Na região de Tigré, mais de 350 mil pessoas encontram-se em situação de “catástrofe” de insegurança alimentar e já há quase 2 milhões de desalojados. Para além disso, o conflito entre as tropas da Etiópia e da Eritreia e a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) parece não ter fim próximo. O JPN esteve à conversa com Felipe Pathé Duarte, comentador para assuntos de segurança internacional, para analisar a gravidade da situação.

A Etiópia realizou eleições esta semana, numa altura de grande tensão no país. Além do conflito interno que grassa na região de Tigré, localizada no norte, soam alarmes de fome extrema e de violações de direitos humanos.

Segundo um relatório publicado na quinta-feira (10) baseado em informações recolhidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e por organizações não-governamentais, durante os meses de maio e junho, cerca de 5,5 milhões de pessoas em Tigré e nas regiões vizinhas de Afar e Amhara encontram-se em condições de insegurança alimentar graves. Dessas, 353 mil encontram-se em situação de “catástrofe”, isto é, na fase 5 de insegurança alimentar, a mais grave. “Este é o número mais elevado de pessoas na fase 5 de IPC desde a fome de 2011 na Somália”, alerta o relatório.

De acordo com o documento, a crise alimentar “resulta dos efeitos em cascata de conflito, incluindo deslocação da população, restrições de movimentos, acesso humanitário limitado, perda de colheitas e de ativos de subsistência, e mercados disfuncionais ou não-existentes”. O conflito referido, que já assola o território desde novembro do ano passado, envolve as tropas da Etiópia e da Eritreia e a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT). “Se o conflito se agravar ainda mais, ou se, por qualquer outro motivo, a assistência humanitária for dificultada, a maioria das áreas de Tigré vão ficar em risco de fome”, salienta o relatório.

Felipe Pathé Duarte, especialista em assuntos de segurança internacional, afirma que Tigré “chegou a este ponto de rutura, essencialmente, por uma questão étnica”, sendo que a minoria de Tigré “teve sempre preponderância em termos políticos em Adis Abeba”, a capital da Etiópia. Com a chegada ao poder de Abiy Ahmed, atual primeiro-ministro, eleito pelo Parlamento, em 2018, para suceder a Hailemariam Desalegn, “essa situação reverteu-se”, dando início ao referido conflito.

Para resolver a “catástrofe” humanitária e alimentar na região de Tigré, Pathé Duarte explica que é necessário “deixar de haver ofensiva e haver um processo de pacificação“, o qual considera ser “difícil”.

O comentador da RTP salienta que a comunidade internacional – destacando as Nações Unidas e a União Africana – deve intervir e arranjar “fórmulas específicas de intermediação”, de maneira a que “não se entre outra vez numa situação de morte por fome”.

Um mandato de altos e baixos

Há quase 30 anos que o povo tigré se encontrava no poder central da Etiópia. Mas em 2018, Abiy Ahmed, presidente do Partido Democrata Oromo e líder da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF, na sigla inglesa), foi eleito pelo Parlamento, de maioria tigrés, para suceder ao primeiro-ministro na altura, Hailemariam Desalegn. Assim, Ahmed tornou-se no primeiro chefe de Governo de etnia oromo – a etnia maioritária do país, há décadas afastada do poder.

Na sua tomada de posse, Abiy Ahmed prometeu “trabalhar para trazer a estabilidade política, construir uma Etiópia melhor e unida”. No início do seu mandato, o primeiro-ministro tentou fazer precisamente isso ao cessar a proibição dos partidos da oposição, ao libertar dezenas de milhares de presos políticos e ao incentivar a abertura do mercado interno.

Em 2018, Ahmed conseguiu algo que o país nunca pensou ver num futuro próximo: a assinatura de acordos de paz com a Eritreia, o maior “arqui-inimigo” da Etiópia. Tais acordos terminaram os mais de 20 anos de tensão, impulsionados por um conflito entre 1998 e 2000, e estiveram na base do Prémio Nobel da Paz que Abiy Ahmed acabou por receber em 2019

A Etiópia parecia ter um futuro promissor e próspero com o Governo tutelado por Ahmed. Contudo, nos últimos meses, mais e mais conflitos têm aparecido por todo o país, destacando-se o da região de Tigré. O primeiro-ministro tem-se tornado mais autoritário, mandando a polícia reprimir protestos e começando a confrontar o povo que o pôs no poder, através do corte de fundos direcionados para o povo tigrés, que passou a colocar em causa a legitimidade do seu governo, culminando num conflito étnico que ainda continua.

Felipe Pathé Duarte afirma que estas atitudes autoritárias do primeiro-ministro etíope pretendem “demonstrar poder” e afirmar a supremacia de Adis Abeba

No meio de um conflito étnico

Desde que tomou posse como primeiro-ministro, Abiy Ahmed tem afastado progressivamente a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) do governo central, partido que, ao longo de 30 anos, se foi “inserindo muito na dimensão política, na dimensão militar” do segundo país mais populoso de África, explica o comentador da RTP.

Entretanto, após meses de tensão entre Ahmed e a FLPT e as eleições de setembro na região de Tigré, consideradas “ilegítimas” por Adis Abeba, o primeiro-ministro ordenou, a 4 de novembro de 2020, uma operação militar contra a frente para restabelecer a autoridade do governo federal.  

Felipe Pathé Duarte relembra que “quando Abiy criou um novo partido político, o Partido da Prosperidade” – que substituiu a coligação formada através do EPRDF – o executivo pretendia “criar uma dimensão política abrangente”, com a liberalização, “a privatização de partes da economia” e a redução “da influência étnica das forças armadas” em pano de fundo.

