Entre a ação de líderes mundiais e a Covid-19, várias foram as adversidades que colocaram em causa os Direitos Humanos, em 2020. O mais recente relatório da Amnistia Internacional faz referência à morte de Ihor Homeniuk em solo português.

A pandemia de Covid-19 levantou um véu sobre as principais debilidades a nível nacional e mundial que assolaram os mais vulneráveis e agudizaram o cenário de “desigualdade, discriminação e opressão”, causando uma crise “sem precedentes”.

Estas são algumas das conclusões presentes no relatório da Amnistia Internacional, intitulado “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, publicado esta quarta-feira (7 de abril). O documento analisou 149 países, incluindo a situação portuguesa, que revela alguns “pontos comuns com o contexto mundial”.

Olhos postos em Portugal

No que toca ao cenário nacional, é destacado que a pandemia veio realçar desigualdades já existentes no país e como a resposta do Governo à Covid-19 expôs lacunas nos direitos à saúde e habitação.

Relativamente ao direito à habitação, é descrito que continua a faltar acesso a residência adequada para muitas famílias e, em contexto de situação pandémica, a Amnistia Internacional aponta como o apoio a pessoas em situação de sem-abrigo “foi largamente deixado às autoridades locais e a voluntários”.

Direito à habitação

A organização de direitos humanos refere que, em março de 2020, a Câmara Municipal de Lisboa despejou cerca de 70 pessoas que tinham ocupado habitação social por ausência de alternativas e a pelo menos nove famílias despejadas não lhes foi dada acomodação alternativa, levando-as a dormir em carrinhas, tendas ou vestíbulos de edifícios vizinhos.

O relatório faz igualmente menção ao direito à saúde em solo português, sendo tecidas críticas à inoperância do Governo neste campo. Em entrevista ao JPN, Maria Inês Lapa, diretora de investigação e advocacy da Amnistia Internacional de Portugal, constata que, segundo relatos que receberam “diretamente ou através de relatórios da Ordem dos Médicos”, foi possível apurar uma carência assinalável de equipamento de proteção individual para os profissionais no combate à pandemia, problema que o Executivo não reconheceu. Contudo, a verdade é que na ótica da diretora de investigação da AI, houve situações “em que as condições de segurança não foram asseguradas”.

Morte de Ihor Homeniuk assinalada no relatório

O documento revela também falhas na garantia dos direitos de refugiados, requerentes de asilo e migrantes, as quais ficaram especialmente visíveis no seguimento da morte de Ihor Homeniuk, um cidadão ucraniano, sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que morreu no aeroporto de Lisboa. Esta questão levanta, no entendimento da diretora de investigação e advocacy da AI, um conjunto de questões relacionadas com a “existência de violência sistémica no seio das forças de segurança”.

Neste capítulo, a AI nota que o governo português “concedeu temporariamente” acesso à saúde e assistência social a requerentes de asilo e estrangeiros com pedidos de residência pendentes, mas recebeu “apenas 72 menores desacompanhados da Grécia, dos 500 que havia prometido receber”.

Discriminação e racismo são outros fenómenos apontados a Portugal pela organização que manifesta também particular preocupação com os casos de violência contra mulheres e raparigas. E, neste enquadramento, é destacado “o primeiro caso de acusação por mutilação genital feminina a ir a julgamento em Portugal”.

As desigualdades sociais e o direito à saúde

O relatório destaca o contexto gerado com os efeitos da Covid-19, identificando situações e personagens com maior vulnerabilidade. Segundo o documento, “a pandemia expôs desigualdade sistémica em todo o mundo”, com as minorias étnicas, as mulheres, as pessoas com deficiência e as pessoas mais idosas “entre os mais severamente impactados”.

A par destes, também os “profissionais de saúde, trabalhadores migrantes e trabalhadores no setor informal – muitos nas linhas da frente da pandemia – foram traídos por sistemas de saúde negligenciados e apoios socioeconómicos irregulares”, pode ler-se no relatório. No Bangladesh, por exemplo, muitas pessoas que trabalhavam no setor informal ficaram desprovidas de “qualquer rendimento ou proteções sociais devido aos confinamentos e recolheres-obrigatórios”.

