O que se está a passar no Mar Vermelho? Quem são os Houthis? Porquê a intervenção dos EUA e do Reino Unido na região? O JPN responde a estas perguntas que ajudam a compreender a crise no Mar Vermelho.

A 19 de outubro, a Marinha norte-americana e a Força Aérea da Arábia Saudita intercetaram mísseis lançados pelos Houthis em direção a Israel Foto: Comando Central dos EUA/Twitter

O Mar Vermelho é palco de um conflito armado, desde novembro. Em resultado da guerra entre as forças israelitas e o movimento palestiniano Hamas, os Houthis têm lançado ataques, a partir do Iémen, contra os navios comerciais que passam no estreito de Bab-el-Mandeb, situado entre a Península Arábica e o Corno de África.

Dada a falta de segurança, várias companhias de transporte de mercadorias deixaram de passar no Mar Vermelho e começaram a optar por vias alternativas, nomeadamente, pelo Cabo da Boa Esperança, o que tem afetado o comércio internacional. O Reino Unido e os EUA já intervieram no conflito.

O que se está a passar no Mar Vermelho?

Os Houthis, apoiados pelo Irão, lançaram vários ataques com mísseis e drones navais a partir dos territórios que estão sob o controlo do grupo no Iémen, incluindo do porto de Hudaydah, que tem uma posição privilegiada sobre a passagem. Para além disso, o grupo rebelde iemenita organizou investidas de assalto com barcos e helicópteros para sequestrar navios de carga e capturar reféns.

Até ao momento, já foram realizados mais de 20 ataques armados a embarcações comerciais no Mar Vermelho. Esta situação fez com que várias embarcações deixassem de passar pelo Mar Vermelho.

O condicionamento da via comercial levou à intervenção dos EUA e de outras nações, através da operação “Prosperity Guardian, com o objetivo de intercetar e eliminar os ataques do grupo armado no Mar Vermelho.

Porque é que a região é tão importante para o comércio mundial?

O Mar Vermelho, que se situa no Oceano Índico, liga os continentes africano e asiático e banha países como o Egito, o Sudão, a Eritreia, a Arábia Saudita, Israel, Jordânia e o Iémen. É limitado pelo estreito de Bab-el-Mandeb e pelo Canal do Suez, no Egito, que permite a passagem dos navios comerciais para o Mar Mediterrâneo.

Mapa relativo ao Mar Vermelho Foto: Íris Nunes/JPN

No Mar Vermelho, passa uma das rotas comerciais mais importantes ao nível mundial, que faz a ligação entre o oriente, o norte de África e a Europa, com passagem ao largo da  Península Arábica. Segundo o balanço publicado pelo blogue Flexport, a rota que passa pelo Mar Vermelho e pelo Canal do Suez é responsável por 12% do comércio marítimo mundial e 30% do tráfego mundial de contentores. Para além de bens de consumo, a rota permite o transporte de parte do petróleo e gás natural que abastece a Europa.

As consequências que a interrupção desta rota tem na economia mundial foram visíveis em 2021, quando o navio Ever Given encalhou no Canal do Suez. Durante quase uma semana, o navio bloqueou a passagem pelo canal e impossibilitou o transporte de 10 mil milhões de dólares de carga por dia, provocando atrasos nas cadeias de abastecimento durante um longo período de tempo.

Em resultado dos ataques dos Houthis às embarcações comerciais que circulam no Mar Vermelho, as transportadoras já mudaram de rota para não terem de passar pela zona. Apesar de demorar mais tempo, e como tal custar mais dinheiro, optar pela passagem pelo o cabo das Tormentas parece ser a opção mais viável, uma vez que os navios não correm o risco de serem atacados pelos Houthis.

Quem são os Houthis?

Os Houthis, também conhecidos como Ansarallah (apoiantes de Deus), são um grupo islamista pró-xiita do Iémen, apoiado militarmente pelo Irão. Surgiram nos anos 90, aquando da unificação do Iémen, quando Hussein al-Houthi criou um movimento de revivalismo religioso do Zaidismo, a “Juventude Crente”, cujo objetivo era representar os Zaidis e resistir ao sunismo (corrente do Islão dominante na Arábia Saudita, diferente da xiita que é a principal no Irão).

O Zaidismo é uma corrente do islamismo xiita, praticado no Norte do Iémen. Os Zaidis estiveram no poder durante séculos, mas acabaram por ser marginalizados com a chegada dos sunitas ao poder, depois de terminada a guerra civil de 1962.

À medida que a revolta anti-Governo e a adesão ao movimento aumentavam, Ali Abdullah Saleh, primeiro presidente do Iémen após a unificação, que inicialmente apoiou a “Juventude Crente”, começou a olhar a minoria como uma ameaça. A gota de água para al-Houthi aconteceria em 2003, quando Saleh apoiou a invasão norte-americana do Iraque. Como consequência, organizou manifestações em massa.