Segundo o comentador, isto, de certa forma, minou “a relação que [a FLPT] tinha com Abiy Ahmed” e deu origem à “primeira grande divisão“, a qual foi intensificada pelo facto de haver “um entrincheiramento significativo nas forças armadas etíopes desta Frente (…) que mantinham posições de comando” e “sentiram-se na capacidade para desafiar o poder central”. Assim, para que “a centralidade de Adis Abeba” não fosse ameaçada, Abiy decidiu fazer “uma ofensiva”.

O conflito já foi responsável pela morte de milhares de civis e, de acordo com o relatório referido no início do texto, já levou ao deslocamento de 1,7 milhões de pessoas, 1,65 milhões destas só em Tigré. Em maio, a ONU alertou para a detenção e agressão de mais de 500 deslocados na região por soldados eritreus e etíopes.

O documento indica que a guerra resultou na “destruição de infraestruturas comunitárias de todos os tipos (fontes de água, instalações sanitárias/de saúde, escolas) e infraestrutura e equipamento para armazenamento de comida, processamento e armazenamento de mercado”, assim como na “destruição de agricultura e inputs de pecuária e ferramentas”.  

Apesar de o embaixador das Nações Unidas na Etiópia, Taye Atske Selassie Amde, afirmar que as tropas eritreias “vão definitivamente sair [da região de Tigré] em breve”, Felipe Pathé Duarte acredita que “o conflito vai continuar e não vai abrandar”.  O comentador afirma que, embora a FLPT não tenha “a mesma capacidade militar e política para poder desafiar o poder central”, o grupo tigrés “tem um certo controlo geográfico (…) e essa geografia pode permitir-lhe continuar a luta, sendo que essa luta terá tanto mais continuidade quanto mais apoio internacional tiver“.

Para além disso, o especialista admite que o Egito e o Sudão “poderão ver aqui neste confronto em Tigré uma forma de desestabilização e de enfraquecimento do poder central em Adis Abeba” e, assim, da própria Etiópia – que pretende construir uma barragem no rio Nilo – e que, “por sua vez, está a controlar recursos aquíferos que são cruciais quer para o Sudão quer para o Egito”, intensificando a guerra em Tigré e até dando origem a “uma espécie de proxy-war” com “interesses estratégicos que poderão ser explorados”.

Felipe Pathé Duarte salienta que, de certa forma, o conflito étnico em Tigré poderá desencadear “um efeito mimético por outras áreas na região, seja no Sudão, seja na Somália, seja na própria Eritreia (…), que padecem da mesma situação da Etiópia” pelo facto de terem “regiões que procuram a sua autonomia desafiando o poder central, justificando essa autonomia numa dimensão étnica e cultural”, espoletando, assim, mais conflitos étnicos no Corno de África.

De maneira a se resolver o conflito, o comentador preconiza que a “única forma” passará por levar a cabo “um processo de intermediação entre as partes“, destacando o papel que a União Africana pode ter como “elemento mediador”.

Eleições de 2021: “espécie de referendo ao mandato” de Abiy Ahmed

Como se disse, a Frente de Libertação do Povo Tigré chefiou o Governo federal da Etiópia por quase 30 anos, e durante esse período, não houve eleições “adequadas”. Já em 2020, Abiy Ahmed prometeu a realização de eleições gerais para agosto; porém, utilizando a pandemia como “desculpa”, adiou-as inúmeras vezes. Após todos estes adiamentos, o povo tigré decidiu realizar, em setembro, eleições na sua região, no norte da Etiópia, contra as ordens do governo central, o que, de certa forma, intensificou ainda mais a crise política e a tensão entre o primeiro-ministro e a FLPT.

Voltando à situação atual, as eleições legislativas e regionais foram finalmente realizadas na passada-segunda-feira, dia 21 de junho. Embora tenham surgido inúmeros conflitos étnicos por todo o país, dos quais se destaca o da região de Tigré, o ato eleitoral foi maioritariamente calmo, com algumas irregularidades logísticas.

Apesar do carácter “geral” das eleições, mais de um quinto do total de 547 círculos eleitorais não pôde votar por “problemas logísticos, violência de baixo nível ou graças à guerra na região de Tigré do norte”, avançou a Reuters. Assim, apenas 37,4 milhões de eleitores foram registados, um número consideravalemente baixo tendo em conta a população total do país de cerca de 110 milhões de habitantes. Para além disso, partidos políticos da oposição, dois dos quais são da região da Oromia, a maior e mais populosa do país, boicotaram o ato eleitoral.

Felipe Pathé Duarte admite que o ato eleitoral é um processo democrático “discutível”, graças a todos os adiamentos, e, de certa forma, é “uma espécie de referendo ao mandato” de Abiy Ahmed, que procura legitimar o seu poder e reafirmar o governo central.

Os votos ainda se contam, mas o especialista partilha a opinião das “perspetivas” que dizem que “Abiy pode ganhar“. Para o comentador da RTP, o conflito na região de Tigré “vai influenciar os resultados até de uma forma positiva” para o governante: é uma forma de o primeiro-ministro afirmar o seu poder e, juntamente com a instauração do “medo” e da “inimizade”, conseguir mais votos e, assim, manter o poder central de Adis Abeba.

Felipe Pathé Duarte realça que, “se [Abiy Ahmed] sai vitorioso, sai reforçado, tem possibilidade de continuar a luta e de continuar a ofensiva“, o que poderá significar que o fim do conflito na região de Tigré está longe, assim como a resolução da crise humanitária e alimentar que continua a assolar o território.

Artigo editado por Filipa Silva