Já em Nicarágua, no início de junho, pelo menos 16 profissionais de saúde foram despedidos, “após exprimirem preocupações sobre a falta de equipamentos de proteção individual e sobre a resposta estatal à pandemia”. Assim, o direito à saúde foi um dos assuntos mais visados, especialmente a sua dificuldade de acesso em muitos pontos do globo, como resultado de “décadas de decisões discriminatórias”.

direito à saúde

O direito à saúde foi severamente afetado em 2020. Foto: Mafid Majnun - Unsplash

Maria Inês Lapa afirma que “uma das esperanças e recomendações da organização é que os estados aprendam com esta experiência e considerem reconfigurar algumas instituições, de forma a construirmos um mundo, não como o que tínhamos, mas melhor”.

A pandemia “como arma contra os direitos humanos”  

A Amnistia Internacional tece ainda diversas críticas às falhas dos líderes mundiais, apontando que a gestão da pandemia foi prejudicada por dirigentes que exploraram impiedosamente a crise e fizeram da Covid-19 “uma arma para lançarem novos ataques aos Direitos Humanos”, repletos de oportunismo e desprezo total.

Agnès Callamard, recém-escolhida como secretária-geral da AI, apela a uma “reflexão e à reconfiguração de sistemas de forma a podermos, genuinamente, reconstruir melhor”. E acrescenta: “A Covid-19 expôs e aprofundou brutalmente a desigualdade dentro dos países e entre eles, e destacou a impressionante negligência dos nossos líderes pela humanidade comum. Décadas de políticas divisórias, medidas de austeridade e escolhas erradas de líderes em não investir na melhoria de infraestruturas públicas em ruínas, deixaram a este vírus demasiadas presas fáceis”.

A responsável refere, a título de exemplo, os casos da Hungria e da Turquia, onde foram criminalizadas críticas contra a Covid-19. Em solo turco, jornalistas foram mesmo detidos, ao abrigo destas medidas, algo que o país liderado por Recep Tayyip Erdogan tem feito com regularidade nos últimos anos.

Todo este clima de “dissidência e de repressão” em torno da pandemia afigura-se como muito “preocupante”, como nos conta Maria Inês Lapa, que, numa viagem ao redor do globo, nos traça exemplos de abuso de poder.

Também nos estados do Golfo, no Bahrein, no Kuwait, em Omã, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos, as autoridades usaram a pandemia como um pretexto para continuarem a suprimir o direito à liberdade de expressão.

O panorama brasileiro

O Brasil não escapa ao escrutínio da organização de defesa dos Direitos Humanos. O país carioca figura, aliás, entre os piores exemplos em várias categorias da análise da Amnistia, uma lista de problemas encabeçada pela própria liderança de Jair Bolsonaro e a sua “negação” da crise.

O relatório cita, igualmente, o Brasil como um dos países onde “os governos emitiram mensagens de saúde contraditórias”, inclusivamente entre autoridades federais e estatais.

Contudo, a lista de dilemas apontada ao Brasil não fica por aqui, somando-se os inúmeros ataques de membros do Governo federal a jornalistas, coincidentes com a liderança de Bolsonaro, entre Janeiro de 2019 e Setembro de 2020, período entre o qual foram registadas 449 ocorrências. Paralelamente, a ONG menciona o país brasileiro no capítulo “do uso excessivo da força”, devido a um aumento de 7% no número de pessoas mortas às mãos das forças de autoridade na primeira metade do ano passado. De realçar que este fenómeno atinge a população negra em quase 80% dos casos.

Além do oportunismo político, a pandemia veio revelar as fracas intenções de cooperação internacional entre as principais economias mundiais, nomeadamente, os esforços do ex-presidente Donald Trump “para comprar a maior parte do fornecimento mundial de vacinas, deixando poucas ou nenhumas para outros países”. Maria Inês Lapa clarifica o caminho que deve ser seguido neste campo, de forma a garantir que “ninguém é deixado para trás”.