Mesmo depois da morte de al-Houthi em 2004, o movimento continuou e foram muitos aqueles que se juntaram à causa. A primavera árabe em 2011 tornou ainda mais evidente a divisão do país, contribuindo para a eclosão de uma guerra civil entre os Houthis e uma coligação do governo do Iémen e da Arábia Saudita. A ONU considera que a guerra civil do Iémen foi a pior crise humanitária do mundo, contabilizando 250 mil mortes. O conflito perdura até aos dias de hoje, ainda que tenha sido acordada uma trégua em 2022.

Segundo um estudo feito em 2021 pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, o Irão apoiou os Houthis com armas, minas marítimas, misseis balísticos e de cruzeiro e veículos aéreos não tripulados. O grupo assumiu o controlo de grande parte do norte do Iémen, incluindo a capital do país, Sanaa.

O grupo é considerado uma organização terrorista pelo Governo iemenita, Arábia Saudita, Estados Unidos da América, Emirados Árabes Unidos e Malásia.

Xiitas e Sunitas: qual a diferença que divide a comunidade islâmica?

A criação dos Houthis e a sua ação antigovernamental decorre da oposição entre as duas grandes correntes do islão: os xiitas e os sunitas. A oposição entre as duas correntes foi e é a causa de vários conflitos no Médio Oriente, e o Iémen não foge à regra. Para perceber a base do conflito no Mar Vermelho há que entender a diferença entre os dois lados da guerra civil: os Houthis, islamistas xiitas, e a coligação do Governo legítimo com a Arábia Saudita, islamistas na sua maioria sunitas.

Uma das diferenças entre as duas fações está relacionada com a sucessão do profeta Maomé, fundador do islamismo, após a sua morte em 632. Os xiitas acreditam que o novo líder dos muçulmanos deveria ser o seu primo e genro, Ali bin Abu Talib, na ideia de que só um parente do profeta poderia guiar o islamismo. No entanto, para os sunitas, Maomé não tinha escolhido quem deveria ter a responsabilidade, por isso acreditam que o sucessor legítimo era o seu companheiro, Abu Bakr.

Atualmente, grande parte dos muçulmanos – mais de 80% – são sunitas. Os xiitas são cerca de 15% dos islâmicos, estando concentrados, principalmente, no Irão, o que explica o apoio iraniano à causa Houthi. As diferenças estão presentes na doutrina, nos rituais, na lei, na teologia e na organização religiosa. Os xiitas optam por uma interpretação rígida do Alcorão, sendo considerados mais radicais, e defendem que o poder político se destina aos descendentes de Maomé. Para os sunitas, os livros religiosos são o Alcorão e a Suna e existe uma interpretação mais ortodoxa. Já o líder religioso, segundo os sunitas, deve ser eleito pelos islâmicos e é chamado de Califa.

O que espoletou este conflito no Mar Vermelho?

Depois do ataque de 7 de outubro do Hamas ao território israelita, os Houthis declararam apoio à causa palestiniana. Em resposta à agressão das forças de Israel contra o território de Gaza, os Houthis lançaram a 19 de outubro quatro mísseis de cruzeiro e 15 drones em direção a Israel. No entanto, todos os míssies foram intercetados pelo contratorpedeiro USS Carney da Marinha norte-americana e pelas Força Aérea da Arábia Saudita.

Mais tarde, os Houtis lançaram “um grande número” de mísseis balísticos e drones contra o território israelita, de modo a “ajudar os palestinianos a vencer a guerra“, e disseram que os ataques iriam continuar “até que os ataques israelitas parem”. O mesmo aconteceu a 5 de novembro. Três dias depois, o grupo armado disse, na rede social X, ter abatido um drone americano (MQ9), que estaria a “realizar atividades hostis de vigilância e espionagem em águas territoriais iemenitas, de modo a dar apoio a Israel”.

A 14 de novembro, o líder do grupo armado, Abdul Malik al-Houthi, disse que os Houthis passariam a atacar navios que tivessem ligação a Israel. Apesar dessas afirmações, muitas embarcações de outras nacionalidades foram atacadas, desde novembro.

Cinco dias depois, o grupo armado disse ter sequestrado o navio de carga Galaxy Leader, que atravessava o Mar Vermelho, sendo que o navio e a tripulação foram capturados e levados até ao porto de Hodeidah, no Iémen. Num comunicado, o porta-voz militar dos Houthis, Yahya Saree, disse que o grupo armado continuaria com os ataques “até que as agressões e os crimes horríveis contra os irmãos palestinianos em Gaza e na Cisjordânia parem”. Israel negou que o navio tivesse qualquer ligação ao Estado israelita. No início do mês seguinte, o grupo armado anunciou que passaria a atacar também os navios de outras nacionalidades que se dirigissem para o território israelita.

Porquê a intervenção dos EUA e do Reino Unido?

