tomé, suportada até aí pelo governo central.

A decisão foi contestada, no início de fevereiro, na visita do secretário de Estado do Comércio, Eugénio Graça, que levou alguns produtos até ao Príncipe, como arroz oferecido pelo Japão e 200 caixas de sabão azul para higienização.

Sem empresas certificadas, o país não consegue impor o setor industrial – são poucas as empresas exportadoras. Um estudo de levantamento e caracterização das empresas industriais de São Tomé e Príncipe, da Associação Nacional das Empresas Metalúrgicas e Eletromecânicas (ANEME), indica a exiguidade do mercado, a definição das quantidades a comprar de produtos, e na área de construção civil, o reduzido número de obras existentes, como algumas das principais dificuldades das empresas.

A estes fatores juntam-se as falhas no fornecimento de energia, as taxas de juro elevadas e a “falta de pagamentos atempados por parte do Estado”, segundo o relatório. O mesmo estudo salienta a falta de mão-de-obra qualificada, motivada pela “deficiência do sistema formal de ensino que, entre outros aspetos, não articula a parte teórica à componente prática, ou fá-lo deficientemente” e problemas na formação de formadores.

A falta de perspetiva de melhores condições financeiras é crescente no sétimo país de África com mais mortes por cada 100 mil habitantes associadas à Covid-19, com 28 mortes no total, tendo registado já 1.795 casos de infeção (dia 27). O executivo central decidiu ainda duplicar o valor cobrado por cada teste de diagnóstico de Covid-19 – anteriormente 500 dobras (20,22 euros). Em comunicado, o aumento das taxas sobre os testes é justificado pelo “alto custo dos reagentes”, mas ressalva que o aumento não abrange os doentes e os estudantes bolseiros. O aumento é exclusivo para viajantes.

Quanto às motivações políticas por trás dos protestos, essas não são claras. Conceição Moreno, secretário regional do Movimento pela Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP-PSD), acusa o governo regional de ser o promotor da carta de forma a perturbar a governação central, liderada por Jorge Bom Jesus. Por seu lado, através de um vídeo na página oficial da presidência insular, Filipe Nascimento reagiu, considerando que as acusações de Conceição Moreno “põe em causa o regular funcionamento das instituições” e deixou o recado, “devemos, apesar dos nossos interesses partidários, saber manter a elevação, a responsabilidade”.

Já o especialista nos PALOP, Gustavo Plácido, desvaloriza esta troca de palavras: são jogos políticos para consumo interno”.

Mapa São Tomé e Príncipe

Mapa de São Tomé e Príncipe. Ministério Francês dos Negócios Estrangeiros

Enquadramento político

Contudo, num cenário no qual os protestos atinjam a violência extrema, com intervenção militar, Gustavo Plácido, embora não reconheça utilidade alguma, teoriza a dissolução da assembleia por parte de Evaristo Carvalho. “O protesto poderá escalar para algo violento, eventualmente confrontos entre a polícia e os populares, mas não é razão para, por exemplo, os militares se envolverem. Os militares estão fora da política há já algum tempo e temos de ter em conta que o partido do governo, o partido da libertação, grande parte da sua base são os militares e os antigos militares, por razões óbvias. Portanto não haverá um golpe”, antecipa.

Atualmente, o parlamento é liderado pelo Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP-PSD), que reúne o apoio do Partido de Convergência Democrática/Grupo de Reflexão (PCD/GR) e da União dos Democratas para Cidadania e Desenvolvimento da Mudança (UDD). Por outro lado, a Ação Democrática Independente (ADI) afirma-se como o partido da oposição.

Na visão de Gustavo Plácido, o facto da ala parlamentar da oposição “estar dividida e não ter muita força” é mais um fator que reforça as reduzidas implicações políticas decorrentes do protesto. 

Em agosto de 2020, Filipe Nascimento, candidato pela União para Mudança e Progresso do Príncipe, sucedeu a José Cardoso Cassandra, que tinha governado o Príncipe durante uma década. Defensor da maior autonomia do Príncipe, as aspirações políticas do jovem, que se formou em Direito, na Universidade de Lisboa, e que ocupou o cargo de adjunto do vice-presidente da Câmara Municipal de Oeiras, durante dois anos, são incertas.

