Nesta quarta-feira (3), a Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas apresentou um novo inquérito que pode indiciar “crimes contra a humanidade” cometidos por todas as partes do conflito que assola a região de Tigré há mais de um ano. Citada num comunicado do organismo que tutela, Michelle Bachelet alerta que este conflito se pauta por uma “brutalidade extrema”.

O relatório da ONU contou com a participação conjunta do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e da Comissão de Direitos Humanos da Etiópia.

Com a investigação, a ONU pôde concluir que “existem razões para acreditar que todas as partes em conflito na região do Tigré cometeram, em vários níveis de gravidade, violações dos direitos humanos internacionais, direito humanitário e direito dos refugiados”, indica o relatório.

O documento aponta uma “séries de violações e abusos, incluindo assassinatos ilegais e execuções extra-judiciais, tortura, violência sexual e baseada em género, violações contra refugiados e deslocamento forçado dos civis”. Os episódios referenciados ocorreram entre 3 de novembro de 2020, data que marcou o início do conflito entre o Governo de Abyi Ahmed e a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), e 28 de junho de 2021, quando Adis Abeba declarou um cessar-fogo unilateral.

O relatório baseia-se em 296 entrevistas confidenciais e em 64 reuniões com as autoridades locais e federais da Etiópia, organizações não-governamentais e equipas médicas.

“Este relatório apresenta uma oportunidade para todas as partes reconhecerem responsabilidades, para se empenharem em medidas concretas sobre responsabilidades, na reparação (dos crimes) junto das vítimas, e de encontrarem uma solução duradoura para porem um fim ao sofrimento de milhões de pessoas”, declarou Daniel Bekele, comissário da Comissão dos Direitos Humanos da Etiópia, citado no comunicado do ACNUDH.

Durante a investigação e a elaboração do relatório da ONU, a equipa enfrentou “vários desafios de segurança, operacionais e administrativos”. No comunicado referido, o ACNUDH aponta, nomeadamente, a impossibilidade de fazer visitas a determinadas zonas de Tigré.

De acordo com a Lusa, levantaram-se dúvidas relativamente à imparcialidade dos relatos da investigação na medida em que um dos investigadores do ACNUDH e outros seis funcionários das Nações Unidas foram expulsos pelas autoridades.

Antes da publicação do documento, o TPLF criticou os investigadores, acusando-os de aplicarem uma “metodologia pouco eficiente e que mancha a reputação” do Alto Comissariado, refere a Lusa.

Já o Governo de Adis Abeba caracterizou a investigação colaborativa como uma “demonstração de seriedade” na forma como aborda as questões relativas aos direitos humanos.

Conflito étnico e “crimes contra a humanidade”

O relatório da ONU publicado nesta quarta-feira denuncia inúmeros “ataques indiscriminados” contra civis, execuções extrajudiciais e tortura, assim como sequestros e detenções arbitrárias e violência sexual e baseada em género.

O documento conclui que estas violações e abusos têm ocorrido “no contexto do conflito” entre o Governo de Abyi Ahmed, que venceu o Prémio Nobel da Paz em 2019, e a FLPT.

O conflito começou a 4 de novembro de 2020 quando o primeiro-ministro ordenou uma operação militar contra a FLPT como forma de restabelecer a autoridade de Adis Abeba, após as eleições de setembro de 2020, na região de Tigré, no Norte da Etiópia.

Segundo um relatório publicado em junho com informações recolhidas pela ONU e por organizações não-governamentais, o conflito étnico já foi responsável pela morte de milhares de civis e pelo deslocamento forçado de 1,7 milhões de pessoas. Com 110 milhões de habitantes a Etiópia é o segundo país mais populoso de África.

Quanto às violações e abusos dos direitos humanos, o relatório da ONU refere massacres de centenas de civis, realçando que todas as partes envolvidas no conflito atacaram civis e que estes ataques ocorreram, especialmente, em escolas, hospitais e locais de culto religioso.

Segundo o comunicado da ACNUDH, episódios de tortura têm sido frequentes visto que as “vítimas são espancadas com cabos elétricos e barras de ferro e mantidas presas de forma incomunicável, ameaçadas com armas de fogo e privadas de comida ou água”.

Jovem etíope atingido por artilharia das tropas. Foto: Yan Boechat/VOA

Para além disso, no documento, são relatados inúmeros casos de violência sexual, destacando-se o de um jovem de 16 anos que foi violado por soldados eritreus e acabou por se suicidar.

No relatório, os autores apontam inúmeras recomendações, advertindo, nomeadamente, para todas as partes do conflito “tomarem todas as medidas necessárias para proteger os civis e as infraestruturas” e “acabarem com as hostilidades imediatamente”, refere o comunicado.

Do conflito étnico à guerra civil

Nos últimos dias, o conflito armado entre o poder oficial de Adis Abeba e o militar da região do Tigré tem ganho novas dimensões. Os soldados tigrés estão a deslocar-se para sul e garantiram ter conquistado, no passado sábado, a cidade estratégica de Dessie, na região de Amhara, de acordo com a Reuters, citada pelo “Público”. Para além disso, a FLPT aliou-se ao Exército de Libertação Oromo (OLA), facção rebelde da Frente de Libertação Oromo (OLF). Ambos prometem marchar sobre a capital, Adis Abeba.

A conquista de Dessie e de outras cidades de Ahmara, como Kombolcha, aproximam cada vez mais as forças tigrés da capital e, para além disso, estes locais estratégicos permitem um acesso à estrada que interliga Adis Abeba e o porto de Djibouti, no país vizinho.

A FLPT admite que a ofensiva militar na região de Ahmara serve como retaliação às operações das forças do Governo federal que estão a impedir o acesso de organizações humanitárias a Tigré, refere o “Público”.

Na segunda-feira (1), Abyi Ahmed, primeiro-ministro etíope que recebeu o Prémio Nobel da Paz de 2019, decretou um estado de emergência por seis meses, avança a Reuters. O anúncio surge após as forças tigrés e oromos terem conquistado vários territórios e considerarem marchar sobre Adis Abeba.

Segundo o Público, o estado de emergência dispensa apresentação de uma ordem judicial para levar a cabo a detenção de pessoas suspeitas de ligações a grupos “terroristas”, sendo a FLPT assim considerada pelas autoridades no poder.

“Vamos enterrar este inimigo com o nosso sangue e ossos, e elevar novamente e bem alto a glória da Etiópia”, declarou sem contemplações Abyi Ahmed, primeiro-ministro etíope, citado pela Reuters.

Artigo editado por Filipa Silva