Segundo a diretora de investigação e advocacy da Amnistia Internacional de Portugal, a falta de cooperação internacional refletiu-se na ação de “instituições multilaterais, que, apesar de serem fundadas com causas muito nobres, falharam redondamente nos seus propósitos”, agudizando a máxima de que “um problema global não se resolve com soluções nacionais”.

A escassez de ajuda aos refugiados

O relatório relembrou ainda que o surgimento da Covid-19 teve um efeito na já precária situação dos refugiados, requerentes de asilo e migrantes em muitos países, aprisionando a população em campos com condições degradantes, “cortando abastecimentos vitais ou precipitando controlos fronteiriços que deixaram muitos retidos”.

O Uganda, país que mais refugiados acolhe em África (cerca de 1,4 milhões), é um dos exemplos que melhor retrata esta constatação, onde foram encerradas as fronteiras no início da pandemia e não foi aberta qualquer exceção para os refugiados e requerentes de asilo que tentam entrar no país. Consequentemente, mais de 10.000 pessoas ficaram retidas ao longo da fronteira com a República Democrática do Congo (RDC).

Refugiados

A população refugiada não escapou ao flagelo da Covid-19. Foto: UNHCR/ACNUR Américas

Outro ponto destacado é a subida forte da “violência de género e doméstica, com muitas mulheres e pessoas LGBTQ+ a enfrentarem barreiras crescentes à proteção e apoio no que diz respeito a restrições à liberdade de circulação, à falta de mecanismos confidenciais para as vítimas denunciarem violência enquanto estão isoladas com os seus abusadores e à redução de capacidade ou suspensão de serviços”.

Movimentos sociais como forma de alerta

Perante a adversidade extrema trazida pela pandemia da Covid-19, os governos falharam e a necessidade de “respostas e lideranças excecionais” intensificaram-se, como afirma Agnès Callamard, no prefácio ao relatório. Segundo a nova secretária-geral da Amnistia, essa liderança veio de todos aqueles que “se ergueram contra a desigualdade, a violência policial que atinge desproporcionalmente os negros, as minorias, os pobres e os sem-abrigo”, como os médicos e os trabalhadores essenciais, dos cientistas e dos técnicos.

Black Lives Matter

As maiores vitórias de 2020 vieram de movimentos sociais como o Black Lives Matter. Foto: Wikimedia Commons

Assim, perante a inoperância e insucesso dos governos, as vitórias vieram de movimentos de protesto, da autoria de pessoas ávidas de fazerem a sua mensagem passar fronteiras com o objetivo de alertar para abusos, como são os casos dos protestos na Nigéria contra a violência policial (#ENDSars) acusada de matar e torturar civis, ou como o movimento #BlackLivesMatter, que voltou a ganhar força nos Estados Unidos com a morte de George Floyd.

Na visão de Maria Inês Lapa, estes movimentos foram uma das grandes inspirações da Amnistia Internacional e um mote para a necessidade latente de “reiniciar, reconfigurar as nossas sociedades de forma a construirmos um mundo melhor, mais justo, mais sustentável e mais igual para todos”.

É ainda de realçar um conjunto de vitórias e conquistas que marcaram o ano de 2020 como as novas leis de combate à violência contra mulheres e raparigas no Kuwait, na Coreia do Sul e no Sudão, países onde se registaram melhorias nas leis sobre violação e consentimento sexual, como na Croácia, Dinamarca, Holanda e Espanha, ou a descriminalização do aborto na Argentina.

Quanto ao futuro, Maria Inês Lapa refere que é preciso um esforço conjunto de várias partes para a incerteza dar lugar a um clima de otimismo.

Segundo Maria Inês Lapa, “a pandemia lançou uma dura luz sobre a incapacidade do mundo de cooperar efetivamente em tempos de extrema necessidade global”, num ano de 2020 em que a Covid-19 introduziu um verdadeiro terramoto na vida como até então a conhecíamos.

Artigo editado por João Malheiro