Eleições presidenciais à vista

As eleições presidenciais acontecem em julho, mas não existe dia marcado, por enquanto. No dia 13 de fevereiro, foi aprovada a nova Lei Eleitoral, proposta pelo PCD, inserida num pacote com outras cinco reformas: Lei do Direito de Sufrágio e do Recenseamento Eleitoral, Lei das Autarquias locais, Lei Orgânica do Gabinete Técnico Eleitoral e a Lei dos Partidos Políticos. O processo da aprovação não foi pacífico já que, em janeiro, após a aprovação no parlamento, a Lei Eleitoral foi vetada pelo Presidente da República.

O documento original previa que os candidatos teriam de ser filiados num partido político – impedindo que um candidato fosse apoiado por um movimento de cidadãos -, impedia a candidatura a cidadãos que não fossem naturais de São Tomé e Príncipe e tornava obrigatório ao candidato residir no território, pelo menos, nos 180 dias anteriores ao ato eleitoral.  

O último ponto seria penalizador, em particular, para Patrice Trovoada, apoiado pelo ADI, que se ausentou do país após as eleições legislativas de 2018, às quais sucederam duas alegadas tentativas de golpe de estado. Patrice Trovoada, primeiro-ministro são-tomense de fevereiro a julho de 2008, entre 2010 e 2012, e de 2014 a 2018, saiu do país após o seu partido ser o mais votado, mas não conseguir formar Governo. Esta situação abriu uma crise interna no partido que, em menos de dois anos, realizou dois congressos organizados por duas alas distintas.

Em outubro de 2020, Trovoada foi novamente eleito presidente da Ação Democrática Independente, mas ainda não regressou a São Tomé. No entanto, o Tribunal Constitucional não reconhece o resultado desta eleição, atribuindo o cargo a Agostinho Fernandes. “Trovoada não tem capacidade política, nem de mobilização social e militar para fazer algo grave”, justifica Gustavo Plácido dos Santos.

Em termos históricos, só em 2016, pela primeira vez, um presidente não conseguiu um segundo mandato. De acordo com o artigo “As Eleições Legislativas de 2018. Acerca da Sobrevivência da Democracia em São Tomé e Príncipe”, de Augusto Nascimento, pelo Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, esta novidade foi motivada pela fragmentação no MLST e não só: “Em parte pela fragmentação no MLSTP, mas certamente também por ser tido como mentor do derrube do governo de Patrice Trovoada, obteve uma votação dececionante na primeira volta, abdicando de disputar a segunda volta“, lê-se no artigo.

De realçar ainda a intenção do ADI em rever a constituição para que São Tomé adote o modelo presidencialista, argumentando a limitação atual dos poderes do Presidente da República e os custos elevados da realização de eleições presidenciais a cada cinco anos, as legislativas a cada quatro anos e as autárquicas e da Região Autónoma do Príncipe a cada três anos, como bandeiras principais desta mudança. Revisão esta já proposta, em 2012, por Patrice Trovoada, primeiro-ministro nesse ano, ao então Presidente da República de São Tomé, Manuel Pinto da Costa.

São Tomé ocupa uma posição nevrálgica e estratégica no panorama do Oceano Atlântico. Este facto tem sido aproveitado pelas organizações de crime internacional, como defende Gustavo Plácido. Na visão do especialista em países de língua oficial portuguesa (PALOP), as redes internacionais de tráfico de droga poderão, eventualmente, ter uma palavra a dizer no protesto de hoje, aproveitando-se do clima de instabilidade que se tem feito sentir. 

A influência santomense ao nível das suas suas vantagens geográficas também se reflete nas relações que estabelece com os demais países. Exemplo disso é o Programa Estratégico de Cooperação 2021-2025, avaliado em 55 milhões de euros, que Portugal vai assinar com São Tomé e Príncipe, assim como os inúmeros interesses existentes entre a nação santomense e a China, decorrentes da One-China Policy, que visa o apoio do país asiático a todos aqueles que não reconhecem Taiwan como nação independente, caso de São Tomé e Príncipe.