O Senado dos EUA tem sido marcado, nas últimas décadas, por constantes bloqueios à legislação lá introduzida. Isto deve-se, em grande parte, à regra do filibuster. Tema que divide opiniões na política americana, o mandato de Joe Biden pode ser marcado por uma mudança na regra do processo legislativo.

Para melhor perceber o que é o filibuster, é preciso entender as diferenças entre o Senado e Câmara dos Representantes, as duas câmaras legislativas dos EUA, desde a sua criação pelos founding fathers da nação norte-americana.

A história do Senado e as origens do filibuster

O Congresso na sua totalidade é composto por 535 legisladores. Entre esses, 435 são representantes na câmara mais baixa e 100 são senadores na câmara mais alta. Os representantes são eleitos por círculos eleitorais, e o seu número é, de certa forma, proporcional à população de cada estado. Ou seja, por exemplo, a Califórnia, um dos maiores estados, elege 53 representantes, enquanto que outros como o Wyoming ou o Alaska apenas contam com um representante.

Mas no Senado as coisas são bem diferentes. Na sua origem, há duas ideias muito importantes que ainda hoje têm uma relevância acrescida. Em primeiro lugar, os fundadores da democracia americana queriam que o Senado fosse uma câmara em que os estados mais pequenos conseguissem ter o mesmo poder que os maiores, para evitar uma “tirania” da maioria. E em segundo lugar, pretendiam que a câmara alta do Congresso fosse um exemplo mundial do melhor que o debate político tem.

Para cumprir esse objetivo, foram estabelecidas duas regras: todos os estados terão o mesmo número de senadores (dois) e não existirão quaisquer limites ao debate. As duas são ainda muito importantes para se perceber o atual estado do Senado, mas vamos primeiro abordar a questão dos limites ao debate, que permite a existência do filibuster.

O filibuster como principal ação de bloqueio legislativo

Traduzido para português, filibuster significa, em simples termos, obstrucionismo. Na prática, este começou por significar que qualquer senador podia, como descrito no site oficial do Senado, “discutir uma lei até à sua morte”. Mas até aos anos 70 do século XX, os senadores tinham que estar fisicamente presentes na câmara a discursar durantes horas e horas para que o debate não acabasse. O exemplo mais famoso, ainda que ficcional, está representado no filme “Mr. Smith Goes to Washington”, com a personagem Jefferson Smith a aguentar enormes esforços físicos para conseguir trazer os restantes senadores para o seu lado do debate.

Os exemplos reais são também muitos e com durações extensas. O recorde para o maior discurso individual pertence ao senador da Carolina do Sul Strom Thurmond, que se manteve no hemiciclo do Senado durante 24 horas e 18 minutos com um filibuster contra o Civil Rights Act de 1957.

Os filibusters tornaram-se cada vez mais constantes no final do século XIX e início do século XX, com pedidos da sua eliminação ou, no mínimo, de sua reforma a datar aos 1840’s. E apenas em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, foi criada uma regra que previa acabar com o debate. O chamado “cloture” permitia que uma maioria de dois terços pusesse fim a qualquer filibuster, enquanto que previamente este apenas podia terminar com unanimidade dos senadores.

Ainda assim, a invocação de “cloture” estava longe de ser uma medida eficaz para limitar os filibusters, dado a extrema dificuldade de reunir os votos de dois terços dos senadores. Nas quatro décadas posteriores à sua criação, esta foi usada de forma efetiva em apenas cinco ocasiões.

Nessa altura, segundo informações oficiais do Senado, o filibuster era particularmente útil para os senadores do sul do país, nos seus esforços para evitar legislação que garantisse direitos civis, incluindo o bloqueio de leis antilinchamento. E foi apenas em 1964, depois de décadas de tentativas, que o Senado conseguiu passar medidas que assegurassem os mesmos direitos aos cidadãos de todos os estados.

Com crescentes frustrações dentro da instituição, nos anos 70, um grupo de senadores conseguiu algumas reformas ao filibuster. Foi nesta altura que se eliminou a necessidade dos longuíssimos discursos para estender o debate. A partir de então, basta um legislador indicar a sua intenção de obstruir, que apenas com uma invocação de “cloture” poderia a lei avançar para uma votação efetiva. Foi também em 1975 que se reduziu o número de votos necessários para pôr fim aos debates, passando de dois terços para três quintos. Em termos práticos, era apenas necessário agora 60 senadores estarem do mesmo lado, e não os 67 anteriores.

Mas as críticas ao filibuster continuam muito acesas, e os seus maiores opositores não aceitam que este seja apenas reformado, mas sim eliminado por completo. Uma das maiores objeções prende-se com a questão de todos estados terem o mesmo número de senadores independentemente dos seus cidadãos.