Desde que os ataques a navios comerciais começaram a intensificar-se, os Estados Unidos e outras nações, como o Reino Unido, assumiram a missão de patrulhar o Mar Vermelho e proteger as embarcações que circulassem pela rota. A operação, à qual se juntaram outros países, como o Canadá, França, Espanha, Itália e Noruega, ficou conhecida por Prosperity Guardian.

A 31 de dezembro, a Marinha norte-americana afundou três barcos ligados aos Houthis, enquanto tentavam sequestrar um navio comercial, provocando dez mortos. Os EUA e os aliados lançaram inúmeros avisos para que os Houthis cessassem os ataques, sob pena de serem alvo de uma operação militar.

Tendo em conta que os Houthis continuaram a atacar navios comerciais, os EUA e o Reino Unido levaram a cabo uma vaga de bombardeamentos contra alvos ligados aos Houthis. Os ataques surgiram em resposta à violação do direito de navegação e “aos ataques sem precedentes dos Houthis contra navios internacionais no Mar Vermelho”. Entre os alvos dos aliados, estavam a capital do Iémen, Sanaa, a cidade portuária, Hodeidah, e as cidades Taiz e Saada.

Segundo a Reuters, o presidente norte-americano, Joe Biden, reforçou que “estes ataques são uma mensagem clara de que os Estados Unidos e os nossos parceiros não vão tolerar ataques contra as nossas tropas ou permitir que atores hostis coloquem em perigo a liberdade de navegação”. Segundo o porta-voz militar dos Houthis, os Estados Unidos e o Reino Unido realizaram 73 ataques, dos quais resultaram cinco mortes.

Num comunicado, o gabinete do primeiro-ministro britânico afirmou que “o Reino Unido está autorizado, ao abrigo do Direito internacional, a usar a força, quando a legítima defesa é o único meio viável para lidar com um ataque armado real ou iminente e em que a força utilizada seja necessária e proporcional”.

O ataque dos aliados aconteceu um dia depois de o Conselho de Segurança das Nações Unidas ter adotado a Resolução 2722, na qual os Estados condenaram os atos do grupo armado e exigiram o fim imediato dos ataques contra as embarcações comerciais no Mar Vermelho, bem como a libertação do Galaxy Leader e da sua tripulação.

Num comunicado, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora norte-americana junto da ONU, relembrou que o Conselho de Segurança deve procurar assegurar o “os direitos e liberdades de navegação dos navios de todos os Estados no Mar Vermelho, em conformidade com o Direito Internacional“.

Um relatório de peritos mandatados pela Organização das Nações Unidas (ONU) para monitorizar o embargo de armas, citado pela Lusa, refere que os Houthis estavam “a reforçar consideravelmente as suas capacidades militares terrestres e navais, incluindo submarinos, bem como o seu arsenal de mísseis e drones, em violação do embargo”.

A 3 de fevereiro, as nações aliadas organizaram mais um ataque contra 36 alvos dos Houthis, entre os quais estavam uma instalação subterrânea de armazenamento de armas utilizada pelo grupo armado. “O nosso objetivo continua a ser diminuir as tensões e restaurar a estabilidade no Mar Vermelho, mas vamos reiterar o nosso aviso à liderança Houthi: não hesitaremos em continuar a defender vidas e o livre fluxo de comércio numa das vias navegáveis ​​mais críticas do mundo face a ameaças contínuas”, disse o presidente norte-americano, Joe Biden.

Marinheiros do porta-aviões USS Mason Foto: Comando Central das Forças Navais dos EUA/Twitter

O que é que o conflito implica para o globo?

Os ataques têm tido o efeito desejado: fechar uma das principais rotas comerciais do mundo. Como alternativa ao Mar Vermelho e ao Canal do Suez, os navios porta-contentores têm optado por seguir uma nova rota que passa pelo Cabo da Boa Esperança, no Sul de África, o que significa que as viagens podem demorar mais 10 dias do que estava inicialmente previsto, segundo o banco holandês ING. Sete das dez maiores empresas distribuidoras – Maersk, MSC, Hapag-Lloyd, CMA CGM, ZIM e ONE – suspenderam a travessia pelo Mar Vermelho, segundo o Atlantic Council.

Este desvio originou atrasos no tempo de transporte de mercadorias e um aumento nos custos de transporte. De acordo com o Instituto Kiel, “o comércio mundial caiu 1,3 por cento” entre novembro e dezembro de 2023.

Também o relatório “Perspectivas Económicas Globais”, do Banco Mundial, dá conta de que as perturbações que se verificaram na rota que passa pelo Mar Vermelho pode “corroer a folga nas redes de abastecimento e a aumentar a probabilidade de estrangulamentos inflacionários“. O relatório diz ainda que “num cenário de escalada de conflitos, o fornecimento de energia também poderia ser substancialmente interrompido, levando a um aumento dos preços da energia” e que “isto teria repercussões significativas nos preços de outros produtos de base”.

Editado por Inês Pinto Pereira