O que é que isto significa? Com uma necessidade de angariar 60 senadores, torna-se possível que apenas 41 legisladores bloqueiem uma legislação. Em termos hipotéticos, seria plausível que uma lei fosse bloqueada pelos senadores dos 21 estados menos populosos do país, representando apenas cerca 11% da totalidade da população norte-americana.

Como é que o filibuster é usado nos dias de hoje?

Atualmente, o filibuster não só é utilizado de forma muito mais regular do que nos séculos passados, como é, principalmente, uma arma do Partido Republicano para bloquear a agenda do Partido Democrata.

A forma mais viável de medir o número de filibusters é através da contagem das invocações de cloture. E podemos verificar pelo gráfico que o aumento tem sido muito significativo, especialmente desde a passagem para o século XXI.

Através da análise de outro gráfico, verificamos que a grande quebra na quantidade de leis que o Senado aprovou acontece durante o 111.º Congresso, entre 2010 e 2012. Essa altura coincide com a presidência democrata de Barack Obama, e com uma “reconquista” do controlo das câmaras legislativas por parte do Partido Republicano – em 2011 no Congresso e em 2015 do Senado.

O próprio ex-líder maioritário do Senado, o republicano Mitch McConnell, descreve-se como o “Grim Reaper” (O Carrasco) da agenda “socialista” dos democratas. Em várias ocasiões, quer em reuniões com membros do partido, quer em entrevistas televisivas, foi ouvido a dizer que, se continuar líder do Senado, que propostas como o Green New Deal (Novo Acordo Verde) nunca passarão pelo hemiciclo, e que nem sequer serão sujeitas a votos.

O que fazer com o filibuster daqui para a frente?

Neste momento, o partido Democrata controla tanto a Casa Branca como ambas as câmaras do Congresso. Ainda assim, estão longe de conseguir implementar toda a sua agenda política, em grande parte devido ao filibuster. Em entrevista ao JPN, Germano Almeida, especialista em política norte-americana, admite que a presidência de Joe Biden tem, até ao momento, sido “muito positiva”, ainda que este saiba que “as dificuldades existem e que podem acentuar-se daqui para a frente”.

A incerteza do que vai acontecer nos próximos tempos em relação ao Senado é geral, mas Germano Almeida acredita que “mantendo o filibuster, não é possível para os democratas concretizarem os seus planos para os próximos quatro anos”. O alinhamento partidário é “quase total”, e é então muito irrealista para Joe Biden “contar com os votos de republicanos”.

A única forma dos democratas conseguirem que as suas leis passem pelo Senado é através do chamado processo de reconciliação. Este processo, ao contrário do habitual, permite que propostas sejam aprovadas com uma maioria simples de 50+1. E é precisamente essa a maioria que os democratas detêm neste momento. Contudo, lembra o comentador, “essas propostas têm um limite de uma por ano em cada tema”.

Ainda assim, com os recentes bloqueios republicanos à Plano de Estímulos à Economia bem como de reformas relacionadas com armas, Germano Almeida acha que “pouco mais resta a Biden do que tentar acabar com o filibuster”. O presidente já usou “até ao limite” as ações executivas e medidas de reconciliação, e que pode até ter “esgotado os cartuchos que tinha demasiado depressa”.

E a verdade é que a posição do presidente nas últimas semanas tem sofrido algumas alterações. A assessora de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, havia dito, inicialmente, que “a preferência do presidente é de não fazer qualquer mudança [ao filibuster]”. Contudo, o próprio Joe Biden veio já admitir que estaria disposto a uma alteração que voltasse a obrigar os senadores a “levantarem-se e comandarem o hemiciclo”, de certa forma regressando à altura em que o próprio chegou ao Senado, em 1973.

Biden, como refere Germano Almeida, era o número dois de Barack Obama na presidência, e “não quer cometer os mesmos erros táticos do antigo presidente”. Obama “gastou os dois anos em que teve uma maioria com o ObamaCare, porque acreditou na boa-vontade dos republicanos”. Apesar desta ter sido uma “grande vitória legislativa”, foi a única e Obama acabou por perder as maiorias que tinha tanto no Senado como no Congresso.

Mas, na opinião de Germano Almeida, tal não acontecerá com Joe Biden. O presidente está a conseguir “fazer o jogo de agradar aos dois lados” do partido Democrata, tanto à esquerda, representada em grande parte pelo senador Bernie Sanders, como aqueles mais à direita, como Joe Manchin. Tem “feito cedências” a ambos e para já vai assegurando o apoio das duas partes.

E o facto de Joe Biden estar a conseguir “fazer muita coisa”, muito devido ao forte incentivo de ambas fações do partido, pode ser precisamente o que o leva a um mandato muito mais positivo do que se poderia pensar”. “Eu acho que as perspetivas são, nos próximos anos, muito positivas para Joe Biden, e acho que o sucesso político virá por acréscimo aí”, remata Germano Almeida.

Artigo editado por João Malheiro